Um dos
maiores lugares-comuns que ouvimos a respeito da solidariedade é que, sem o estado
— ou seja, sem uma agência coerciva que obriga as pessoas a pagarem impostos,
os quais serão imediatamente gastos em prol dos mais necessitados —, e sem essa
redistribuição forçada de renda comandada pelos burocratas do estado, os pobres
seriam abandonados à sua própria sorte.
Pior
ainda: sem o estado para tomar o dinheiro dos ricos, estes jamais abririam voluntariamente
os cordões de suas bolsas para ajudar os mais necessitados.
O problema
é que tanto a lógica quanto os próprios fatos empíricos não apenas contradizem
essa afirmação, como, aliás, confirmam o exato oposto.
Comecemos
diretamente pelos fatos.
Uma das
maneiras de medir a solidariedade espontânea — ou seja, a caridade — é
analisar o tempo e o dinheiro dedicados pelas pessoas ao voluntariado, isto é,
a todo o tipo de atividades que têm um impacto direto sobre terceiros, sem que
o prestador receba uma compensação material em troca. Neste caso, apoiaremo-nos sobre o World
Giving Index, que todos os anos apresenta um estudo sobre o voluntariado no
mundo e que mede a porcentagem de pessoas que foram solidárias espontaneamente.
Apenas para
esclarecer, o que o World Giving Index
chama de "voluntariado" são pessoas que (1) doaram dinheiro a uma organização, (2)
doaram tempo a uma organização ou (3) ajudaram um estranho ou desconhecido que
necessitava de ajuda.
Eis um
mapa do mundo para 2014:

Os países
em vermelho são os mais caridosos. Os países
em vários tons de amarelo vêm em segundo lugar (quanto mais escuro o amarelo,
mais caridoso).
Já os países
em azul são os menos caridosos. Quanto mais
escuro o azul, menos caridosa é a população do país.
Portanto,
dentre os países mais caridosos — ou seja, países cuja população é
espontaneamente solidária — temos EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Reino
Unido, Holanda, Islândia, e vários países do Sudeste Asiático. (A Suíça está em branco, o que significa que
ela não foi incluída na pesquisa).
Em segundo
lugar entre os mais caridosos destacam-se Finlândia, Suécia, Alemanha, Áustria,
Eslovênia, alguns países do Oriente Médio, alguns países do Sudeste Asiático, África
do Sul, Chile e Colômbia.
Já dentre
os menos caridosos destacam-se Brasil, Venezuela, Equador, Argentina, Paraguai,
Peru, Portugal, França, Itália, todos os do Leste Europeu, vários da África, Rússia,
Japão e China.
Agora,
comparemos esse mapa com o índice de liberdade econômica da Heritage
Foundation e do Wall Street
Jornal.
Este índice
utiliza uma série de indicadores que mensuram liberdade de empreender, livre
comércio com o exterior, facilidade dada aos investimentos estrangeiros, tamanho
dos gastos do governo, respeito à propriedade privada, nível da inflação de preços,
entre outros. Por conseguinte, este índice mede o
liberalismo econômico de um país.
Para 2014,
os resultados globais são estes:
Aqui, os países
verdes são os mais economicamente livres (quanto mais escuro o verde, mais
livre ele é. Dentre estes, destacam-se
EUA, Canadá, Chile, Colômbia, Reino Unido, Suíça, Alemanha, Áustria, Holanda,
República Tcheca, Estônia, Lituânia, todos os nórdicos, Austrália e Nova Zelândia.
Já os países
amarelos são os relativamente livres economicamente. Destaque para México,
Peru, Paraguai, Uruguai, Portugal, Espanha, França, Itália, Leste Europeu e África
do Sul
Já os
países menos livres estão em vários tons de vermelho e laranja. Quanto mais escuro, menos economicamente livre
é o país. Destaque para Brasil,
Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador, quase todos da África, e todo o bloco
que vai da Rússia à Índia.
Agora os
dois mapas em conjunto (lembrando que, no mapa da caridade, o primeiro, vermelho é algo
positivo e no da liberdade econômica, o negativo):


Como é possível
constatar, existe uma correlação bastante forte entre mais liberalismo econômico
e mais voluntariado.
No entanto,
o leitor mais cético poderá retorquir dizendo que também poderíamos comparar o
gráfico do voluntariado com o de riqueza por habitante, com o de porcentagem de
protestantes ou ainda com o do tamanho médio do órgão sexual, e ainda assim
constataremos que, quanto mais elevadas essas estatísticas (menos para a
última), mais voluntariado haverá. Logo,
será generoso, em média, quem for abastado, protestante e mediamente
constituído.
Pode ser. Afinal, como disse o jornalista canadense Jean Dion, "as estatísticas
são para os analistas o que os postes de iluminação são para os embriagados:
fornecem muito mais um apoio que um esclarecimento". Sim, as estatísticas utilizadas têm
obviamente as suas falhas e não podem nos explicar, por si sós, toda a
realidade.
No entanto,
mesmo o leitor mais cético tem de ter reparado que os países mais ricos são
também os mais generosos. Isso é indiscutível.
Nesse caso, parece que, parodiando Jean Dion, o poste de iluminação ilumina
tanto quanto serve de apoio.
Porém,
para uma análise mais completa, passemos agora à lógica: qual é a razão que
dita que mais liberdade econômica significará também mais caridade?
A sociologia por trás do altruísmo
Em uma
sociedade livre, o grau de responsabilidade individual tem de ser elevado. E é assim pela simples razão de que o
corolário da liberdade é a responsabilidade. (Quando existe liberdade sem
responsabilidade, há apenas uma licenciosidade).
Consequentemente,
em uma sociedade livre, as pessoas têm de ter elas próprias a responsabilidade
de se precaverem e de se salvaguardarem.
São elas que têm de assumir sozinhas as consequências de suas decisões. Essa
noção de que elas têm de se cuidar para o futuro — tão estranha a nós de ascendência
latina — as impulsiona a serem mais precavidas desde cedo. Incentiva, por exemplo, as pessoas a pouparem
mais, a fazerem seguros de vida, a fazerem planos financeiros para suas
aposentadorias etc.
Isso, por
si só, já estimula um comportamento mais soberbo e austero, estimulando
atitudes que visam a um horizonte temporal de longo prazo e desestimulando
atitudes que visam apenas ao curto prazo.
Adicionalmente,
como praticamente todos os indivíduos têm, arraigados em si, um altruísmo
natural, e dado que a pressão social tende também a rechaçar os egoístas
primários, em uma sociedade liberal as pessoas sentem uma maior necessidade de
ajudar ao próximo. Não é uma pressão exatamente
coerciva, mas sim aquela obrigação moral
de ajudar quem necessita.
E é assim
porque, em primeiro lugar, elas sentem que, se não fizerem nada para ajudar os destituídos,
estes serão abandonados à própria sorte, o que choca com o seu altruísmo
natural.
Em uma
sociedade economicamente menos livre, o estado já se arvorou à função de ajudar
os necessitados. As pessoas simplesmente
pensam: "eu já pago meus impostos e o estado já tem seus programas sociais. Logo,
estou moralmente desobrigado de ajudar os outros".
Em segundo
lugar, dado que muitas destas pessoas altruístas já terão passado por situações
difíceis — e, na ocasião, foram socorridas pelo voluntarismo de terceiros —,
elas se sentem devedoras e agirão igualmente assim para com os outros
desvalidos.
Em terceiro
lugar, como os próprios desvalidos sabem que estão sendo ajudados por
terceiros, sem que estes não tenham nenhuma obrigação legal de fazê-lo, isso
implica que, se os auxiliados abusarem da bondade dos outros, um dia poderão já
não mais se beneficiar dela. Uma coisa é
ter ajudas pontuais para se reerguer. Outra
coisa é ficar completamente encostado sem se esforçar. Consequentemente, essas mesmas pessoas sob
assistência tenderão a fazer de tudo para sair da situação difícil em que atualmente
se encontram.
Por outro
lado, se o governo se arroga o papel de cobrar impostos para cuidar de todos
para sempre, haverá o estímulo à indolência e à improdutividade.
Por último,
e por tudo descrito acima, os próprios caridosos sabem também que os auxiliados
têm o interesse de se aprumar o mais rapidamente possível, pois não será possível
viver pendurado para sempre na caridade de terceiros. Logo, os caridosos sabem que os auxiliados não
irão abusar, caso contrário perderão todos os auxílios. Consequentemente, os caridosos estarão
dispostos a ajudar mais, exatamente porque sabem que, em caso de abuso, sempre poderão
se retirar.
Conclusão
Não apenas
a teoria, como a própria empiria, confirma que voluntariado e caridade andam
juntos com liberdade econômica.
Uma
sociedade livre tem os seus próprios mecanismos naturais de
solidariedade e estes são pouco visíveis agora, para nós, precisamente
porque um estado gigante já monopolizou a assistência social
absorvendo os recursos da sociedade civil que seriam destinados a esses fins.
"Por que farei caridade se já pago impostos para que o estado faça a
caridade por mim?"
Creio não
ser necessário explicar por que um sistema coercivo gerenciado por um estado
que promete cuidados do berço ao túmulo incentiva mais o egoísmo e o abuso da
generosidade alheia.