A ideia moderna do intelectual engajado e fazendo parte de um grupo
especificamente identificado nasceu na França na época do
Caso Dreyfus. Sem compor a
estrutura de poder de sua sociedade, ele emitia suas opiniões supostamente em
nome dos mais elevados princípios éticos e intelectuais, e não de acordo com as
verdades oficiais, nos conta Eric Cahm em seu livro
The Dreyfus Affair in French Society and Politics.
Durante o século XIX, os intelectuais começaram a entrar e a integrar as
instituições que compunham a estrutura de poder exercendo as funções de
especialistas e professores. E foi uma parcela desses intelectuais que
alimentou e difundiu diversos tipos de utopias apresentadas de forma
estruturada, desestruturada ou simplesmente delirantes.
A utopia não é uma exclusividade dos intelectuais, mas o pensamento político
utópico e a sua tentativa de realização histórica são uma espécie de monopólio
natural de uma numerosa e influente parcela desse grupo.
Suas ideias políticas utópicas estruturam desde a concepção do poder
centralizado até a formulação das decisões e ações necessárias para submeter os
membros da sociedade onde se pretende desenvolver um projeto de engenharia
social com o objetivo de redimir ou aperfeiçoar a condição humana segundo uma
política de perfeição e rumo a um futuro radiante e livre dos sofrimentos,
restrições e carências do presente e do passado.
Talvez o exemplo histórico mais grandioso da tentativa de implementação de
uma utopia política baseada numa política de perfeição tenha sido o período do
Terror levado a cabo pelos Jacobinos durante a Revolução Francesa. O estado foi
estruturado de forma a permitir que uma determinada concepção de poder
centralizado se desenvolvesse e se deslocasse de forma permanente para manter a
revolução em progresso e impedisse as eventuais reações.
Um poder móvel é sempre mais difícil de se combater do que um poder
estático, cuja manutenção e equilíbrio acabam por ser seu calcanhar de Aquiles.
A utopia jacobina engoliu seus próceres porque é próprio do sistema se
retroalimentar mediante a violação ou eliminação sistemática também de seus
agentes. E é interessante notar, obviamente com a devida distância histórica e
com o cotejo analítico dos diversos relatos e estudos realizados, a grandiosa
ingenuidade dos utópicos ao ambicionar ter sob controle, desde o início, toda a
complexa cadeia não-linear de eventos suscitados pelas profundas mudanças
morais, sociais, políticas, econômicas impingidas.
Os raros líderes utópicos que não foram tragados pela praxis do
movimento deram sorte ou rapidamente perceberam como se movimentar nas
entranhas da besta que ajudaram a criar.
A ingenuidade de Robespierre, um intelectual e homem de ação, podia ser
dimensionada pela sua ambição desmedida. De advogado pacifista, passando por
revolucionário inflamado até se auto coroar líder do Ser Supremo, Robespierre
perdeu o controle bem antes de perder a cabeça sob uma lâmina afiada.
Por mais que se apresentem apenas como homens de ideias, e assim expõem um
insolúvel oximoro, uma parcela numerosa de intelectuais políticos e econômicos
constroem mundos utópicos na expectativa de vê-los instituídos e repete a
utopia de Robespierre, mesmo que desconheçam, ignorem ou rejeitem a herança
parente.
O sofrimento, os males, as violências que integram a sua política de
perfeição não são consequências não-intencionais de ideias virtuosas, mas a
estrutura interna de um método de ação embalado por uma teoria que muitas vezes
é apresentada como uma simpática solução para problemas sérios e reais.
Solucionar tais problemas não é a finalidade para esses intelectuais, de
esquerda ou não, que buscam a implementação da utopia para substituir os
antigos pelos novos problemas, nunca admitidos como tais.
Há, de fato, uma operação para deslocar completamente o bom senso e o senso
comum, para soterrar a tradição em nome de uma novidade progressista que
conduzirá a humanidade a um excêntrico paraíso terreno. É flagrante a definição
de um infame sistema de castas baseado na superioridade moral autoatribuída. O
novo sistema utópico progressista é criado para operar sob o comando de uma
elite superior composta por eles.
A tão propalada ideia de igualdade é completamente fraudulenta porque
estabelece, desde já, dois níveis distintos de seres humanos, um superior e
outro inferior. Este deve reconhecer sua inferioridade e transferir, como
queria Rousseau, sua vontade individual para a vontade coletiva, um estratagema
para diluir o poder e os direitos do indivíduo de forma a redimensionar
hiperbolicamente o poder centralizado da elite integrada por aqueles intelectuais.
Os filhos de Rosseau também são netos de Robespierre; e a utopia política, o
ópio dos intelectuais.
O ópio dos intelectuais
O termo "o ópio dos intelectuais" evoca dois outros: a primeira, de autoria
de Raymond Aron, de que o ópio dos intelectuais era o marxismo[1]; a
segunda, escrita por Karl Marx, dizia que a religião era o ópio do povo.[2]
Antes, porém, é necessário fazer um enquadramento teórico. Os estudiosos do
fenômeno não chegaram a um consenso para estabelecer um conceito definitivo
para a utopia. As definições utilizadas dependiam dos objetivos específicos de
cada estudo. Eles concordavam, porém, que qualquer conceito deveria conter pelo
menos um destes três elementos: forma, conteúdo e função. A posição que
considero mais adequada à interpretação da utopia política, que classifico como
revolucionária, é a de Ruth Levitas, para quem a melhor definição deveria ser
capaz de incorporar forma, conteúdo e função.[3]
Há uma diferença entre utopia política revolucionária e utopia literária: o
fato de que a versão revolucionária da utopia política não apenas descreve e
prescreve uma sociedade ideal e perfeita, mas tem um projeto de poder para
realizá-la e empreende todos os esforços nesse sentido.
Uma utopia literária não pretende nada além de ser uma descrição detalhada de
uma sociedade ou de um mundo idealizado, e a sua forma e função praticamente
definem um fim em si mesmos. Romances utópicos podem ser usados por utópicos
revolucionários como base para suas ambições, mas não foram realizados, muito
embora possam ter sido idealizados, com tal finalidade.
Uma utopia política revolucionária, por outro lado, elabora essa prescrição
descritiva, que pode ser explicitamente detalhada ou estrategicamente
pulverizada ou diluída de forma a esconder seus reais objetivos, como um plano
de instituição de um tipo de regime controlado por uma determinada elite que se
apresenta como a única habilitada a empreender aquele projeto de perfeição e a
conduzir a sociedade rumo a um futuro ideal.
O filósofo húngaro Aurel Kolnai afirmou que a utopia era não apenas o
perfeccionismo, mas, concomitantemente, a impostura do ideal de perfeição.
Segundo Kolnai, o mundo utópico constituía, na verdade, um campo simplificado
de perfeição no qual a sociedade era um organismo harmônico e os indivíduos
eram classificados segundo uma hierarquia cientificamente organizada.[4]
Karl Marx, por exemplo, tentava esconder o caráter utópico de seu pensamento
político sob um verniz científico (o cientificismo versus o utopismo de Marx é
discussão para outro artigo).
Intelectuais à esquerda e à direita manifestaram suas utopias políticas ao
longo da história de forma mais ou menos articulada e esquemática. Os
bem-sucedidos foram justamente aqueles que, unidos a algum movimento ou grupo,
conseguiram que suas ideias fossem usadas como programas de um projeto de
poder.
Muitos desses intelectuais utópicos sabiam exatamente quais seriam as
consequências intencionais de suas ideias e assumiam plenamente a
responsabilidade pelas consequências não-intencionais. Alguns poucos, mesmo que
professassem algum tipo de boa-fé, preferiam ignorar os resultados daquilo que
projetavam para toda uma sociedade em nome de um suposto bem comum, que
desconsiderava os modos de vida e os indivíduos que a compunham.
Ambos combinavam um sentido de superioridade moral com o monopólio da
virtude. Estavam tão inebriados com a própria bondade e excitados com o
sentimento de missão a ser cumprida que fariam qualquer coisa para realizar o
projeto de perfeição.
O projeto de perfeição
Tal projeto de perfeição política é alicerçado numa utopia revolucionária
que sustenta um projeto de construção futura de uma sociedade ideal e perfeita.
Os utópicos consideram legítimo, sob as perspectivas política e moral, utilizar
todos os meios e recursos necessários, incluindo a violência, para realizar
este projeto. Só assim, acreditam, será possível atingir a plenitude da
felicidade, do bem-estar, do progresso, da satisfação dos desejos, e o fim de
todos os sofrimentos e necessidades insatisfeitas, ou seja, um estado ideal de
perfeição.
A crença de que a política é o instrumento mais adequado para perseguir o
estágio ideal de perfeição, e assim com poder para redimir a natureza humana de
suas falhas que inviabilizariam o projeto, parte da hipótese utópica segundo a
qual todas as questões genuínas (como a busca pela sociedade perfeita do
futuro) têm apenas uma resposta correta.
Isaiah Berlin observou que o argumento utópico se desenvolvia no sentido de
que a inexistência de uma única resposta correta significaria que todas as
questões apresentadas não eram genuínas. De forma complementar, era fundamental
que todos os fundamentos da resposta correta fossem verdadeiros porque todas as
outras respostas possíveis se baseavam numa falsidade.[5]
Essa estrutura de pensamento permite converter a utopia política em um
modelo teórico ficticiamente perfeito que não admite contestação porque
qualquer crítica aos seus fundamentos é refutada com a acusação de que o
crítico não formulou uma questão genuína e, por isso, não alcançaria a única
resposta correta existente.
A defesa da ideia não se dá mediante a força intrínseca dos seus
fundamentos, mas por uma forma peculiar de reacionarismo, que tenta destruir
seus críticos mediante a desqualificação sistemática dos argumentos contrários,
não pelo que apresentam, mas sim pelo que não expõem, em resumo, pela acusação
da inexistência de uma questão genuína.
A ideia do tempo na utopia política é bastante peculiar e importante. Quando
menciono que o projeto de perfeição é um projeto de futuro é porque a promessa
faz parte da estrutura retórica e da necessidade de manter o objetivo final em
progresso, e não efetivamente sendo realizado, mesmo que gradualmente. Ao ver a
si mesma como a realização da perfeição, a utopia política funciona como se sua
existência como ideia prescindisse de uma realização material que efetivamente
trouxesse a felicidade aos indivíduos.
Realizar o projeto extinguiria a utopia e, por sua vez, aboliria aquele tipo
de poder extremamente concentrado da elite política revolucionária. Ou seja,
realizar a utopia significaria o seu próprio fim e, por consequência, o fim dos
seus artífices. E não podemos esperar que os agentes da utopia atuem de forma
consciente para extinguir aquilo que lhes garante e preserva a existência.
A permanência no tempo da promessa utópica permite que o poder central tenha
controle sobre os acontecimentos, direcionando-os, e, principalmente, se
mantenha no comando de todos os procedimentos e processos desse work in progress.
Em sua tese de doutorado sobre a política de perfeição, na qual estuda
Isaiah Berlin e Edmund Burke, o professor e colunista da Folha de S. Paulo,
João Pereira Coutinho, enquadra a utopia como uma realidade estática que
prescinde do futuro porque "ela própria, na sua intocável perfeição,
concilia o passado, o presente e o futuro. A utopia não deseja o melhor
possível porque ela própria é, desde logo, o melhor e o possível".[6]
Esse tipo de mentalidade se retroalimenta na sua não-realização, o que
estabelece, finalmente, um paradoxo extremo: a retórica política utópica é
fundamentada na transformação prática e efetiva do mundo de forma a maximizar e
distribuir os benefícios e privilégios a cada um dos indivíduos, mas a sua
realização, porém, converteria a utopia em qualquer outra coisa que não ela
própria, o que faria ruir os fundamentos estruturais intelectuais e expor
aquilo o que originariamente é: um poderoso instrumento de ilusão, fraude e
falsificação.
[1] Raymond
Aron. "O Ópio dos Intelectuais". Brasília: Editora da UnB, 1980.
[2] Karl Marx. Introduction in "A
Contribution to the Critique of Hegel's Philosophy of Right". Publicado
no jornal Deutsch-Französische Jahrbücher em 7 de fevereiro de 1844.
[3] Ruth Levitas. "The Concept of
Utopia", 179.
[4] Aurel Kolnai. "Privilege and Liberty and Other Essays
in Political Philosophy", 124.
[5] Isaiah Berlin, "The Decline of Utopian Ideas in the
West", in The Crooked Timber of Humanity, 24.
[6] João
Pereira Coutinho, "Política e Perfeição: Um Estudo sobre o Pluralismo de Edmund
Burke e Isaiah Berlin", (Tese de Doutoramento, Universidade Católica
Portuguesa, 2008), 272.