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Política

Livre mercado para além do mercado

11/06/2010

Livre mercado para além do mercado

O homem é mau; um mentiroso e trapaceiro contumaz.  Sem o estado, todos matariam e estuprariam livremente e sem remorso.  O homem é podre, e é apenas o medo da cadeia (foi-se o tempo em que o medo da punição divina valia para algo) que nos mantém a um passo da autodestruição final.  É isso mesmo?

Bom, então considere a seguinte situação.  Semanas atrás, precisei de um adaptador de tomada (graças ao novo padrão do governo para sanar um problema inexistente).  Fui até uma lojinha de material elétrico próxima, mas eles não tinham; o vendedor me indicou uma outra loja na rua.  Notem, ele não precisava ter feito isso; essa outra loja é sua concorrente em vários serviços.  Fui à outra loja, e vi que o melhor era comprar logo uma tomada nova.  Só não sabia se era uma de 10 ou 20 ampères.  Solução?  O vendedor me deixou levar a de 10, testá-la e, se não fosse, trocar pela de 20.  Novamente, uma cortesia completamente voluntária.

Ações que, no curto prazo, parecem danosas à loja (vender uma tomada ao invés de duas), no longo prazo podem compensar (ganhar a confiança do cliente), e são fatos absolutamente corriqueiros.  Peça informação sobre um caminho e a maioria das pessoas ajudará e será veraz.  A vida em sociedade é baseada na cooperação, e essa não é forçada ou dissimulada, mas voluntária e em geral sincera, caso contrário não funcionaria.  A idéia do egoísta esclarecido que se comporta exatamente como um homem bom exclusivamente por motivos egoístas é um mito; caráter e ações não são realidades separadas.  Quando quem presta um serviço tem má vontade ou é desonesto, isso aparece.  O mercado é exatamente o processo pelo qual a ajuda mútua, e portanto a boa vontade mútua, é facilitada e incentivada, pois harmoniza o bem de cada um com o bem dos demais.  A confiança e a confiabilidade são remuneradas, e as práticas anti-sociais punidas.

Claro, isso não garante que todos serão bons.  A minha compra de tomada estava, por exemplo, ligada à compra de uma lava-louça cuja instalação deu um enorme problema, custando muito tempo e dor de cabeça em conversas frustrantes com o SAC da empresa.  E isso se explica.  Empresas grandes têm que ter uma política padronizada de trocas e outros serviços gratuitos para impedir que, de pequenas decisões generosas de muitos atendentes, emirjam grandes prejuízos.  Mas mesmo nelas, na medida em que têm que sobreviver no mercado, o que prevalece é a cooperação.  Vejam só: saindo uma vez do caixa do McDonalds com o almoço na bandeja, derrubei o refrigerante no chão.  Qual a reação dos atendentes?  Deram-me um novo.  Eles sabem que brigar por migalhas é prejudicial para eles próprios, mesmo que isso lhes custe uma Coca.  E até no caso da lava-louça, no final das contas, a empresa responsável pela instalação forneceu a peça nova.

São exemplos casuais -- cada leitor terá vários -- que ilustram um fato antropológico e moral.  O homem não é um calculista à espera da primeira oportunidade de passar a perna.  Quem age assim prejudica a si mesmo; confiança e boa vontade são características muito difíceis de se dissimular ao longo do tempo, e constituem parte importante do capital humano.  Quanto menos confiança, mais advogados, juízes, contratos, e menos possibilidades de transação; tudo isso tem um custo, não apenas monetário.  Por outro lado, boas relações resolvem problemas de ambos os lados e deixam todos felizes, criando laços de estima.  Como Aristóteles já apontara, o fazer negócios juntos, a harmonia de utilidades, estabelece entre as partes um tipo de amizade.

Outro exemplo banal: um dia, indo para o aeroporto, vi num trecho ao lado esquerdo da marginal, junto a uma rampa, barracos num espaço muito estreito.  Era um lugar barulhento, sujo e desagradável.  E eis que noto, apertada entre os demais barracos, uma barraquinha de comes e bebes.  Está aí: a força vital do espírito humano, que inventa soluções mesmo sob as condições mais inóspitas.  A condição do lugar era, para nossos padrões, deplorável; mas aquela barraquinha tornava-a um pouco melhor.  Não seria um crime matá-la com regulamentações as quais, não importa quão leves, o dono nunca seria capaz de obedecer?  Pois o momento em que um fiscal passasse por lá seria o momento em que aquele pequeno oásis deixaria de existir.  Felizmente, o governo não vê tudo; e existe a corrupção.  Imagine se as regulamentações e tributos do país fossem aplicados sempre e à risca; camelôs, vendedores piratas e, enfim, todo o mercado informal, que beneficiam tantos consumidores e empregam tantos trabalhadores, sumiriam.  Hoje em dia, eles funcionam fora da lei; e - surpresa! - funcionam.  Sem decretos políticos, sem vereadores e deputados inúteis, o Promocenter ia muito bem obrigado.

Vejam o couch-surfing: pessoas disponibilizam suas casas para viajantes se hospedarem de graça, e sabem que, quando viajarem, também encontrarão pousada.  O único sistema de controle são as opiniões dos próprios usuários publicadas no site.  Qualquer um pode se cadastrar.  E adivinhem: funciona muito bem, como um amigo meu que já hospedou gente do mundo inteiro pode garantir.  Haveria algo mais contrário ao espírito dessa rede do que se o governo decidisse "regulamentá-la", criando requisitos mínimos para as casas ("devem ter pelo menos dois banheiros e um sistema de combate a incêndio certificado") e para os viajantes ("devem enviar, duas semanas antes da visita, cópia autenticada do passaporte e trazer inventário da bagagem pessoal")?  A quantos seriam reduzidos os membros dessa comunidade vibrante?  Pois a mesma destruição burra ocorre em tantos outros serviços; a diferença é que estamos acostumados e não percebemos o quão melhor eles poderiam ser.  Por que absolutamente todo estabelecimento comercial deve ter uma lixeira na frente?  Por que um shopping precisa de 5% de vagas para idosos?  Por que toda vitrine deve ter tarja sinalizadora?  Soluções pontuais são transformadas em imposições ossificantes; o que é inteligente em alguns casos costuma ser estúpido se transformado em lei universal.

A cooperação livre entre os homens é um fato; é um fenômeno que emerge naturalmente, sem qualquer necessidade de uma autoridade estatal para regular, controlar, medir e definir (o que só congela e endurece o que deveria ser fluido e flexível para melhor se adaptar às infinitas circunstâncias humanas).  E essa cooperação se dá em todos os níveis da sociedade; não é privilégio da "elite", embora seja isso mesmo que vai acontecer se o governo continuar a dificultar e proibir a existência de versões mais baratas, populares e, portanto, precárias se comparadas às "melhores práticas".  Se o padrão mínimo legal for o Golf, não existirão nem Gols, nem Fuscas, nem Brasílias; mais andarão a pé.

Trata-se de um problema de mentalidade, que afeta a todos os políticos, burocratas, legisladores, advogados e engenheiros sociais que acreditam que suas definições mal-escritas num pedaço de papel criam e ordenam as relações humanas; quando na verdade as corrompem e destroem, e instauram, em seu lugar, a desconfiança e a remuneração por adesão a procedimentos sem relação direta com o bem-estar do próximo.  A imensa maior parte da classe política brasileira não só é inútil como prejudicial; e ainda pagamos seus salários.  Ao invés de punir crimes (roubos, fraudes), querem prever e delimitar o que é mutuamente benéfico, limando de imediato todas as manifestações que escapam a seu olhar estreito.  A guerra de independência americana foi travada por menos.

Os impostos, encargos, regulamentações e regras aos quais estamos sujeitos (e mesmo assim, pode ter certeza que se um fiscal quiser, ele encontrará alguma infração - são 85 tributos e dezenas de milhares de leis) não nos afetam apenas na "esfera econômica", como se a vida humana fosse divisível em partes estanques e como se o trabalho e o consumo fossem realidades menores, de pouca importância; toda nossa existência passa pelo crivo estatal.  E ainda se acredita na mentira de que a liberdade interessa só aos ricos.  Isso é falso.  O liberalismo econômico não é o sistema das grandes empresas, dos grandes bancos, dos tecnocratas.  Claro, algumas grandes empresas seriam beneficiadas com um mercado mais livre; mas elas não seriam as maiores ganhadoras, mesmo porque muitas recebem ajuda do governo, seja direta (concessões, subsídios) ou indireta (as regulamentações infinitas e encargos pesados que impedem a existência dos pequenos).  O principal beneficiário do liberalismo é todo homem honesto em suas relações cotidianas, que estão cada vez mais burocratizadas por um sistema desumano que demanda sempre mais recursos para se sustentar e exige cada vez mais controle de nossas vidas.

Ser livre significa, enquanto consumidor, poder escolher aquilo de que mais se gosta na gama de preços e qualidades compatível com a própria renda; enquanto produtor, poder trabalhar no que se quiser, e prover o serviço que se quiser, da melhor forma que se souber, sem que ninguém lhe impeça; e, enquanto pessoa humana completa, viver de acordo com o que se considere o melhor sem impedir ninguém de fazer o mesmo.  Sem precisar da aprovação de qualquer instância governamental, sem ter que apresentar documento algum e nem emitir nota fiscal, pois o fisco não tem direito nenhum de saber o que você faz da vida e muito menos de puni-lo se for bem-sucedido.  A liberdade permite que, ocasionalmente, se aja mal?  Sim.  E para alguns desses casos (os que violem direitos alheios) existem as leis e os tribunais.  Mas, e isso é o principal, é só com ela que se pode agir e viver bem, buscando, adaptando e criando soluções para os problemas de todas as esferas da existência humana, para muito além da (embora a inclua) compra e venda de ações.


Sobre o autor

Joel Fonseca

Economista e filósofo. Colunista da Folha e Exame Hoje. Integrante do MyNews. Youtuber em formação.

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