Este artigo foi publicado no jornal O Estado de São Paulo. Aqui está a sua versão original, sem cortes.
A política de redução do
spread bancário e de aumento de crédito
concedido pelos bancos oficiais beneficia a alguns, sem dúvida. Em especial,
àqueles devedores marginais, antes considerados não aptos a um financiamento e
que, agora, veem seus sonhos de consumo serem realizados. A aquisição da casa
própria, a reforma da cozinha ou o tão sonhado automóvel se tornam, finalmente,
realidade.
Beneficiadas também são as
empresas que fornecem esses produtos aos novos consumidores; as construtoras;
as montadoras; provedores de materiais de construção; autopeças; enfim, toda a
cadeia produtiva dos setores afetados pela maior demanda magicamente criada.
Sob a batuta do regente ministro da Fazenda, a orquestra de bancos públicos
toca a música, e o povo dança. Que insensível indivíduo se oporia a uma causa
nobre: possibilitar o acesso dos cidadãos de menor renda a bens tão
importantes? Não é uma política boa para todos? Infelizmente, receio que não.
Findo o primeiro semestre de 2012
e divulgados os balanços dos bancos brasileiros, a verdade é que os números não
são nada confortantes. Refiro-me especialmente à Caixa Econômica Federal, banco
do qual, contra minha livre e espontânea vontade, sou indiretamente acionista,
assim como todos os pagadores de impostos brasileiros.
Na contramão dos bancos privados,
a Caixa e o Banco do Brasil seguem expandindo suas carteiras de crédito a um
ritmo inquietante. Nos últimos 12 meses, a Caixa expandiu sua carteira em
incríveis 45%. E não foram somente os empréstimos da Caixa que se expandiram;
sua alavancagem alcançou 28 vezes, a maior dos últimos dez anos e quase o
triplo da média dos três maiores bancos privados.
Dos quase R$ 600 bilhões em
ativos da Caixa, 30% correspondem a carteira de financiamentos imobiliários; há
uma década, esse mesmo indicador estava em pouco mais de 10%. Enquanto seus
ativos cresceram 4,6 vezes em dez anos, os créditos imobiliários aumentaram 12
vezes, chegando a R$ 177 bilhões em junho de 2012. Do total de crédito
imobiliário no Sistema Financeiro Habitacional, a Caixa responde por mais de
75%; em 2001 esse índice era de 55%. Além disso, sua carteira de crédito tem
proporcionalmente mais devedores enquadrados nas faixas de maior risco do que
os bancos privados.
No entanto, e apesar de todos
esses dados alarmantes, o governo insiste em afirmar que a Caixa tem solidez
financeira, baixíssima inadimplência, ótima gestão e uma análise de crédito do
mais alto nível, o que lhe permite conceder financiamentos a cidadãos que
outros bancos simplesmente se recusam a atender. O governo frequentemente
ressalta o fato de o índice de Basileia da Caixa, atualmente em 13%, estar
acima do nível mínimo de enquadramento, de 11%. Não obstante, é o menor índice
dentre os principais bancos brasileiros e vem caindo consistentemente nos
últimos anos; em 2008 a Caixa apresentava um índice de Basileia acima de 20%.
Apesar de servir como um
indicador de segurança das instituições financeiras, as regras de Basileia não
são nenhuma garantia de solvência e liquidez. Basta lembrarmo-nos do banco
americano Lehman Brothers, em 2008, e do banco franco-belga Dexia, em 2011;
seguindo as regras de Basileia, ambos estavam plenamente capitalizados dias
antes de colapsarem.
Ao carregar proporcionalmente mais
ativos de longa maturação — créditos imobiliários — do que os demais bancos,
a Caixa se expõe a outro importante risco: o de liquidez. Como o financiamento
do crédito habitacional advém majoritariamente da poupança — um passivo de
maturação curta, dada sua facilidade de conversão em depósito à vista —, o
descasamento de prazos aumenta à medida que os empréstimos habitacionais têm
sua duração alongada.
Diante desses fatos, teria a
Caixa, então, encontrado uma fórmula mágica para — ao expandir o crédito, sua
alavancagem e seu descasamento de prazos — aumentar somente sua rentabilidade
sem aumentar seu risco?
Definitivamente, não. Em um banco
público, expandir o crédito e reduzir os juros abaixo dos níveis de mercado é
uma decisão política, e não econômica. O que melhor ilustraria tal afirmação do
que a participação dos bancos públicos no crédito total no Brasil? De 35%, em
2001, os bancos oficiais agora respondem por mais de 45% do total de crédito no
País (na China comunista, esse patamar equivale a 55%). Enquanto os bancos
privados pisam no freio, o governo acelera, e Guido Mantega ameaça: "Os bancos
privados vão perder mercado".
A verdade é que, com a garantia
política de solvência, praticamente não há incentivos à boa gestão. Se algo der
errado, se houver algum prejuízo, o governo paga a conta. Mas quem paga a conta
do governo? Os pagadores de impostos. Os cidadãos brasileiros. Os acionistas
sem direito a voto nem dividendos, responsáveis, apenas, por cobrir o rombo.
Não surpreende, portanto, quando
o governo especula uma nova capitalização da Caixa, seja pela injeção direta de
recursos, seja pela transferência de créditos de qualidade duvidosa à EMGEA
("Empresa Gestora de Ativos", criada pelo PROEF em 2001, cujo objetivo era
justamente a assunção de créditos problemáticos de instituições financeiras
federais). Essa segunda alternativa seria uma óbvia admissão de que algo não
vai bem nessa farra de crédito.
Em vez de aprendermos com os
erros dos outros, a sensação é que estamos replicando, em solo brasileiro,
todos os equívocos que países desenvolvidos cometeram nos últimos anos. Nos
EUA, após o estouro da bolha imobiliária, o Tesouro americano nacionalizou as
duas gigantes do mercado hipotecário, Fannie Mae e Freddie Mac. Há poucas
semanas, o governo de Rajoy, primeiro-ministro espanhol, solicitou formalmente
um pacote de mais de 100 bilhões de euros para resgatar o seu falido sistema
bancário, levado ao colapso precisamente devido a sua exposição ao setor
imobiliário. E na Irlanda, uma bolha imobiliária gigantesca levou o governo a
nacionalizar os principais bancos privados, sendo que apenas um deles, o Anglo
Irish, teve um custo de resgate estimado em 30 bilhões de euros — um quinto da
economia irlandesa.
A política do governo brasileiro
de redução artificial dos juros e de "democratização" do crédito traz consigo
benefícios e custos. Alguns ganham no curto prazo, enquanto a maioria perde no
longo. Bom para alguns; mas, certamente, ruim para todos. É difícil prever
quando pagaremos essa conta. Mas quanto antes pisarmos no
freio, menos salgada ela será.