No fim do mês passado vimos, em São Paulo, a marcha da
maconha reprimida pelas autoridades. Por
mais que o tema das drogas seja relevante, não é dele que quero falar, e sim da
curiosa aliança que ocorreu nessa manifestação, entre esquerdistas e liberais;
ou melhor, do que ela pode nos ensinar. Apesar das imensas divergências
políticas, econômicas, morais, talvez até metafísicas, ambos os lados
concordavam que um sujeito tem o direito de fazer uso pessoal de uma substância
sem que o estado se intrometa. Em outras
palavras, e talvez isso choque alguns manifestantes, a marcha da maconha era
uma marcha pela propriedade privada.
Passemos para o campus da USP, de onde,
suponho, sai muito do suporte à descriminalização das drogas. Um belo dia alguns meses atrás, depois de um
debate na faculdade de História, um estudante veio me vender um jornalzinho
socialista por ele editado. Embora recusasse
o produto, lancei a provocação amistosa: "O que você está fazendo é livre
mercado! Imagine um mundo em que fosse proibido criar o próprio jornal e
vendê-lo"; ao que ele respondeu que concordava, e que na URSS isso era
permitido (antes de Stalin). Não entro no mérito histórico; basta-me que
até um aguerrido socialista filo-soviético defenda o princípio básico do livre
mercado no nível micro, da produção e venda. Por que será, então, que o mesmo princípio
seja rejeitado quando se pensa no macro?
O princípio que está em jogo é a transação
voluntária, mutuamente benéfica; pessoas se ajudando de forma que todas vivam
melhor. Não é preciso ser liberal, libertário
ou economista austríaco para se ver o bem intrínseco disso. Infelizmente, por algum motivo que desconheço,
o capitalismo se desvinculou, nas mentes das pessoas, desse princípio
fundamental. Defende-se o capitalismo
porque ele é mais eficiente, porque aumenta o PIB, porque faz as ações subirem,
porque gera mais impostos, porque o homem é egoísta mesmo e nada podemos fazer,
etc., indo do entediante ao detestável sem tocar no essencial.
Quando se quer ver como o capitalismo funciona
na prática, as primeiras imagens que vêem à mente são o mundo empresarial e o
mercado financeiro. Considero esta uma
das piores crias intelectuais do marxismo: a idéia de que o livre mercado seria
do interesse de grandes empresários e banqueiros, enquanto que proletários
explorados, desempregados e meninos órfãos são naturalmente socialistas. O mesmo termo, "capitalista", designa tanto o
defensor do capitalismo quanto o detentor de capital, e os dois são facilmente
confundidos na imaginação popular.
O fato, contudo, é que empresários e banqueiros
costumam defender o intervencionismo estatal. Uma evidência: a partir do ano que vem sacolas plásticas serão
proibidas em São
Paulo. Os grandes
supermercados já estão se adiantando à nova lei e achando ótimo contribuir para
a sustentabilidade. Já os mercadinhos de
bairro, para os quais o gasto a mais com sacolas de papel será sentido (ou que
terão que pedir a seus consumidores que tragam sacolas de pano, tornando-se
ainda menos práticos do que as grandes redes), a vida ficará ainda mais
difícil. No balanço geral, as
regulamentações impostas pelo governo não são nocivas às grandes empresas, pois
as protege da concorrência das pequenas, impedidas de existir. Você acha que as filiais das grandes
lanchonetes reclamaram da proibição da venda de alimentos em automóveis? Enfim, no mundo do grande capital o
capitalismo está moribundo. O mercado
formal é espremido por regulamentações e sugado pelos impostos. Para encontrar o mercado saudável precisamos
procurar em lugares improváveis: na economia informal e no terceiro setor.
O capitalismo sobrevive nas camadas mais baixas,
nas favelas, nas transações pequenas o bastante para fugir ao radar do estado,
e as quais não valeria a pena controlar. Quando o estado aparece, é na forma de fiscais
facilmente subornáveis, que viram parte do ecossistema. Camelôs, cozinheiras, bares, cabeleireiros,
lojas de roupa, escolas privadas, cinemas caseiros, lan houses — tudo operando informalmente.
Stewart Brand não é um economista libertário. Suas causas são o ambientalismo e o fim da
pobreza. Sua fala no TED dá uma
boa idéia do que é a vida nas favelas ao redor do mundo: não são campos de
refugiados onde famintos aguardam de mãos estendidas (a bem da verdade, nem
mesmo os campos de refugiados são assim); são gente vivendo, produzindo,
construindo e trocando. "These are not people crushed by poverty; these are people busy getting
out of poverty" (~ 4:30
min.) Não se trata de pessoas esmagadas pela pobreza; e sim de pessoas
ocupadas em sair da pobreza, como prova a economia vibrante das favelas.
Não é por isso que deixaremos de querer ajudar
os mais necessitados. Ajudar os pobres a
enriquecer é um dos grandes méritos do capitalismo; e é por isso que os
ensinamentos do mercado estão sendo emulados até pelo terceiro setor. O paradigma do terceiro setor era, e em muitos
casos ainda é, o assistencialismo estatal. Não que as ONGs e demais iniciativas filantrópicas
tradicionais sejam financiadas pelo estado (embora, infelizmente, muitas o
sejam); é que a visão delas é a dos pobres como seres inertes, dependentes de caridade
para sobreviver. É essa a visão que todo
político alimenta e da qual dependem sua influência e poder. Felizmente, uma nova concepção do papel do
terceiro setor vem substituindo a antiga: saem as filantropias e entra o
negócio social.
O negócio social é uma empresa que gera
benefícios sociais em sua operação. Como
qualquer empresa, ela tem que lucrar para sobreviver. O criador do conceito, Muhammad Yunus, defende
que o negócio social não emita lucro aos investidores; ou seja, que todo ele
seja reinvestido. Deixemos esse purismo
anticapitalista de lado, mesmo porque na prática a imensa maioria dos empreendedores
de negócios sociais emite lucros para si (não dá para se dedicar full-time a um empreendimento não-remunerativo).
O grande insight do negócio social, e o que o
torna tão promissor, é a percepção clara de que a transação mutuamente benéfica
é a resposta para a pobreza; e que todo homem, mesmo o mais pobre, tem algo de
bom a oferecer. É a essência do
capitalismo sem que ninguém saiba (ainda bem!) que se trata de capitalismo. Os chamados negócios sociais são, basicamente,
negócios convencionais que conseguem manifestar aquilo que os faz lucrar:
prestar um serviço valioso à comunidade. E ao fazer isso eles ganham a legitimidade
moral para fazer coisas que, nos negócios tradicionais, seriam vistas como
exploração ou ganância e rapidamente regulamentadas e taxadas, destruindo a
espontaneidade e a variedade que tornam o setor tão atrativo. Vou dar alguns exemplos do setor bancário.
"Tempo para os outros. Tempo para si." Uma formulação eloquente do princípio básico
do mercado. Esse slogan é do Banco de Tempo, um banco português em
que as pessoas não depositam dinheiro, mas horas de serviço. Uma costureira remenda roupas de sua vizinha
por duas horas. Ela ganha, então, duas
horas de serviços a serem prestados por outros membros do banco; digamos, um
mecânico que consertará seu carro. É
fácil perceber que horas de trabalho são um meio de troca um tanto imperfeito
(quem disse que o valor de algo é medido pelo tempo gasto?). Mas o mero fato de operar com uma moeda
alternativa faz com que seja visto como um banco solidário e benevolente, ao
contrário dos bancos maus e egoístas do capitalismo selvagem. Escapa, numa tacada só, da condenação social e
do controle do estado. Os participantes
sentem-se realizados de ajudar os outras e serem, por sua vez, ajudados de
volta. Consideram talvez que o Banco do
Tempo seja uma alternativa ao capitalismo, quando na verdade ele é o
capitalismo em ação.
Podemos ir mais longe. Todos conhecem a idéia de microcrédito (do mesmo
Muhammad Yunus que pensou o negócio social). É como o crédito convencional, mas com uma
aura de serviço social por emprestar pequenos valores a empreendedores muito
pobres. Observe que, ao contrário da
esmola, o empréstimo (com juros) trata o receptor não como um pobre coitado,
mas como alguém capaz de fazer algo de sua vida se lhe for dada a oportunidade.
Há, em operação, redes de microcrédito
que unem pessoas ao redor do mundo que emprestam pequenas quantias e depois
recebem seu dinheiro de volta com juros.
O terceiro setor aderiu à idéia de que é
legítimo e justo que quem deu também receba. O sistema bancário tradicional, e o mercado
formal como um todo, perderam a idéia de que o lucro possa ser legitimado moralmente.
É hora de recuperá-la.
Remova da defesa do capitalismo o verniz de
egoísmo, a fixação com o mercado financeiro, a dicotomia governo x grandes
empresas (que é em parte verdadeira, mas esconde a igualmente verdadeira
simbiose entre os dois), e o resultado será algo que não é, ou não deveria ser,
exclusividade de tecnocratas sem coração.
Numa reportagem recente da The Economist ("Market
of ideas", edição de 09 de abril de 2011), mostra-se que a popularidade do
livre mercado tem caído. O Brasil aparece
perto do topo na defesa do livre mercado, com 68% (em primeiro está a Alemanha
com 69%). Os EUA, outrora os primeiros,
caíram para 59%; entre os americanos pobres, o apoio foi de 76% para 44%. Doug Miller, presidente da empresa que fez a
pesquisa, conclui que as empresas americanas estão perdendo seu "contrato
social" com as famílias. Sua frase diz
tudo: as empresas, coletivamente, são vistas como uma entidade separada das
famílias.
Capitalismo são as grandes empresas que trazem
serviços e oferecem emprego para nós, num processo nefasto de exploração e
competição na lei da selva, que deveria ao menos gerar bons resultados. Enquanto essa imagem falsa durar, o
capitalismo só ficará mais impopular. É
preciso resgatar o fundamental: capitalismo é garantir a possibilidade de que
produzamos e trabalhemos, livremente, uns para os outros. Poucos são maus o suficiente para ser contra
um sistema assim; muitos, no entanto, não o vêem nas defesas convencionais que
se fazem do livre mercado. Cabe a nós
mudar essa percepção.