Em 2015, dezoito peruanos fugiram de uma oficina de costura
na zona leste de São Paulo e correram para uma delegacia. Contaram trabalhar 17
horas por dia e que um vigia os proibia de sair da oficina.
Um ano antes, motoristas da mineradora Milplan, de Minas
Gerais, foram flagrados trabalhando com carteira assinada, férias, recesso
remunerado no fim de ano e 13º salário. Como ganhavam adicional de horas
extras, alguns trabalhavam mais que doze horas por dia.
O leitor há de concordar que as duas situações são bem
diferentes. A primeira tem restrição de liberdade e obviamente motiva um
processo criminal e a prisão do dono da oficina. Já na segunda há, se muito, uma
irregularidade trabalhista.
Apesar disso, os dois casos renderam acusações do mesmo
crime. Um fiscal considerou excessiva a quantidade de horas extras dos
motoristas e enquadrou a mineradora por manter trabalhadores em "regime
análogo à escravidão".
A maioria das denúncias de trabalho escravo que aparecem nos
jornais é como o segundo caso. Não há dívidas ou documentos retidos, resgate ou
libertação de trabalhadores. As denúncias nem de longe preenchem os requisitos
da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual
trabalho escravo é aquele "executado por alguém sob ameaça de sanção ou
para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente".
Ou seja: "trabalho análogo à escravidão"
simplesmente não é aquilo que a OIT, a maioria dos países e os cidadãos em
geral entendem por trabalho escravo.
Essa confusão acontece porque, até semana passada, o Brasil
considerava como análogo à escravidão o trabalho com "jornada
excessiva" e "condições degradantes". Como cabia aos fiscais do
Trabalho decidir, de maneira totalmente subjetiva, o que são condições
degradantes, a regra dava margem a interpretações fantasiosas.
Em 2013, a fiscalização encontrou vinte funcionários de uma construtora de Belo Horizonte que tinham registro na carteira, recebiam horas-extras e adicionais de produção. Um pedreiro disse que ganhava 5 mil por mês. Como não havia lençóis nos beliches do alojamento e os banheiros estavam sujos, o fiscal enquadrou a construtora como escravista.
O alojamento era, de fato, precário, mas muitos dos trabalhadores poderiam achar que a remuneração compensava. Um salário de 5 mil reais, afinal, colocava o funcionário entre os 20% de brasileiros mais ricos daquele ano. Como revelou a revista Exame, casos assim são comuns.
[N. do E.: como
lembro o site O
Antagonista, "Havia produtor rural sendo acusado de "trabalho escravo" por
auditores petistas porque o trabalhador preferia almoçar debaixo de uma árvore em vez de no refeitório, ou porque a altura das camas dos dormitórios diferia um
pouco da norma — e lá ia o empregador parar na "lista suja" do Ministério
do Trabalho.]
Da portaria que o Ministério do Trabalho publicou na
segunda-feira (16/10/2017), o ponto mais relevante é a necessidade de haver
restrição de liberdade para se falar em escravidão. Essa mudança vai evitar
muitos imbróglios jurídicos que resultam em nada. (Depois de todo escarcéu das
operações do Ministério Público do Trabalho e do linchamento público, condenações criminais das empresas denunciadas são raríssimas. De 1995 a 2010, houve R$ 62 milhões em indenizações, e mesmo estas se referem a saldos de salários, férias e 13º salário).
A mudança também vai, enfim, conter os ativistas,
blogueiros, fiscais e procuradores que usam o termo "trabalho
escravo" de forma sensacionalista, para chamar a atenção do público e
ganhar prêmios, audiência e financiamentos.
O pior de tudo é que esse sensacionalismo não ajuda os
trabalhadores. Acaba eliminando alternativas de quem já tem poucas opções de
trabalho. Como os próprios ativistas admitem, muitos "libertados" nas
operações acabam ingressando em empregos bem parecidos semanas depois.
Isso quando há empregos. As grifes, correndo o risco de
terem a reputação manchada por algum fiscal que se considera herói da luta de
classes, pensam muitas vezes antes de abrir fábricas no Brasil. Muitas já se
mudaram para o Paraguai, o novo pólo de empresas brasileiras.