No dia 05 de fevereiro
de 2017, a Constituição do México completa seu centenário. Fruto da revolução
mexicana, a carta promulgada em 1917 é celebrada como a primeira da história a
contemplar os chamados "direitos sociais", aqueles que pretendem garantir aos
cidadãos prestações materiais por parte do estado. Rompia, assim, com a
tradição liberal clássica de suas antecessoras desde o século XVIII.
As Constituições modernas
de até então, influenciadas por ideais iluministas, consistiam em instrumentos
de garantia de um governo limitado, a partir do reconhecimento expresso de
liberdades individuais e direitos de propriedade, além de mecanismos de freios
e contrapesos para controle do poder estatal.
Como escreveu James
Madison, um dos founding fathers da Constituição
dos Estados Unidos da América de 1789:
"Se
os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos
governassem os homens, não seriam necessários controles externos nem internos
ao governo. Ao configurar um governo que será administrado por homens sobre
homens, a maior dificuldade consiste nisto: deve-se primeiro habilitar o
governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a controlar a si
mesmo" — The Federalist nº 51
A Constituição
mexicana, entretanto, adotou lógica distinta. Inaugurando um formato que seria
seguido pela Constituição russa de 1918, pela de Weimar de 1919 e tantas outras
até os dias atuais, inclusive a brasileira de 1988, a Carta do México
transformou o governo em protagonista das mudanças sociais idealizadas pelos
seus autores. Nesse sentido, o documento conferiu ao estado a incumbência de
prover aos indivíduos determinadas prestações materiais consideradas básicas
(como o ensino gratuito em estabelecimentos oficiais, art. 3º), além de
permitir ampla intervenção governamental na economia, em propriedades privadas
e em contratos (o que serviu de fundamento, anos mais tarde, para a expropriação de empresas
petrolíferas que atuavam no país).
As premissas do
constitucionalismo original, baseadas na desconfiança em relação aos exercentes
do poder político, foram substituídas pelo seu exato oposto: uma inabalável
confiança na capacidade de governantes atuarem como planejadores centrais,
controlando a ordem econômica e a geração de riquezas na sociedade para atingir
finalidades preestabelecidas, desde que estejam vinculados a esses propósitos
por ordem constitucional.
O constitucionalismo
liberal introduziu e popularizou institutos essenciais para o progresso social,
como o respeito aos contratos e à propriedade, a previsibilidade das ações do
governo limitado e a liberdade para trabalhar, criar e empreender, tudo isso
sob a garantia de cumprimento forçado das regras em caso de desvios. A
correlação entre esse ambiente institucional e o desenvolvimento econômico e social
é ressaltada por renomados estudiosos, incluindo Douglass North, Daron Acemoglu
e Robert Cooter. Em suas obras, encontram-se diversos exemplos históricos de
que o respeito a essas condições básicas é essencial para a produtividade da
economia, sendo este o fator determinante na eliminação da miséria e na
melhoria da qualidade de vida da população.
Por isso, não é
surpresa que uma ex-colônia tenha se tornado, menos de cem anos após a sua
Constituição entrar em vigor, a maior economia do mundo: por volta de 1870, os
Estados Unidos da América assumiram o posto no qual se
revezavam China e Índia desde pelo menos a crucificação de Cristo.
Em contrapartida, a
eficiência do modelo de constitucionalização de prestações materiais pelo estado
como meio para o efetivo desenvolvimento da sociedade ainda carece de
demonstração empírica. Os fatos resistem à tentação de atribuir às
"Constituições socioeconômicas", repletas de promessas a serem implantadas
pelas mãos de seus respectivos governantes, os méritos pela redução das mazelas
sociais. A diminuição de 35% no número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza
ao redor do mundo entre 1990 e 2013 não pode ser explicada pela sistemática
aprovação de Constituições socioeconômicas. Pelo contrário: suas causas mais plausíveis
são ligadas à diminuição do planejamento central das economias: a queda do muro
de Berlim (1989), a abertura comercial da China (sendo importante marco a
reabertura da bolsa de valores de Xangai em 1990) e a
liberalização da economia da Índia (1991) são alguns dos exemplos mais
relevantes.
Mesmo assim, o exemplo
mexicano foi reproduzido pelo mundo. Hoje, 65% das Constituições ao redor do
globo preveem o direito à saúde "gratuita"; 60% o direito à educação "gratuita";
48% a seguridade social; e outros 32% sistemas de amparo aos desempregados. Confira
aqui o ranking
elaborado pelo Comparative Constitutions
Project.
Segundo este mesmo ranking,
a Carta mexicana aparece como a 6ª Constituição mais extensa e a 8ª que mais
reconhece direitos no mundo (consideradas no cálculo as 225 emendas que recebeu
até os dias atuais). A Constituição brasileira de 1988, por sua vez, é a
terceira mais extensa do mundo, ficando atrás apenas das cartas indiana e
nigeriana. Em número de direitos, ostenta o impressionante 10º lugar (o pódio é
composto por Equador, Bolívia e Sérvia).
O top 10 nesses dois quesitos ainda é composto por países como Papua
Nova Guiné, Paquistão, Zimbábue, Bolívia, Cabo Verde, Angola e Venezuela. Não é
preciso esforço para perceber que esses países não são exemplos mundiais em
educação, saúde, bem-estar do trabalhador etc.
Por outro lado, a parte
inferior da tabela inclui entre aqueles cujas Constituições são menos extensas
e menos pródigas em direitos países como Austrália, Israel, França, Áustria, Mônaco,
Japão, Luxemburgo e Cingapura. Eventuais programas assistencialistas e
intervenções na economia promovidos pelos governos desses países não excluem o
fato de que seu progresso não pode ser creditado a direitos socioeconômicos
constitucionalmente garantidos. A verdade é que, nos seus cem anos de vida, a
Constituição mexicana assistiu ao sucesso econômico e social fulminante de
outros países que adotaram Cartas fundamentais bem menos ambiciosas.
Um dos exemplos mais
marcantes de superação da pobreza sem messianismo constitucional vem da Ásia. Quando
declarou independência do Reino Unido em 1963, Cingapura possuía um PIB per
capita de apenas US$ 510, inferior ao do Zimbábue de então. Em 1990, o valor já
era próximo a US$ 13 mil — superior ao PIB per capita no Brasil de hoje.
Atualmente, Cingapura possui cinco vezes o PIB per capita brasileiro, o quarto
maior do mundo, e tem a 8ª economia mais
complexa e diversificada do planeta.
E os indicadores
sociais são tão impressionantes quanto os macroeconômicos. Cingapura é o país
com a menor taxa de mortalidade infantil no mundo, segundo o Banco Mundial;
possui o segundo
sistema de saúde mais eficiente; teve o melhor desempenho na
avaliação educacional mais recente da OECD (PISA); ostenta um índice de
desemprego de apenas 2%; a renda média mensal dos trabalhadores do país é de US$ 3.252,20; seu
índice de homicídios por 100 mil habitantes é de apenas 0,3; e é o 3º país com
a maior expectativa de vida, também segundo o Banco Mundial.
Todo esse notável
progresso foi alcançado sem que qualquer direito socioeconômico conste da
Constituição de Cingapura. (Confira aqui um breve relato da história de Cingapura).
O desempenho do México,
por sua vez, ficou bastante aquém do que o seu constituinte prometeu para o
país há um século. Em 1970, mais de cinco décadas após a promulgação da Carta
fundamental, os poucos indicadores sociais registrados à época naquele país
ainda destoavam bastante do cenário de avanços sociais esperado. Mais de um
quarto da população era
composto de analfabetos e o índice de mortalidade infantil era quase quatro
vezes superior aos dos vizinhos do norte EUA e Canadá.
O gráfico abaixo, com
dados do Banco Mundial, mostra que a economia mexicana teve uma trajetória de
baixo crescimento até o ano de 1986, precisamente quando ocorreu a assinatura,
pelo país, do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), dando início a um
processo de liberalização da economia. Com isso, o país alcançou melhoras no
campo social: hoje, 85% da população tem acesso a saneamento básico e o índice
de matrícula na educação primária é de 95,1%. Todavia, a
taxa de pobreza é de 41,2% da população e a de indigência 16,3% (no Brasil,
os índices são respectivamente de 16,5% e 4,6%).

Titular de uma das
Constituições mais pródigas do mundo, o Brasil não é orgulho internacional em
matéria de avanços sociais mesmo após quase trinta anos de sua vigência.
Metade da população sequer
tem acesso ao saneamento básico, ocasionando inúmeras doenças, como
cólera e hepatite. Em um ranking de 55 países, o sistema de saúde
brasileiro figura como o
54º menos eficiente. O brasileiro médio possui, hoje, o nível de educação que
sul-coreanos possuíam na década de 1970 e chilenos em 1990 (vide gráfico abaixo).
Além disso, o Brasil é o país com a 8ª maior população de adultos analfabetos
do mundo: cerca
de 14 milhões de pessoas.
No ensino superior, o
desempenho é igualmente pífio: não
há nenhuma universidade do país entre as cem melhores do mundo. Quanto ao
campo trabalhista, a taxa de desemprego atingiu 12% no final de 2016, afetando
12,3 milhões de brasileiros.

Apesar da não
realização do sonho constitucional em terras brasileiras, a fé no poder
transformador da Carta permaneceu intacto. Mais ainda: difundiu-se a visão de
que a frustração dos avanços sociais desejados era exclusiva culpa dos
administradores públicos, pouco interessados que seriam na aplicação dos
recursos necessários à manutenção dos serviços impostos pela Constituição.
Esse discurso é tão
questionável quanto contraditório. Questionável porque não se imagina um
administrador a quem não interessaria o capital político decorrente de manter,
em seu mandato, serviços de primeira qualidade. Contraditório porque, se de um
lado pressupõe a desconfiança nos administradores públicos, de outro mantém
forte a esperança em uma Constituição que atribui a esses mesmos agentes a
tarefa de promover o avanço socioeconômico de que tanto dependem os mais
necessitados.
Como resultado da
crença no modelo constitucional brasileiro, a saída foi recorrer ao Judiciário
para exigir a concretização do seu texto.
Em um ranking de países
emergentes, o Brasil tem o maior número de ações judiciais sobre direitos
sociais à saúde e educação, com 118 (cento e dezoito) vezes mais processos que
a segunda colocada Índia, um país com população seis vezes superior.[1]
Ninguém poderá acusar os juízes brasileiros de não terem tentado colocar em
prática as promessas do constituinte.
O grande problema é que
as prestações garantidas por decisões judiciais não se mostraram
universalizáveis a todos os titulares de idêntico direito. Em 2012, a União
sofreu bloqueios judiciais no montante de R$ 279 milhões para atender a 523
(quinhentos e vinte e três) pacientes — no mesmo ano, o orçamento da saúde foi
de R$ 46 bilhões para uma população de mais de 199.000.000 (cento e noventa e
nove milhões) de pessoas. No Município de Campinas/SP, 16% de todo o orçamento
da saúde de 2009 foi destinado a 86 (oitenta e seis) ações judiciais — a
população atual é superior a 1,2 milhão de pessoas. Estudos empíricos apontam
que, no Brasil e em outros países, a atuação do Judiciário na efetivação de
direitos sociais tende a favorecer cidadãos de classes mais altas, com renda
suficiente para custear o acesso à justiça.[2]
E apesar de todos os
esforços para atender ao desejo da Constituição pelos métodos eleitos nas suas
normas — prestações materiais do estado com dinheiro dos cidadãos —, os
indicadores socioeconômicos do país prosseguem decepcionantes.
A decisão entre
financiar um serviço de forma coletiva ou individual é muito mais simples em
países cujos cidadãos em geral gozam de boa situação financeira. Em uma
comparação simplista, é como a escolha entre instalar uma academia de ginástica
em um condomínio de luxo, a ser financiada pelas cotas condominiais, ou deixar
que cada morador contrate os serviços das academias externas que preferirem. A
academia do condomínio provavelmente será satisfatória, muito embora grandes
redes de academia prestem um serviço melhor.
Se no mesmo exemplo,
todavia, o condomínio for de baixa renda, os custos da academia interna, que
tenderá a possuir uma estrutura precária, podem tornar as cotas insuportáveis
para os moradores, sem contar a possibilidade de estes obterem no mercado um
serviço melhor e mais barato.
A cristalização da
escolha da coletivização de serviços nas Constituições de países pobres não
apenas se revelou um método incapaz de universalizar esses serviços com
qualidade, como também, a exemplo do caso brasileiro, pode justificar a
expansão do estado sob a forma de tributos, burocracia e regulações
pretensamente destinados a efetivá-los. O custeio desses serviços é financiado
por recursos expropriados da sociedade, dando origem a estruturas em cujos
caminhos ocorrem desperdícios por ineficiência ou corrupção — no Brasil, segundo
a Advocacia-Geral da União, cerca de 70%
dos recursos desviados em atos de corrupção seriam destinados à saúde ou
educação.
Os investimentos nessas
áreas e afins acabam prejudicados, ao contrário do esperado. Além disso, como
consequência da ampliação do planejamento central, cada vez mais inóspito se
torna o ambiente para o planejamento privado, aquele necessário ao salto de
produtividade da economia que conduz à eliminação da miséria. Nesse contexto,
os direitos socioeconômicos terminam por frustrar a plena efetividade dos
direitos fundamentais de liberdade, sem que garantam o alcance dos tão
almejados resultados sociais.
Por essas razões, o
Professor da Universidade de Harvard Cass Sunstein afirma que a inclusão de um
"catálogo caótico de abstrações do estado de bem estar social" em Constituições
constitui "um grande erro, possivelmente um desastre". Segundo ele:
Países
devem usar suas Constituições para produzir duas coisas:
(a)
firmar direitos de liberdade — livre manifestação, direitos de voto, proteção
contra abusos do sistema de justiça criminal, liberdade religiosa, barreiras a
discriminações injustas, direitos de propriedade e contratuais; e
(b)
as precondições para algum tipo de economia de mercado.
O
catálogo sem fim do que chamo de 'direitos positivos', muitos deles absurdos,
ameaça enfraquecer essas duas importantes funções. (...) A Constituição não
deve assumir o controle sobre a esfera privada, a sociedade civil e os mercados
econômicos. (...) Se prestações positivas do Estado são encaradas como direitos
subjetivos, pode haver efeitos corrosivos ao empreendedorismo e à iniciativa
individual".[3]
Para conferir
embasamento empírico às considerações até aqui apresentadas, os professores
Adam Chilton (Universidade de Chicago) e Mila Versteeg (Universidade da Virgínia)
utilizaram dados de 186 países para averiguar se os direitos constitucionais à
educação e à saúde realmente geram aumento de gastos governamentais e se
provocam melhoria nos índices de desenvolvimento nessas áreas, como matrícula
escolar, taxa de alfabetização, número de leitos de hospital e expectativa de
vida. Em relação a uma gama menor de países, o teste também incluiu os direitos
à seguridade social e à moradia. O
estudo conclui que não foram observados efeitos positivos em relação a
indicadores socioeconômicos nas áreas de educação e saúde.
Os 100 anos que se
passaram exigem uma reflexão urgente sobre o papel da Constituição para a
sociedade e os mecanismos que, de fato, conduzem a avanços sociais. A primeira
opção é ignorar os resultados observados até aqui e esperar mais um centenário
pela milagrosa transformação do texto constitucional em realidade, pela obra de
heróicos, oniscientes e abnegados administradores públicos. A segunda opção,
que não rende discursos emocionados ou títulos comoventes para bestsellers jurídicos, é deixar de lado
a retórica e reproduzir o método adotado por outros países para tornar a
economia mais dinâmica e produtiva, única forma de proporcionar aos cidadãos
bens e serviços de qualidade e mais acessíveis — inclusive em matéria de
saúde, educação, saneamento e afins.
Sair do conforto da
ilusão exige esforço e sacrifício, mas apenas pelo segundo caminho haverá algo
a se comemorar nos anos que virão.
[1]GAURI, Varun; BRINKS, Daniel M. Courting Social Justice – Judicial Enforcement of Social and Economic
Rights in the Developing World. New York: Cambridge University Press, 2008.
p. 313.
[2] LANDAU, David. "The Reality of Social Rights
Enforcement". In: Harvard International Law Journal 53, 2012, p. 190-247.
GAURI, Varun; BRINKS, Daniel M. Courting
Social Justice – Judicial Enforcement of Social and Economic Rights in the
Developing World. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 117.
[3] SUNSTEIN, Cass R. "Against Positive Rights Feature". In: 2 East European Constitutional Review 35 (1993).