Em
1945, o último bastião da resistência nazista na Alemanha entrou em colapso, o
III Reich deixou de existir e o país ficou sob o controle militar dos Aliados. Mesmo antes desta rendição final, os Aliados
já haviam se dado conta de que um de seus problemas mais graves seria o que
fazer com a economia alemã.
Durante
a Segunda Conferência de Quebec, em setembro de 1944, tanto Franklin Roosevelt
quanto Winston Churchill concordaram em criar um programa para "eliminar as
indústrias bélicas do vale do Ruhr e do Sarre... visando a converter a Alemanha
em um país primariamente agrícola e de caráter bucólico." Isso passou a ser conhecido como o Plano
Morgenthau, em homenagem ao Secretário do Tesouro americano Henry Morgenthau, o
mais fervoroso defensor de tal ideia.
A
própria ideia de transformar um país altamente industrializado e densamente
habitado como a Alemanha em uma nação de camponeses rústicos já era em si
absurda. Mais tarde, o próprio Roosevelt
viria a admitir que "ele não tinha ideia de como ele havia levado isso a sério;
que ele evidentemente não havia pensado muito em tudo aquilo."[1]
Infelizmente,
mesmo após a rejeição do Plano Morgenthau, em decorrência de uma forte reação
crítica do público e da imprensa, a ideia de se desindustrializar a Alemanha
permaneceu fazendo parte da plataforma dos Aliados.
Na
Conferência de Potsdam, em julho de 1945, a questão da economia da Alemanha
surgiu novamente. Ficou decidido que a
capacidade industrial alemã seria limitada a 50-55% do seu nível de 1938, ou a
aproximadamente 65% daquele de 1936.
Algum tempo depois, esse nível foi elevado para 100% do nível de 1936
nas zonas sob ocupação americana e britânica (Bizona); porém, enquanto isso, a capacidade
produtiva alemã era de apenas 60% daquela de 1936, e a produção vigente era de
apenas 39% daquela de 1936.[2]
A inflação reprimida
A
economia alemã continuou definhando ao longo de 1946 e 1947, incapaz de começar
a apresentar qualquer sinal de recuperação.
Pudera: os Aliados haviam mantido intacto praticamente todo o sistema de
controle econômico dos nazistas. Isso
porque eles não chegavam a nenhum acordo sobre o que fazer com a economia e,
por conseguinte, optaram por manter o status
quo até onde pudessem. No final,
provou-se impossível conciliar os objetivos do Ocidente com os da União
Soviética, o que resultou na divisão da Alemanha na Alemanha Ocidental e na
Alemanha Oriental.
Após
esta divisão, a principal razão para manter os controles sobre a economia era a
inflação monetária: a quantidade de dinheiro na economia, no sentido amplo,
havia aumentado seis vezes entre 1936 e 1947, de menos de 50 bilhões de
reichsmark para algo em torno de 300 bilhões (70 bilhões em cédulas, 100
bilhões em conta-corrente e 125 bilhões em contas de poupança).[3] Em decorrência desta contínua inflação
monetária, o marco havia se tornado virtualmente sem valor.
As
autoridades ocidentais esperavam que, se os controles fossem mantidos, com
preços e salários rigidamente congelados, a economia continuaria funcionando.[4]
Este
curioso fenômeno de controle direto sobre todos os preços e salários, em
conjunto com uma rápida inflação monetária, passou a ser conhecido como inflação reprimida. Infelizmente, ao se combinar os efeitos
nocivos tanto da inflação monetária quanto do planejamento estatal, o resultado
final é muito pior do que seria com apenas um deles. Há uma distorção dupla sobre a oferta e a
demanda: além das distorções normais provocadas pelo planejamento estatal e
pela inflação monetária, a estrutura de preços deixa de refletir as mudanças no
valor do dinheiro causadas pela inflação monetária. Isso leva a uma queda acentuada na produção;
a escassez torna-se inevitável. O
resultado final e inevitável é a regressão à economia de escambo. E foi exatamente isso o que ocorreu na
Alemanha.[5]
As
empresas que desejassem continuar operando tinham de contratar especialistas
chamados "compensadores". A função deles
era conseguir trocar o que a empresa havia fabricado por aquilo de que ela
necessitava. Consequentemente, tal
processo era muito longo e confuso, dado que várias transações intermediárias tinham
de ser feitas com grande frequência. O
resultado era um enorme desperdício em tempo e gastos indiretos para se obter
coisas que, antes, poderiam ser conseguidas quase que imediatamente.
Desnecessário
dizer que isso deixou a já deprimida economia alemã terrivelmente
emperrada.
Não
demorou muito para que os trabalhadores e empregados em geral também
insistissem em ser pagos em mercadorias. Ato
contínuo, eles trocavam as mercadorias que recebiam por aquelas coisas de que
necessitavam. Uma consequência adicional
era que os trabalhadores não mais tinham qualquer incentivo para trabalhar mais
e ganhar mais dinheiro: como havia racionamento, todos trabalhavam apenas o necessário
para comprar os poucos e racionados bens que podiam obter a cada semana a
preços estipulados artificialmente. Por
lei, era necessário ter um emprego para se obter as papeletas de racionamento;
sendo assim, os trabalhadores adquiriram o hábito de ir trabalhar apenas três
ou quatro dias por semana. Seu tempo
livre adicional passou a ser gasto em trabalhos de jardinagem, na confecção de
artigos para escambo ou atuando diretamente no mercado negro, bem mais
lucrativo.
A reforma monetária
Finalmente
este pseudomercado entrou em
colapso. Como notou um
observador, a economia alemã "estava organizada de tal forma que o interesse
próprio dos indivíduos e das empresas era estritamente oposto ao interesse comum. Trabalhar em um emprego regular era a menos
lucrativa das ocupações, e a mera sobrevivência dependia de se saber aproveitar
as brechas da lei. Já em meados de 1948,
a economia havia atingido um estado de total paralisia que resultou na quase
inanição de uma grande fatia da população".[6]
Mas,
felizmente para a Alemanha, um cavalheiro chamado Ludwig Erhard, que havia sido
discípulo de Wilhelm Roepke — sendo que este havia sido discípulo de Ludwig
von Mises —, foi nomeado Diretor da Administração Econômica Bizonal. Erhard era um inflexível e vigoroso adepto do
livre mercado, e estava disposto a dar a ele uma chance. No auge da crise, em junho de 1948, ele
propôs um ousado e extenso plano para restaurar a economia, um plano que
combinava uma radical reforma monetária em conjunto com uma completa abolição
dos controles econômicos.
A
reforma monetária estava marcada para ocorrer nas zonas britânicas e americanas
no dia 20 de junho de 1948. O cerne
deste programa seria uma redução da oferta monetária em incríveis 90% seguida
da emissão de um novo marco alemão, o deutsche-mark, que manteria seu valor e
que não mais seria inflacionado até perder totalmente seu valor. Os detalhes da reforma monetária são um tanto
intrincados e estão fora do escopo deste artigo. Basta dizer que todos os reichsmark foram
trocados por novos deutsche-marks a uma taxa de 10 para 1, sendo que a quantia
máxima de deutsche-marks a ser impressa foi estipulada em 10 bilhões.
Adicionalmente,
os depósitos bancários em nome de instituições públicas — do governo militar,
dos estados e suas subdivisões, da empresa ferroviária estatizada, e dos
Correios — foram invalidados sumariamente.
Da mesma forma, todas as obrigações assumidas anteriormente pelo Reich,
bem como todos os seus depósitos interbancários, também foram invalidados. Uma reserva em dinheiro e algum estoque de
capital foram concedidos a todas as instituições financeiras, fornecendo desta
forma os ativos necessários para lastrear os novos passivos destas
instituições.
Além
desta reforma monetária, o vasto emaranhado de controles estatais sobre a
economia também tinha de ser abolido para que a reforma monetária pudesse
funcionar. Nos bastidores, isso não era
algo fácil de ser feito, pois a Alemanha ainda estava sob ocupação militar, e
virtualmente tudo o que os alemães quisessem fazer tinha de ter a prévia
aprovação dos Aliados. Uma dificuldade
adicional estava no fato de que, na Grã-Bretanha, o primeiro governo socialista
acabava de ser eleito e, como consequência, os britânicos já estavam tentando
difundir suas políticas socialistas também para a zona de ocupação.[7]
Os
Aliados observaram a reforma econômica com grande ansiedade, dúvida e
apreensão. Com efeito, o general Lucius
D. Clay, nomeado pelos Aliados como diretor de política econômica, enviou um
ríspido memorando para Ludwig Erhard alertando-o de que os controles econômicos
do governo militar não poderiam ser alterados sem uma prévia permissão. A corajosa resposta do professor Erhard
merece ser repetida continuamente até o fim dos tempos: "Eu não alterei seus
controles; eu os aboli".[8]
Como
o próprio Erhard viria a dizer mais tarde: "Foi estritamente especificado pelas
autoridades britânicas e americanas que seria necessário obter permissão para
que qualquer mudança de preços pudesse ser feita. Parece que os Aliados jamais haviam imaginado
que alguém pudesse ter a ideia não de alterar os controles de preços, mas de
simplesmente removê-los".[9]
E
foi exatamente isso o que Erhard fez, e de uma só vez ele desatrelou toda a
economia alemã.
O livre mercado em ação
À
medida que a data da implementação destas reformas se aproximava, o país ia se
tornando mais apreensivo, e a crise econômica parecia piorar
continuamente. Ao mesmo tempo, os
críticos socialistas se animavam e elevavam os gritos de condenação ao plano.
No
dia 19 de junho, um sábado, a maioria das lojas estava vazia. No dia 21 de junho, segunda-feira, como num
passe de mágica, as lojas estavam novamente abastecidas. Dois franceses,
Jacques Rueff e Andre Piettre, registraram de forma teatral este milagre ocorrido da noite
para o dia:
O mercado negro de repente desapareceu. As vitrines das
lojas amanheceram cheias de bens, as chaminés das fábricas voltaram a soltar
fumaça intensamente, e as ruas fervilhavam de caminhões de carga. Por todos os cantos, o barulho das construções
substituiu o silêncio sombrio dos escombros. Se a recuperação foi uma surpresa
grande, sua rapidez foi uma surpresa ainda maior. Em todos os setores da economia, a vida foi
retomada assim que os relógios badalaram as primeiras horas do dia da
reforma. Apenas uma testemunha ocular
pode oferecer um relato acurado do súbito efeito que a reforma monetária teve sobre
o tamanho dos estoques e sobre a variedade e riqueza dos bens à mostra. As lojas se encheram de bens da noite para o
dia; as fábricas voltaram a trabalhar a toda.
Na véspera da reforma monetária, os alemães perambulavam sem rumo pelas
cidades à procura de alguns itens comestíveis adicionais. Um dia depois, eles não pensavam em mais nada
a não ser em produzi-los. Num dia, a apatia era
nítida em suas faces; no outro, toda a nação olhava esperançosa para o futuro.[10]
Como
o próprio Erhard viria a observar este fenômeno: "Antes da reforma monetária,
nossa economia era como um campo de prisioneiros de guerra; os reclusos eram
mantidos vivos em parte pelos Aliados.... Imediatamente após a reforma, as
cercas, barreiras e muralhas desabaram com estonteante velocidade tão logo o
campo de prisioneiros ganhou uma nova e confiável moeda".[11]
Os
resultados rapidamente comprovaram a sagacidade de ambas as reformas, a
monetária e a de liberação geral dos preços e salários. A tabela a seguir, por exemplo, mostra que, entre
junho e dezembro de 1948, houve um
aumento de 53% da produção naquelas áreas contempladas pelas reformas:
Índice de
Produção (1936 = 100)[12]
Abril
|
53
|
Setembro
|
70
|
Maio
|
47
|
Outubro
|
74
|
Junho
|
51
|
Novembro
|
75
|
Julho
|
61
|
Dezembro
|
78
|
Agosto
|
65
|
|
|
Já
em 1949, o índice de produção encerrou em 143% daquele de 1948. Ao longo das duas décadas seguintes, a
Alemanha continuou a ter uma das maiores taxas de crescimento do mundo.
Economia keynesiana
É
óbvio que, perante estes resultados, vários economistas rapidamente se
apressaram em querer atribuir os créditos do sucesso às suas ideologias
favoritas. Aqueles que não queriam dar
nenhum crédito às políticas de livre mercado de Erhard prontamente começaram a
oferecer suas próprias explicações para a fenomenal recuperação da
Alemanha. Uma explicação que se tornou
bastante popular foi a de que a Alemanha utilizou princípios keynesianos em sua
recuperação.[13] Essa proposição já foi completamente demolida
em outras obras,[14] mas
continua sendo difundida porque economistas keynesianos são invejosos do fato
de que nenhuma das notáveis recuperações ocorridas no pós-guerra realmente
utilizou qualquer tipo de economia keynesiana.
Ao contrário: todas se basearam universalmente nos princípios do livre
mercado. Como observou o professor de
Harvard, Gottfried von
Haberler:
Em todos os países industriais desenvolvidos, as políticas
de recuperação econômica, de estabilização e de crescimento foram muito mais
bem-sucedidas após a Segunda Guerra Mundial do que após a primeira. Porém, é difícil atribuir este fenômeno à
difusão do pensamento keynesiano. Nenhum
dos economistas e nenhum dos estadistas que foram amplamente responsáveis pelos
variados milagres econômicos do pós-guerra pode ser chamado de keynesiano: nem Camille Gutt na Bélgica,
nem Luigi Einaudi na
Itália, nem Ludwig Erhard
na Alemanha, nem Reinhard Kamitz na Áustria, nem Jacques Rueff na França. O maior milagre econômico de todos, o
japonês, parece ter sido realizado sob governantes e estadistas japoneses
bastantes conservadores, com o auxílio de conselheiros americanos
ultraconservadores. Aos numerosos keynesianos
e marxo-keynesianos restou apenas observar o fenômeno, em impotente oposição.[15]
O
que podemos concluir do episódio alemão?
Primeiro,
é necessário entender que qualquer interferência realizada por burocratas e
planejadores estatais sobre o sistema de preços irá inevitavelmente distorcer o
sistema de produção, gerando um arranjo menos satisfatório do que aquele que
existiria caso não houvesse nenhum interferência.
Segundo,
não há na história econômica nenhum exemplo mais pungente de uma "política de
pleno emprego" que tenha funcionado melhor que a alemã — não houve nenhum
planejamento federal, não houve política industrial, não houve modelos
computadorizados para a economia, não havia um exército de burocratas dando
palpites e ditando ordens, não houve inflação monetária com intuito de 'estimular
a economia', e não houve políticas keynesianas. Foi justamente a ausência de todos estes
componentes que infestam as economias intervencionistas atuais o que tornou
possível o renascimento econômico alemão.
Terceiro,
o episódio alemão demonstra que uma deflação monetária,
desde que ocorra em um ambiente com total liberdade de preços e salários, pode
ser algo economicamente benéfico, sem necessariamente criar uma depressão —
pelo menos no caso de uma economia que havia sido praticamente destruída pela
imposição de controles de preços e salários.
A deflação restaurou a fé na nova moeda, uma vez que ela foi acompanhada
da volta dos preços flexíveis e da abolição de todos os controles sobre a economia. O processo de trocas indiretas intermediadas
pelo uso do dinheiro pôde avançar firmemente, pondo um fim à economia baseada
no escambo, à sua inerentemente baixa divisão do trabalho e aos seus mercados extremamente
limitados e manietados.
As
reformas de livre mercado de Ludwig Erhard restauraram a liberdade dos mercados
na Alemanha e, com isso, libertaram as inexoráveis leis da ação humana. Foi a livre concorrência baseada na
propriedade privada o que deu novas esperanças e permitiu o surgimento de um
fenômeno econômico que surpreendeu o mundo e se tornou conhecido como "o
milagre da recuperação alemã".
Infelizmente,
Erhard tinha uma vantagem política que o mundo atual não mais usufrui. Ele teve a liberdade de abolir os controles
que haviam sido impostos pelos Aliados; ao fazer isso, ele ganhou o apoio
político da população alemã. No entanto,
os controles haviam sido criados originalmente pelos nazistas; os Aliados
apenas os estenderam por mais três anos após a Alemanha ter se rendido. É mais fácil abolir controles estatais
criados por um exército de ocupação estrangeiro do que abolir todo um sistema
de regulação que políticos nativos e eleitos democraticamente criaram em nome
do "interesse público". É politicamente muito
mais difícil efetuar ações econômicas corretas e sensatas quando, nas imortais
palavras de Pogo Possum,
"Conhecemos o inimigo e ele somos nós".
[1] Henry L. Stimson and McGeorge Bundy, On Active Service in Peace and War (New
York: Harper & Bros., 1948), 581.
[2] Ludwig
Erhard, Prosperity Through Competition (New York: Frederick A. Praeger, 1958),
10?11.
[3]
Karl-Heinrich Hansmeyer und Rolf Caesar, "Kriegswirtschaft und Inflation
(1936?1948)," in Währung und Wirtschaft,
418.
[4] Ver
Nicholas Balabkins, Germany Under Direct
Controls (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1964); Henry
Hazlitt, "The German Paralysis," Newsweek
(21 de abril, 1947), 82; John Davenport, "New Chance in Germany," Fortune
(Outubro de 1949), 73.
[5] Wilhelm
Roepke, "Repressed Inflation," Kyklos,
vol. 1 (1974), fasc. 3, 242?53.
[6] F. A.
Lutz, "The German Currency Reform and the Revival of the German Economy," Economica (Maio, 1949): 122.
[7] Citado
in Erhard, Prosperity, 12
[8] Volkmar
Muthesius, Augenzeuge von drei Inflationen
(Frankfurt am Main), 1973,
111.
[9] Erhard, Prosperity, 14
[10] Citado
in Erhard, Prosperity, 13; ver também
Jacques Rueff, The Age of Inflation
(Chicago: Henry Regnery, Gateway Edition, 1964), 86?105
[11] Ludwig
Erhard, Germany's Comeback in the World
Market (New York: Macmillan, 1954), 21.
[12] Lutz,
"German Currency Reform," 132.
[13] Walter
Heller, "The Role of Fiscal-Monetary Policy in German Economic Recovery," American Economic Review (Maio, 1950):
533?47.
[14] Egon
Sohmen, "Competition and Growth: The Lesson of West Germany," American Economic Review (Dezembro,
1959): 986?1003.
[15] Robert
Lekachman, ed., Keynes' General Theory:
Report of Three Decades (New York: St. Martin's Press, 1964), 295.