Foi
em 1925 que Ludwig von Mises, já com 43 anos de idade, finalmente encontrou a
mulher que viria a se tornar sua esposa.
Margit
Serény estava entre os seis convidados de um jantar oferecido por Fritz
Kaufmann, um jovem advogado e frequentador dos seminários privados de economia
lecionados por Mises em Viena. É
praticamente um milagre que Mises tenha conquistado o coração da senhora que
havia se sentado ao lado dele, pois ele passou a maior parte do jantar
discutindo economia. Por outro lado, a
preocupação de Mises deu a ela a oportunidade de observá-lo atentamente. Eis como ela o percebeu:
O que me impressionou foram seus belos olhos azuis e
claros, sempre concentrados na pessoa com quem ele falava, jamais se desviando
para outra direção. Seus cabelos
escuros, já um tanto agrisalhados nas têmporas, estavam repartidos ao meio,
nenhum fio fora do lugar. Gostei de suas
mãos, com dedos longos e magros, os quais claramente demonstravam que ele não
os utilizava para trabalhos braçais. Ele
estava vestido com muita elegância. Um
terno escuro feito sob medida, uma gravata de seda bem ajustada. Sua postura indicava que ele já havia sido um
oficial do exército.[1]
Ele
conversou com ela após o jantar, e então ambos foram para uma discoteca. Aparentemente, Mises era um mau dançarino —
pelo menos para os padrões de Margit —, o que fez com que eles passassem
praticamente toda a noite conversando.
Na realidade, foi ela quem falou quase o tempo todo, e ele apenas
escutava atentamente. Margit era uma
mulher atraente, de 1,63m, com cabelos castanhos e olhos cinza-azulados. Enquanto eles conversavam, Mises descobriu
que ela era também uma mulher espirituosa e cordial. Ele provavelmente se apaixonou por ela
naquela noite. No dia seguinte, ele lhe
mandou rosas e convidou-a para jantar.
Foi o primeiro de muitos jantares que ocorreriam nos dois anos
seguintes.
Margit
Seerény era uma atriz vinda de uma família burguesa de Hamburgo. Durante a Primeira Guerra Mundial, ela havia
atuado em um dos principais teatros de Viena, o Deutsche Volkstheater. Quando Mises a conheceu, ela tinha trinta e
cinco anos de idade e era uma viúva muito atraente, já com dois filhos, Guido e
Gitta. Pouco tempo após sua chegada a
Viena, em 1917, ela se casou com Ferdinand Serény, um aristocrata húngaro que
morreu em 1923, deixando-lhe como herança ativos que já haviam perdido quase
todo o seu valor por causa da hiperinflação da época.
Como
de praxe, Mises era cauteloso até mesmo quando seus sentimentos ameaçavam
subjugá-lo. Poderia ele confiar em uma
atriz? Como Margit afirmara mais tarde,
a maioria das pessoas das classes mais altas considerava que atrizes eram nada
mais do que garotas de programa de luxo.
Ludwig parecia também compartilhar desse preconceito. De qualquer forma, ele tomou precauções. Como viria a confessar à sua esposa mais
tarde, ele pesquisou algumas das declarações dela a respeito de sua evolução
profissional nos arquivos da Neue Freie Presse.[2] Ele provavelmente também conversou com seu
próprio primo, Rudolf Strisower, que havia sido o médico de Ferdinand
Serény. Essas investigações confirmaram
a versão de Margit.
Porém,
havia obstáculos mais fundamentais a atrapalhar o progresso desse romance. De um lado, a mãe de Ludwig, Adele, tinha muitas
reservas em relação a Margit. Na
verdade, nenhuma de suas namoradas jamais havia obtido a aprovação de sua
mãe. Ela provavelmente havia imaginado
uma esposa mais distinta para seu amado filho, e sua opinião tinha muita
importância para Ludwig, principalmente dado que ele próprio nutria
determinadas visões filosóficas que invariavelmente o dissuadiam da ideia de
casamento. Essas visões diziam respeito
à natureza do casamento e à possibilidade de ser tanto um marido quanto um
estudioso. Um trecho completamente não
romântico de seu livro Socialism
explica tudo:
Como uma instituição social, o casamento é um ajuste do
indivíduo à ordem social, na qual uma determinada área de atividade, com todas
as suas tarefas e exigências, é atribuída a ele. Personalidades excepcionais, cujas
habilidades as colocam muito acima dos homens comuns, não conseguem tolerar a
coerção exigida por tal ajustamento à maneira de vida das massas. O homem que sente dentro de si próprio a
urgência e a necessidade de alcançar grandes feitos, que está preparado para
sacrificar sua vida em vez de ser falso em sua missão, não irá reprimir seu
desejo e sua ânsia em prol de uma esposa e filhos. Na vida de um gênio, por mais amorosa que
seja, a mulher ocupa apenas um pequeno espaço.
Não se está falando aqui daqueles grandes homens para quem o sexo foi
completamente sublimado e direcionado para outros canais — Kant, por exemplo
—, ou daqueles cujo espírito ardente, insaciáveis na busca do amor, não
conseguem se sujeitar aos inevitáveis desapontamentos da vida matrimonial e,
por isso, precipitam-se com vigoroso ímpeto de uma paixão para outra. Mesmo o homem genial cuja vida matrimonial
parece seguir um caminho normal, cuja atitude em relação ao sexo não se difere
daquela de outras pessoas, não consegue se sentir, no longo prazo, envolvido
pelo casamento sem se sentir violado em si próprio. Gênios não se permitem ser obstruídos por
qualquer consideração em relação ao conforto de seus semelhantes, mesmo aqueles
mais próximos. Os laços do casamento se
tornam amarras intoleráveis que o gênio tenta arrebentar ou ao menos afrouxar
para que ele posse se sentir mais livre.
Um casal deve sempre andar lado a lado dentre os membros comuns da
humanidade. Quem quiser seguir seu
próprio caminho terá de se apartar desse arranjo. Raramente terá ele a felicidade de encontrar
uma mulher disposta e capaz de seguir junto a ele nesse caminho solitário.[3]
Essa
passagem sobreviveu a todas as edições do livro. Ludwig foi lento em permitir que Margit
adentrasse sua até então solitária caminhada.
Mas, por outro lado, ele estava ansioso pelo amor de uma genuína
companheira.
Na
Viena dos anos 1920, o principal bastião do estatismo era o partido socialista
comandado por Otto Bauer, e um de seus métodos favoritos de "persuasão" política
era a explícita ameaça de fazer uma violenta insurreição. Porém, em 1927, o credibilidade dessas
ameaças sofreu um sério revés quando houve um confronto entre os socialistas e
a polícia de Viena.
O evento ocorreu após uma questionável decisão judicial que,
na visão dos socialistas, havia sido tendenciosamente favorável à direita
política. Ato contínuo, os socialistas
conclamaram uma greve geral e manifestações na sexta-feira, 15 de julho de
1927. Para o governo, esta foi uma sutil
tentativa de derrubá-lo. Quando a
multidão se reuniu em frente ao palácio sede do ministério de justiça, alguém
incendiou o prédio e a polícia entrou em cena imediatamente. Na carnificina que se seguiu, noventa
manifestantes foram mortos antes mesmo de o exército chegar. Mises comentou o episódio em uma carta
enviada a um ex-aluno em Paris:
A tentativa de golpe de
sexta-feira limpou a atmosfera como uma tempestade elétrica. O partido social-democrata utilizou todos os
meios de poder e ainda assim perdeu o jogo.
O confronto de rua terminou em uma completa vitória da polícia.... Todas
as tropas são leais ao governo.
A greve geral entrou em
colapso e os líderes dos social-democratas tiveram então de cancelá-la.
As ameaças com as quais o
partido social-democrata vinha permanentemente tentando intimidar o governo e o
público se comprovaram muito menos perigosas do que se imaginava.[4]
O fracasso da greve geral e o subsequente massacre
também trouxeram um inesperado impacto pessoal na vida de Mises.
Ele havia se surpreendido e se deleitado com o fracasso
da greve geral, mas o que não o surpreendeu foi o massacre que ocorreu quando
as massas se agruparam nas ruas de Viena.
Uma de suas primeiras providências foi alertar Margit Serény do
perigo. Sob nenhuma circunstância ela
deveria deixar as crianças saírem de casa.
Entretanto, como Margit ficasse fora de casa durante o dia, Mises deixou
instruções detalhadas para a governanta.[5]
Quando Margit retornou para casa no final daquela
tarde, ela ficou profundamente emocionada ao constatar o quanto Mises se
importava com ela e com seus filhos. Ela
o tinha em grande estima, mas de modo algum havia retribuído toda a atenção que
ele lhe dedicou durante os dois anos passados desde que eles haviam se
conhecido pela primeira vez no apartamento de Kaufmann. Rosas vermelhas e perfumes caros não podiam
conquistar seu coração. Ela simplesmente
não conseguia entender aquele homem:
Nos primeiros anos de nosso
relacionamento, Lu era praticamente um enigma para mim. Eu nunca havia visto tanta modéstia em um
homem antes. Ele sabia de seus valores,
mas jamais se gabava deles. ... Acho que foi a extrema honestidade nos
sentimentos de Lu que me atraiu tão fortemente para ele. Esses sentimentos eram tão irresistíveis e
esmagadores, que ele, que já escrevera milhares de páginas sobre economia e
dinheiro, não conseguia encontrar palavras para falar sobre si próprio, e
explicar seus sentimentos.[6]
Felizmente, algumas vezes os gestos falam por si
próprios. Naquele dia de julho de 1927,
pela primeira vez, Margit sentiu por ele algo como amor, e tornou-se cada vez
mais aberta e receptiva às suas investidas.
Era o início de um crescimento intenso na amizade entre os dois, algo
que menos de dois meses mais tarde acabaria estrondosamente.
Naquela noite, Mises visitou Margit para ver se tudo
estava em ordem. Como as linhas telefônicas
estavam inoperantes, ele não havia conseguido ligar para ela. Ele então levou-a para uma caminhada na Ringstrasse, onde os acontecimentos tumultuados daquele dia ainda
podiam ser sentidos: havia apenas homens nas ruas; ela não viu nenhuma outra
mulher. No fim de seu passeio, ele convidou-a
para irem dançar. Quando ela disse sim,
ele sabia que tal resposta indicava um progresso.
Alguns dias depois, ele pegou na mão dela pela primeira
vez, em um clube noturno, e na semana seguinte, ele a beijou pela primeira vez
em um canto escuro do Prater, o parque central de Viena — como se fossem um casal
de adolescentes colegiais, como ela lembraria mais tarde. Alguns dias depois, quando ela teve de viajar
para Hamburgo, Mises lhe disse que iria pedi-la em casamento, mas que ele antes
ainda tinha de lidar com a ideia de ser o padrasto dos filhos dela. Eles se despediram com planos de se
reencontrar em Berchtesgaden, uma cidade de veraneio nos Alpes da Bavária, no final
de agosto.
No dia 25 de agosto, ela tomou o trem de Munique para
Berchtesgaden e foi alegremente surpreendida ao ver Mises repentinamente
entrando no trem em uma das estações intermediárias. Eles se hospedaram em um hotel em
Berchtesgaden, em quartos adjacentes.
Preocupado com as aparências, Mises apresentou Margit como sua
irmã. A estória era boa o suficiente
para manter as aparências, e Ludwig e Margit usufruíram um maravilhoso período
de treinamento para o casamento, como ele viria a dizer mais tarde. Eles conversaram sobre os problemas que a
potencial união de ambos teria de enfrentar: ela não poderia satisfazer o
desejo dele de terem um filho; ela teria de se tornar judia novamente para
saciar a vontade da mãe dele; esta teria de ser mantida fora de todos os
preparativos para o casamento, pois ela poderia comprometer tudo, como já havia
feito em uma outra ocasião.[7]
No domingo, 4 de setembro, ambos retornaram a Viena,
onde houve uma reviravolta fatídica.
Mises havia adoecido sem ter notado.
Ele a encontrou para jantarem na terça-feira seguinte, e na quarta-feira
se encontraram de novo, com Mises tremendo de febre e com uma fortíssima dor de
cabeça. Dadas essas circunstâncias, ele
compreensivelmente não quis falar sobre casamento. Ele teria de estar com a mente bem clara para
fazer a mais importante declaração de sua vida.
Entretanto, Margit sentia que já estava esperando há muito tempo e
estava ficando cada vez mais impaciente. Ela então lhe disse que não esperaria mais um
só dia e o pressionou a tomar uma decisão.
Mais tarde, Mises mandou-lhe uma carta com os seguintes dizeres:
"Hoje ou nunca! Não permitirei que você adie a decisão nem
por mais algumas horas." Nenhuma mulher
amorosa fala desta forma. Uma única
palavra afetuosa de você já teria me feito feliz, já teria me atado a você para
sempre. Porém, você jamais disse tal
palavra. Você não foi me encontrar como
uma mulher amorosa, mas sim como uma fria adversária.
Foi a maior decepção da minha
vida. Tinha a esperança de ter
encontrado amor e bondade em você, porém o que encontrei foi insensibilidade,
intransigente e inflexível insensibilidade.
Eu já havia superado todas as minhas antigas apreensões, as quais não
escondi de você, pois achava que o amor verdadeiro era mais forte que as
dificuldades que estavam atrapalhando a nossa união.[8]
Parecia ser o fim.
Eles se separaram sob a mútua declaração de que os problemas no
relacionamento de ambos eram irreconciliáveis.
Ela até mesmo devolveu as cartas de amor que ele havia escrito para ela
em Hamburgo.
Na manhã seguinte, Margit sentiu remorso e escreveu
para Mises. Porém, ele permaneceu em silêncio. Ela continuou escrevendo
para ele todos os dias, sem obter resposta.
Alguns dias mais tarde, ela finalmente conseguiu falar com ele ao
telefone. Mises reiterou tudo que ele
havia dito naquela quarta-feira. Estava
tudo acabado, para sempre.
Não muito tempo depois, Mises aparentemente descobriu a
verdadeira causa da sua febre — uma doença rara conhecida como abdômen cirúrgico agudo — e se internou em um hospital
para fazer uma cirurgia.[9] Margit havia parado de escrever
para ele, mas obteve notícias sobre sua saúde através de seu primo em segundo
grau, Strisower, o médico de seu falecido marido. Ela até mesmo pediu a Deus por sua
recuperação, admitindo mais tarde que sempre havia se considerado ateia, mas
que essa emergência havia revelado uma crença diferente.
Com o tempo, ela começou a escrever para ele
novamente. Como ele não respondia, ela
implorou ao professor Adler, médico dela, para pedir a Mises que escrevesse e
explicasse todos os motivos de sua obstinada teimosia. Com o pedido vindo de um colega como se fosse
um pedido semi-oficial, Mises sentiu que tinha de acatar. Ele escreveu uma carta com palavras veementes
e nada lisonjeiras, e enfatizou que teria preferido poupá-la do constrangimento
de ler seu relato. Margit mandou a carta
de volta, dizendo que ela, a carta, não condizia com ele.
Em algum momento no final de 1927, ou início de 1928,
ele começou a ligar pra ela novamente.
Mas ele não dizia nada; apenas esperava-a atender ao telefone e escutava
a sua voz, às vezes fazendo isso duas vezes ao dia. E então, um dado dia, ele foi ao apartamento
dela, sem nenhuma explicação, e reataram o relacionamento do ponto em que
haviam encerrado em setembro de 1927.
Ela ainda esperava que ele pedisse sua mão, mas ele ainda não se sentia
apto para tomar essa decisão. Mais
tarde, ela escreveu:
Antes de termos nos casado,
esse amor deve ter sido um fator muito aflitivo na vida dele — tão perturbador
que ele sabia que podia lutar uma batalha nos Cárpatos, mas jamais podia vencer
a batalha contra si próprio.[10]
____________________________________________
O artigo acima foi extraído do livro Mises - The Last Knight of Liberalism.
Notas
[1] Margit von Mises, My
Years With Ludwig von Mises (2nd ed., Cedar Falls, Iowa: Center
for Futures Education, 1978), p. 13.
[2] Ver Margit von Mises, My
Years With Ludwig von Mises, pp. 3, 9.
[3] Mises, Socialism (Indianapolis:
Liberty Fund, 1981), pp. 85f. A
abordagem de Mises sobre a genialidade (p. 166) foi antecipada por George
Bernard Shaw em sua obra "Earning a Living and Creative Work". Mises não conhecia essa passagem da obra de
Shaw à época. Vinte e cinco anos depois,
um correspondente alemão apontou o paralelo.
[4] Mises para
Steiner, carta datada de 21 de julho, 1927. Fritz Georg Steiner havia
sido um dos melhores alunos dos seminários de Mises na Universidade de
Viena. Ver Martha Steffy Browne [Braun],
"Erinnerungen an das Mises-Privatseminar," Wirtschaftspolitische
Blätter, vol. 28, no. 4 (1981), p. 111.
[5] Sobre isso e o restante, ver os arquivos datilografados
de Margit von Mises sobre os eventos, os quais foram provavelmente escritos em
novembro de 1927.
[6] Margit von Mises, My Years
with Ludwig von Mises, pp. 18f.
[7] Parafraseando as recordações um tanto vagas de Margit von
Mises sobre os eventos. Da frase "ela
teria de se tornar judia novamente", infere-se que ela havia sido judia antes
de se casar com Ferdinand Serény, um protestante. A frase "período de treinamento para o
casamento" está sujeita a várias interpretações plausíveis e provavelmente foi
selecionada exatamente por essa razão.
[8] Mises escreveu essa carta a pedido do professor Adler,
médico de Margit, que havia transmitido o pedido de Margit para que ele
explicasse por completo por que ele se recusava a vê-la de novo. O médico em questão deve ter sido Ludwig
Adler; ver Margit von Mises, My Years with Ludwig von Mises, p. 8.
[9] No dia 16 de setembro, ele ainda estava no hospital. Ver a carta que a secretária de Mises enviou
para o Königsberger Hartungsche Zeitung, datada de 16 de setembro,
1927; Mises Archive 62: 10.
[10] Margit von Mises, My Years with Ludwig von
Mises, p. 19.