Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Política

Mundo corporativo não é mercado

19/05/2015

Mundo corporativo não é mercado

Minha geração reluta em se entregar de corpo e alma ao mundo corporativo. As corporações se desdobram para reter talentos, isto é, para manter empregados jovens que em gerações anteriores aceitariam pagar pelo privilégio de representar aquela marca campeã. É bom. Já que damos a elas nosso melhor, que elas ao menos nos disputem a tapas.

Os jovens profissionais do terceiro milênio, os millenials que vieram co-criar sua própria revolução, querem flexibilidade, criatividade, autonomia; querem ditar os termos de sua relação com o mundo 2.0; fusão do pessoal e do profissional; empreender; autorrealização; sentido da vida; sustentabilidade. Tudo besteira de primeira, sem dúvida, mas ainda assim menos deprimente do que um relógio de ouro e um tapinha nas costas depois de 40 anos incorporando a identidade de uma organização que definitivamente não é você.

Um efeito promissor disso é que vamos reaprendendo uma verdade profunda: mercado não é igual a mundo corporativo. A cultura que vigora dentro das empresas, os termos, os modismos de gestão, as relações patrão-funcionário, a competição entre colegas pelo aumento, a política de bônus -- nada disso é mercado. Au contraire: isso existe justamente para escapar do mercado.

Mercado é oferecer um valor a consumidores que escolhem se irão ou não pagar por ele. A empresa, ou melhor, toda organização, é como uma célula cuja parede isola (parcialmente) seus membros dessa necessidade. No caso das empresas, as células nadam na corrente sanguínea do mercado. A empresa produz valor e o oferece aos demais; mas todos os processos internos que levam a essa criação de valor se dão sob outros termos.

Em vez de estar continuamente negociando com indivíduos ou empresas, anotando recados e transferindo ligações, a firma contrata uma secretária que fica lá e recebe um salário fixo. Adeus oferta, demanda, preços. Sua relação com a empresa deixa de ser a de mercado e passa a se guiar por critérios definidos internamente.

A gestão eficiente, meritocrática, transparente, competitiva, que você pensa que é mercado, é só mais um jeito de se organizar um empreendimento, e pode inclusive ser aplicado a organizações de fora do mercado, como o próprio estado.

Em contrapartida, há organizações plenamente inseridas no mercado (isto é, que não têm seu sustento garantido pelo uso da violência) e que imitam padrões estatais tradicionais ao, por exemplo, adotar uma hierarquia militar ou reproduzir as dinâmicas de poder das antigas cortes monárquicas.

O interior de uma empresa pode variar muito, mas não é mercado.

"Mas como assim? O funcionário não está ali dando duro, sentindo a pressão do chefe, competindo com os colegas pela promoção? Competição, cara; isso é mercado!"

Pois então vamos comparar a competição que se dá no mercado (na verdade, concorrência) e a que existe no mundo corporativo, e ver as diferenças que se escondem sob o mesmo nome.

Dentro da empresa, a competição segue critérios definidos por um superior. O objetivo dos competidores é agradar o superior e desempenhar funções que lhes foram designadas. Ao fazê-lo, repetem a dinâmica básica do sistema em que vivemos: cumprir tarefas dadas por alguém acima de nós na hierarquia em que estamos inseridos, e por ele ser cobrado e avaliado. As regras e expectativas caem das mãos de Deus; a estrutura dessas relações é como que um dado da realidade objetiva.

No mercado, não há critérios dados de antemão. Todas as estruturas são dissolúveis e substituíveis. Não há nenhuma autoridade designando funções ou cobrando resultados. Ou o sujeito tem a ousadia de fazer algo que ele crê que os demais quererão, ou nada acontece; ninguém espera nada. Não há ordens a serem seguidas, mas sim possibilidades de valor a serem descobertas. Seu desempenho, além disso, não depende do juízo de um superior ou de algum indicador decidido por comitê. Não há prêmios. Recebe-se na medida em que se satisfaz os desejos de outras pessoas, que não têm autoridade sobre você; clientes, e não chefes.

Numa organização, a competição, quando existe, é parte do desenho de sua dinâmica interna: um modo de aumentar a dedicação dos funcionários e de selecionar o melhor.

No mercado, a competição é um fenômeno secundário; incidental, e não essencial. Não há um caminho determinado em que vários competem por um número limitado de vagas. Há apenas pessoas como você, e se você quiser a atenção ou os serviços delas, terá que persuadi-las a investi-los no que você oferece. O processo de mercado é essencialmente de cooperação social. Ocorre que, como ninguém é capaz de ditar os caminhos dessa cooperação, conflitos emergem.

Dado que muita gente tenta satisfazer as mesmas demandas, e que nossa atenção e nossos recursos são limitados, então apenas os melhores conseguirão o que querem. Por isso falamos em concorrência: caminhos empreendedores que ocorrem paralelamente e que apelam a uma mesma demanda. Ela existe e pressiona a todos, mas não é parte do desenho do sistema, e sim decorrência da escassez dos recursos e da abundância de ideias sobre como utilizá-los para melhorar a vida dos demais.

Ao contrário da competição, a concorrência não obedece a um juiz fixo e nem tem um fim definido. Ninguém pode obrigar os outros a investir nele, mas nada impede que cada um encontre seu próprio nicho, ou que competidores coexistam sem jamais chegar a um vencedor.  A própria ideia de um caminho com início e término, com condições de largada e resultados finais, deixa de fazer sentido. Há só o processo contínuo de tentativa e erro, criação e descarte, desbravando novos continentes.

A competição esportiva, outra metáfora favorita, assemelha-se ao que ocorre numa empresa, e não à concorrência do mercado. Participantes e regras pré-definidos, uma estrutura dada, alguma instância de julgamento, e exclusão ou derrota dos perdedores como parte essencial do processo. Dez atletas correm para cruzar a linha de chegada e ganhar o ouro; na mente de cada um deles, é vitória ou nada.

Já no mercado, as possibilidades se multiplicam: talvez o gramado do lado da pista seja mais interessante… vou parar e ver o que dá pra fazer com ele. Sim, talvez o recorde mundial caia; ninguém define quais os recordes que interessa bater.

O mundo corporativo pode se configurar de várias maneiras, pode se organizar segundo diversas regras e pode promover ou demitir pessoas com critérios múltiplos. Pode dar promoção por tempo de serviço ou incitar a concorrência mais selvagem. Nada disso é mercado.

O mercado é justamente a possibilidade de negar essas regras, de sair da estrutura pré-estabelecida; seja para migrar para uma alternativa existente ou para criar outra coisa.

Se o mundo corporativo é um jogo com regras definidas, o mercado é um brinquedo, cujos usos dependem da criatividade dos envolvidos. Mas essa brincadeira determina nossas vidas, então trate de brincar. O mundo corporativo é uma das soluções encontradas nessa brincadeira, mas não é a única e nada garante que durará para sempre. Se você o ama, ou se você o odeia, o mercado é seu lugar.


Sobre o autor

Joel Fonseca

Economista e filósofo. Colunista da Folha e Exame Hoje. Integrante do MyNews. Youtuber em formação.

Comentários (71)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!