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Economia

Acumulando reservas e equalizando o câmbio

21/03/2011

Acumulando reservas e equalizando o câmbio

Há pouco mais de dois meses, escolhi o seguinte link como página inicial do meu browser. Confesso que tenho assistido com perplexidade, dia após dia, a sede do BC em intervir no mercado cambial comprando mais e mais dólares

Estamos nos aproximando do fim do primeiro trimestre de 2011 e nosso BC já acumula mais de US$ 314 bi em reservas internacionais, um incremento de US$ 25,9 bi somente neste ano (dados de 16/03/2011). Se o ritmo de intervenções cambiais do Bacen permanecer com esta intensidade, é possível que terminemos o ano com mais US$ 400 bi em reservas. Muito vai depender da atuação do FED. Como o quantitaive easing 2 termina em  junho próximo, é bem provável que nosso BC se veja "obrigado" a continuar absorvendo a liquidez a ser injetada por Ben Bernanke ao menos até lá.

Desde 2006, um mínimo US$ 26 bi são acumulados anualmente ao nosso colchão de divisas, com destaque aos mais de US$ 94 bi adicionados em 2007. Apesar da exceção de 2008, quando a cotação do dólar subiu abruptamente no chamado flight to safety após a quebra do banco Lehman Brothers, a moeda americana vem caindo consistentemente, conforme gráfico abaixo.

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Fonte: Bacen

A autoridade monetária brasileira, intelectualmente amparada também pelo ministério da fazenda, está de fato determinada a não deixar o dólar derreter. No entanto, os efeitos que tal política pode acarretar nas contas nacionais merecem alguns comentários.

Equalização Cambial e o Resultado do BC

Graças a um interessante artifício contábil (e de caixa), os efeitos da política cambial não mais serão absorvidos pelo balanço do Banco Central, conforme estipulado pela Lei de Nº 11.803, de 5 de novembro de 2008. Em tal lei foi introduzido o mecanismo da Equalização Cambial, onde: 

"o resultado financeiro das operações com reservas cambiais depositadas no Banco Central do Brasil e das operações com derivativos cambiais por ele realizadas no mercado interno, conforme apurado em seu balanço, será considerado:

I - se positivo, obrigação do Banco Central do Brasil com a União, devendo ser objeto de pagamento até o décimo dia útil subseqüente ao da aprovação do balanço pelo Conselho Monetário Nacional; e

II - se negativo, obrigação da União com o Banco Central do Brasil, devendo ser objeto de pagamento até o décimo dia útil do exercício subseqüente ao da aprovação do balanço pelo Conselho Monetário Nacional."

O conceito de resultado financeiro inclui o custo de carregamento das reservas cambiais, isto é, "o produto entre o estoque de reservas cambiais, apurado em reais, e a diferença entre sua taxa média ponderada de rentabilidade, em reais, e a taxa média ponderada do passivo do Banco Central do Brasil, nele incluído seu patrimônio líquido". Em outras palavras, é o custo de oportunidade de carregar as reservas cambiais no balanço do BC. Ademais, o resultado é afetado obviamente pela variação do câmbio e pela marcação a mercado dos títulos em carteira do BC.

Esta mudança na forma de apurar o resultado do Banco Central tem o intuito de neutralizar o balanço do BC da política cambial, fazendo com que a condução da política monetária e seus resultados contábeis não sejam afetados pela volatilidade do câmbio. Pelo menos este é o objetivo mais aparente.

Entretanto, mais do que fornecer maior transparência nas contas do BC, tal medida visa impedir que o patrimônio do Bacen se torne negativo devido aos efeitos de sua política cambial. Em outras palavras, evita que o BC se torne contabilmente insolvente.

Quando isto acontece,  o Tesouro é forçado a cobrir o prejuízo e recompor a carteira do BC via emissão de dívida (segundo legislação vigente). Foi justamente o que ocorreu em 2007, após um prejuízo contábil de R$ 47,5 bi, em grande parte fruto dos R$ 55,6 bi de custo oriundo das reservas cambias, o Tesouro Nacional teve que aportar mais de R$ 48 bi para cobrir o resultado do BACEN[1]

2.png

Fonte: Bacen (não está considerado o custo de oportunidade nos anos anteriores a 2008. A equalização cambial foi introduzida a partir daquele ano.)

No gráfico acima, vemos o resultado contábil apurado pelo Banco Central, bem como o custo das reservas cambiais e o nível destas no eixo da direita. Com sucessivos prejuízos registrados de 2005 a 2007, nosso BC buscou através do conceito da "equalização cambial" insular-se dos possíveis impactos negativos de carregar reservas cambiais em seu balanço. A inesperada e  súbita valorização do dólar em 2008 trouxe ao tesouro mais de R$ 170 bi de efeito positivo. Mas bastaram dois anos para todo este "lucro" ser mais do que compensado.

No atual arranjo, pouco muda na prática. Previamente, se o resultado do BC fosse negativo, o Tesouro cobriria via emissão de dívida. Após a introdução da equalização cambial o resultado do carregamento das reservas internacionais é transferido ao Tesouro antes da apuração do resultado contábil. A grande diferença é que o Banco Central passa a operar contabilmente sem arcar com custo da política cambial. Mas em qualquer uma das formas, o Tesouro deve recompor a carteira do BC para cobrir os prejuízos.

Devido ao aumento vertiginoso das reservas cambiais nos últimos 5 anos, o BC estaria cada vez mais sujeito ao risco dos juros internacionais e da volatilidade natural do câmbio. Simbolicamente, prejuízos constantes causariam certo abalo na imagem da autoridade monetária, atraindo atenção e o escrutínio do mercado, algo nada desejável ao BC brasileiro (ou a qualquer autoridade monetária no mundo).

Por mais que o Banco Central venha a apresentar um patrimônio líquido negativo, configurando um estado de insolvência, o BC não teria problemas para honrar seus passivos, uma vez que praticamente 100% de suas obrigações estão denominadas em moeda nacional de sua própria emissão. Na extrema hipótese de que houvesse uma "corrida bancária" ao BC, onde os bancos demandassem o resgate de suas reservas eletrônicas em espécie, bastaria o Bacen imprimir as cédulas necessárias via Casa da Moeda[2].  A situação seria mais complicada caso a autoridade monetária mantivesse a maior parte do seu passivo em moeda estrangeira[3].

Treasuries, o custo fiscal e algumas sugestões

Antes de argumentar se é possível e desejável que o BC acumule reservas visando conter uma apreciação do real (ver aqui, aqui, aqui e aqui), analisaremos as possíveis repercussões fiscais desta política.

A grande maioria das reservas cambiais está investida em títulos do Tesouro Americano, os chamados Treasuries. Consequentemente, o maior risco das reservas internacionais se encontra nestes ativos. Praticamente em zero, a única direção que as taxas de juros dos EUA podem ir é para cima.

Atualmente estima-se que 70% de todas as novas ofertas de Treasuries é adquirido pelo FED. Em junho encerra-se o segundo round de QE. Quando Ben Bernanke cessar a impressora, quem o substituirá? E a que preço? Tais inquietações levaram o maior investidor privado de Treasuries, Bill Gross, a desfazer-se recentemente de todo o seu portfólio de títulos de governo americano, mantendo aproximadamente 23% de seus ativos em espécie. Cash.

Sua lógica é evidente. Um aumento repentino nos rendimentos dos títulos americanos causaria perdas consideráveis na carteira de qualquer credor dos EUA. Em meio à grande incerteza do que sucederá ao final do QE2, é melhor proteger-se de uma enorme perda do que correr este risco com títulos rendendo juros irrisórios. Para investidores privados desprovidos da capacidade de criar dinheiro ex nihilo, nada mais prudente. 

Segundo Bernanke, os juros permanecerão baixos por um "período estendido de tempo". Por mais que não o admita, este poder não esta sob seu controle. Bernanke não poderá seguir monetizando a dívida americana mantendo juros artificialmente baixos indefinidamente. Cedo ou tarde será impossível mascarar o aumento generalizado de preços. Tampouco será possível que governos, como o brasileiro e o chinês, sigam acumulando Treasuries sem produzir um aumento doméstico dos preços.

Enquanto este cenário é postergado e o dólar segue se desvalorizando, maior será o custo fiscal de carregar as reservas cambiais. Quando nem mais os índices de core inflation do FED forem capazes de esconder a escalada de preços, será hora de aumentar os juros, como ocorreu na década de 80, quando Paul Volcker (então presidente do FED) precisou elevar os juros a mais de 18%. Com o atual nível de reservas, um súbito aumento de juros poderia causar perdas fiscais de mais de R$ 100 bi.

Prejuízo que poderia ser compensado por uma apreciação do dólar. Porém, juros a mais de 10% levariam o governo americano à beira da moratória. Num cenário como este, simplesmente não há como prever a direção do câmbio.

Alguns mais céticos advogam que Ben Bernanke simplesmente não elevará os juros e seguirá inflando e monetizando a dívida americana ad infinitum, gerando inevitavelmente uma hiperinflação e o colapso do dólar como moeda de reserva mundial e potencialmente como meio de troca.

Em suma, a atual conjuntura americana é insustentável. É uma questão de tempo. Seja qual for o cenário final, juros nas alturas ou hiperinflação, a estratégia de acumulação de Treasuries é no mínimo questionável.

O crescente estoque de reservas cambiais não é saudável para as contas nacionais. Carregar este custo e risco acarreta prejuízos para todos e benefícios para muito poucos.

Além do objetivo principal de conter a apreciação do real, alega-se que as reservas atuam como um hedge ao passivo externo brasileiro, o qual se encontra ao redor de US$ 260 bi. Mas, segundo esta retórica, faria sentido seguir acumulando reservas além deste nível? Não seria uma contradição lutar para conter a depreciação do dólar, o que reduz o passivo externo, e ao mesmo tempo afirmar que se está protegendo este mesmo passivo?

Câmbio flutuante deve, de fato, flutuar. Mas em qualquer direção e não somente naquela que ao governo lhe convém. E para que este realmente flutue é necessário que tanto a entrada quanto a saída de capitais seja efetivamente liberalizada e que, ademais, o jurássico arcabouço cambial regulatório seja completamente reformado.

Conclusão

Evidenciar o prejuízo causado pelo carregamento das reservas internacionais é justamente o que o BC não quer. Atrair demasiada atenção para as contas do Bacen é um descuido a ser evitado. Transparência é bom, mas nem tanto. Pelo menos não para a sobrevivência desta instituição. Um maior escrutínio do funcionamento do Banco Central tornaria claro a inerente impossibilidade de seu mandato. Tornaria evidente a instabilidade do sistema bancário por ele mantido. Tornaria evidente que aquele que promete lutar contra a inflação é o mesmo que a cria.

Mas as pessoas têm memória curta. Em alguns anos nem mais lembraremos desta mudança nas "praticas contábeis" do BC e o custo de carregamento das reservas cambiais será apenas mais um item nas contas do Tesouro Nacional, deixando o caminho livre para que o Banco Central possa operar sem maiores complicações.

Infelizmente, o problema não é apenas de memória, mas também de embasamento teórico. Vivemos numa armadilha, mas não é a armadilha da liquidez. É a armadilha das teorias. De teorias econômicas que contrariam a lógica e o bom senso.

Chegamos a tal extremo que não há mais nenhuma teoria econômica que consiga justificar as ações das autoridades monetárias mundiais desde a crise de 2008. A única resposta disponível é: algo precisava ser feito. E o que foi feito carece de fundamentação teórica e, até mesmo, empírica.

E é com este embasamento que o FED monetiza a dívida americana, inundando o mundo com dólares. Em contrapartida, banqueiros centrais, na vã tentativa de conter a apreciação de suas moedas, empilham insanamente mais e mais Treasuries. O que, por sua vez, permite que o governo americano se endivide ainda mais, forçando o FED a monetizar novamente, injetando mais liquidez nos mercados.

O que fará com que este círculo vicioso seja quebrado é de difícil previsão.

Mas este dia virá. Não há dúvidas. Este dia virá.

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Notas

[1] Por ser uma entidade privada (além de outros fatores), o FED americano apresenta uma situação distinta. Caso este se tornasse insolvente, o Tesouro Americano não poderia simplesmente "capitalizá-lo" como ocorre no nosso Banco Central. É preocupante, portanto, a criatividade de Ben Bernanke e Cia em assegurar a Reserva Federal Americana uma virtual imunidade contábil através de "passivo negativo". Ver artigo Robert Murphy sobre esta recente jogada contábil do FED http://mises.org/daily/5057/Accenttchuate-the-Positive-The-New-Accounting-at-the-Fed

[2] Ver artigo de Robert Murphy onde se especula a potencial insolvência contábil do FED  http://mises.org/daily/4869/Can-the-Fed-Become-Insolvent

[3] Ver David Howden "Can a Central Bank Go Broke?" http://mises.org/daily/3662.

Sobre o autor

Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é mestre em Economia da Escola Austríaca, com experiência mundial na indústria de elevadores e nos mercados financeiro e imobiliário brasileiros. é conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária.

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