N. do E.: o artigo a seguir foi originalmente publicado em novembro de 2011. Os recentes acontecimentos com o Deutsche Bank, com a banca italiana e, em geral, com todo o sistema bancário europeu, cuja crise bancária parece não ter fim, o tornaram extremamente atual.
Para quem quer entender a raiz do problema, e como foi possível os bancos chegarem ao ponto de quebrar um país ou colapsar o sistema inteiro, este artigo é imprescindível.
"Dentre todas as maneiras de se organizar o sistema
bancário, a pior é justamente a que temos hoje". Essas palavras foram proferidas por ninguém
menos que Sir Mervyn King, presidente do Banco Central da Inglaterra (Bank of
England), em outubro de 2010, no seminário anual realizado pela revista The Economist (o Encontro de Buttonwood) em Nova York. É difícil discordarmos.
A história do sistema bancário é repleta de
crises, turbulências, euforias, depressões, quebras generalizadas, altos lucros
e flutuações desenfreadas. E, não
obstante, o setor parece não ter aprendido muita coisa ao longo do tempo. O dilema do sistema bancário ainda nos
assombra: quando uma maioria de correntistas repentinamente resolve sacar o dinheiro
de suas contas, não há dinheiro suficiente nos cofres dos bancos.
Um estudo do FMI, realizado em 2008,
contabilizou 124 crises bancárias desde 1970.
Vários países estão na lista.
Devido à data do estudo, a Islândia não foi incluída. E nem a Europa.
À luz dos atuais eventos, faz-se necessário a
pergunta: pode o atual sistema bancário ser reformado? A declaração de Sir Mervyn King deixa
implícito que sim. Certamente há outras
maneiras de se organizar o sistema bancário.
Implícita também nessa afirmação está o fato de que o sistema bancário
realmente já foi mais corretamente organizado.
Mas então por que o nosso atual sistema bancário é tão frágil? Por que, em vez de progredir, regredimos
nessa vital atividade econômica? Por que
esta é a única indústria que necessita de um emprestador de última
instância? Por que ela consegue fazer
com que a economia de um país seja sua refém?
Quais são as reformas necessárias?
Abaixo, uma tentativa de abordar resumidamente
as principais características do nosso atual sistema bancário. Em seguida, uma análise da estrutura de
Basileia III (os Acordos de
Basileia III), a qual, no momento, está sendo anunciada solenemente como a
suposta ferramenta que irá fortalecer a resiliência dos bancos a crises. Ao final, serão levantadas algumas questões
essenciais e, em seguida, apresentados os princípios sobre os quais deve se
basear qualquer tipo de reforma bancária.
O
sistema bancário atual
São vários os aspectos da atual prática
bancária que devem ser discutidos. Não
obstante, vamos aqui restringir nossa análise às características que melhor
definem como os bancos operam nos dias de hoje.
Os efeitos econômicos de tais práticas são não apenas relevantes como
também decisivos.
A
maturação descompassada
A regra de ouro sobre como deveria funcionar o
sistema bancário foi cunhada em 1853 por Otto Hübner, que disse que "ativos e
passivos não devem ter suas datas de maturação descompassadas". Mas este não é um problema restrito aos
bancos. Com efeito, todas as empresas
têm de aprender a como lidar com ativos e passivos que maturam em períodos de
tempo distintos. Seja uma produtora de
aço ou um supermercado, os empreendedores têm de garantir que seus passivos não
vencerão antes de seus investimentos. Um
problema de liquidez pode acabar se transformando em um problema de solvência
caso os ativos tenham de ser vendidos a preços de liquidação ou caso os
passivos não consigam ser rolados.
Em suma, os bancos emitem passivos de curto
prazo (depósitos em conta-corrente, ou seja, dívida com com prazo de maturação
zero) com o intuito de financiar investimentos de longo prazo (por exemplo,
empréstimos comerciais, hipotecários etc.).
Se os correntistas constantemente renovarem suas dívidas (isto é, se
absterem de sacar suas contas-correntes), os bancos não terão problemas de
liquidez. Os problemas surgem quando há
uma mudança de comportamento e os correntistas decidem tirar seu dinheiro dos
bancos.
O
sistema bancário de reservas fracionárias
A maturação descompassada é uma especulação de
risco. E a prática de reservas
fracionárias é uma maturação descompassada em ampla escala.
Se um banco utiliza $100 em dinheiro em espécie
que estava em uma conta-corrente para emprestá-lo para um indivíduo qualquer a
um prazo de maturação de dois anos, o banco está incorrendo em uma maturação
descompassada. Ele emitiu $100 em
passivos de curto prazo para financiar ativos de longo prazo. Se ele não conseguir converter esse ativo em
$100 quando for demandado pelo correntista, o banco estará insolvente.
No entanto, no atual sistema bancário de
reservas fracionárias, os bancos normalmente não emprestam o dinheiro em
espécie que foi depositado. Eles, em vez
disso, criam uma nova conta-corrente (formada unicamente por dígitos eletrônicos),
cujo valor é então concedido como empréstimo.
Desta forma, o balancete de um banco irá mostrar um total de $200 na
forma de depósitos em conta-corrente, sendo $100 em dinheiro em espécie e $100 em
empréstimos (com dinheiro exclusivamente eletrônico). Portanto, o banco possui 50% de dinheiro em
espécie (reservas) para honrar seu passivo de $200. Ele possui apenas uma "fração" como reserva. Ao constatarem que os correntistas raramente
retiram seus fundos, os bancos se sentem confiantes para expandir o crédito,
concedendo empréstimos em quantias várias vezes superiores ao dinheiro
originalmente depositado. Bancos, desta
forma, criam dinheiro "ex nihilo". Ou, como descrito nos atuais livros-texto de
economia, eles multiplicam dinheiro.
Trata-se do "multiplicador monetário" (mais detalhes abaixo).
Portanto, por meio da prática de reservas
fracionárias, os bancos podem emitir passivos de curto prazo ao mesmo tempo em
que mantêm apenas uma pequena fração de ativos líquidos de curto prazo, sendo
que a vasta maioria dos ativos está na forma de investimentos de longo
prazo. Ao longo da história, a maioria
dos bancos mostrou-se incapaz de sobreviver durante muito tempo seguindo esta
prática, dado que eles simplesmente não eram capazes de restituir todo o seu passivo
em espécie (no passado, ouro; no presente, cédulas criadas pelo banco
central). A criação de um banco central
foi a consequência lógica desse arranjo, uma criação com o objetivo de remediar
essa falha.
Bancos
centrais
Praticamente todos os países do planeta possuem
no núcleo de seu sistema financeiro um banco central, cujas funções precípuas
são a emissão de moeda nacional e o controle das taxas de juros (controlando
desta forma a oferta monetária), e que age como emprestador de última instância
ao setor bancários em momentos de crise.
Adicionalmente, vários bancos centrais também assumem uma função
regulatória com o objetivo de supervisionar os bancos, implementando uma
miríade de regulamentações que tentam garantir a estabilidade do sistema financeiro.
O sistema bancário de reservas fracionárias não
somente é monitorado como também é estimulado pelo banco central, cuja
principal ferramenta de política monetária é o mecanismo dos "depósitos
compulsórios", isto é, a estipulação da quantidade de dinheiro que um banco
deve manter como reserva para seus depósitos.
Ao reduzir a fração de reservas que os bancos são obrigados a manter, o
banco central permite que o sistema bancário aumente o "multiplicador
monetário". Os bancos podem agora
expandir mais crédito em cima de uma mesma quantidade de reservas.
Até aqui, foram abordados de maneira descritiva
apenas os aspectos mais essenciais do sistema bancário atual, com o objetivo de
nos prepararmos para a análise a seguir.
À medida que prosseguirmos, serão apresentadas algumas críticas ao atual
arranjo bancário.
O
arranjo da Basileia
O total fracasso de Basileia I e principalmente
de Basileia II em antecipar a crise financeira de 2007 estimulou as autoridades
a revisar e atualizar seu arranjo de regras sobre a regulação do sistema
bancário. Sob o título de Basileia III,
um arranjo revisado foi publicado às pressas.
Há algumas diferenças substanciais entre Basileia II e Basileia III. Embora muitas das falhas anteriores tenham
sido mantidas, trata-se de um passo na direção correta, embora seja um passo
muito pequeno. (A crítica a seguir está
longe de ser completa).
De acordo com o Comitê de Supervisão Bancária
da Basileia (CSBB), as propostas de Basileia III têm dois principais objetivos:
1) fortalecer as regulamentações globais sobre capital e liquidez com o
objetivo de promover um setor bancário mais resiliente; e 2) aprimorar a
capacidade do setor bancário de absorver os choques oriundos de tensões
financeiras e econômicas.
Para atingir estes objetivos, as principais
propostas que o CSBB de Basileia III já desenvolveu são: a) reforma dos requerimentos de capital
(incluindo a qualidade e a quantidade do capital), completa cobertura de risco,
grau de alavancagem; e b) alteração da liquidez do setor (razões de curto prazo
e longo prazo).
Requerimentos
de Capital e Ativos Ponderados pelo Risco (APR)
Em termos de requerimento de capital, as
principais alterações estão nas exigências mais severas, tanto na qualidade
quanto na quantidade. Com relação à
qualidade, as regras para a qualificação do capital são mais rigorosas. Ações ordinárias e lucros obtidos passam a
ser os componentes predominantes do Capital Tier
1 ao invés de apenas os instrumentos de dívida.
Com o intuito de preservar o núcleo do Tier 1,
o Comitê introduziu dois novos "colchões": o Colchão de Conservação de Capital
tem o intuito de fazer com que os bancos absorvam choques durante períodos de
tensão sem que saiam das especificações de capital do Tier 1, e um mais
discricionário Colchão Contracíclico de capital tem o objetivo de compensar o
aumento nos riscos sistêmicos em épocas de crescimento excessivo do crédito.
Em termos de quantidade, o Capital Tier 1 total
agora requerido passa a ser de 6%, sendo que em Basileia II era apenas
de 2% — em acréscimo aos "colchões", que requerem 5% mais capital. Veja o
gráfico.
(Colchão Contracíclico em azul claro; Colchão
de Conservação de Capital em rosa; Capital Mínimo de Alta Qualidade em cinza)

Período
de tempo para a implementação dos novos requerimentos de capital
Adicionalmente, um novo grau de alavancagem
também fará parte do aparato regulatório do sistema bancário. Os bancos serão obrigados a manter um grau de
alavancagem de 3% ou mais (33 vezes seu capital). Os ativos não ponderados incluem provisões,
empréstimos, itens não contabilizados nos balanços e que têm plena conversão, e
todos os derivativos. O principal
objetivo desse grau de alavancagem é justamente restringir a alavancagem no
setor bancário, ao mesmo tempo em que ajuda a proteger contra riscos de modelo
(riscos envolvidos na utilização de modelos matemáticos que precificam papeis
financeiros) e erros de mensuração.
É certamente meritório implementar regras mais
rígidas sobre requerimentos de capital, mas isso ainda está longe de ser o
bastante. Vale lembrar que, no início da
crise financeira, várias instituições financeiras estavam adequadamente
capitalizadas, isto é, mais do que compatível com Basileia. Não obstante, elas sucumbiram em menos de um
mês. Um exemplo emblemático foi o de um
famoso banco hipotecário no Reino Unido.
Após a adoção de Basel II pelo Reino Unido em 2007, dentre todos os
grandes bancos, aquele que mais rigorosamente seguia as determinações de
requerimento de capital de Basileia II era o Northern Rock. Apenas alguns dias após anunciar sua intenção
de retornar seu capital em excesso aos seus acionistas, o banco simplesmente
ficou sem dinheiro. Em mais de 150 anos,
foi a primeira "corrida bancária" clássica ocorrida na Grã-Bretanha.
Definir exatamente os requerimentos de capital
é um trabalho em grande medida arbitrário.
Mais arbitrário ainda é a classificação de ativos de risco sob as regras
da Basileia. Na "abordagem padrão"
(definida pelo Comitê da Basileia), títulos da dívida pública classificados
entre AAA e AA- não requerem absolutamente nenhum capital, ao passo que A+
requer apenas 20%. Entidades do setor
público também desfrutam de um status de grande "segurança" sob Basileia.
Vejamos a Itália, por exemplo. Um banco em posse de títulos italianos
necessita de apenas 2,1% de Capital Tier 1 (20% de ativos ponderados pelo risco
vezes 10,5% do necessário requerimento de capital estipulado por Basileia). Isso significa que uma mera redução contábil
de 5% na dívida italiana (na forma de calote) pode acabar com toda a base de
capital de um banco. Não nos esqueçamos
de que a recente redução contábil proposta para a dívida grega foi de 50%.
Em dezembro de 2009, Grécia e Itália foram
classificadas pela agência Fitch como A- e A+, respectivamente. Isso significa que apenas 1,6% de Capital
Tier 1 era requerido (20% de ativos ponderados pelo risco vezes 8% do
requerimento de capital estipulado por Basileia). Enquanto isso, títulos de Portugal, Irlanda e
Espanha não requeriam absolutamente nenhuma reserva de capital.
As regras da Basileia geram um incentivo:
acumular ativos de baixo risco e de risco nulo, o que faz com que a base de
capital de um banco seja alavancada ao máximo.
Basileia III ao menos limita a alavancagem máxima. Basileia II não impunha tal limite. As securitizações foram um subproduto direto
desta regras de requerimento de capital.
Várias hipotecas de risco foram empacotadas conjuntamente dentro do
mesmo conjunto de títulos para serem revendidas no mercado secundário, e as
agências de classificação de risco concederam AAA para esse conjunto de ativos
podres (como que hipotecas ruins, ao serem empacotadas juntamente com centenas
de outras hipotecas ruins, podem se transformar em ativos de alta qualidade é
algo que ainda assombra). Essa prática
permitiu que os bancos concessores de empréstimos hipotecários retirassem
ativos ruins de seus balancetes e, ao mesmo tempo, estimulava os bancos de
investimento a acumular esses títulos sem jamais ter de se preocupar em manter
uma quantidade suficiente de capital (pois eram AAA).
No entanto, em vez de utilizarem classificações
externas, os bancos também podiam utilizar seus próprios parâmetros de risco
para calcular seu capital, método esse conhecido como abordagem baseada na
classificação interna (ABCI). Por esse
método, os bancos puderam empregar sofisticados modelos financeiros para
determinar seu grau de exposição a vários riscos. Apesar do total fracasso em utilizar
complexos modelos de risco — os quais geraram a crise da LTCM (Long
Term Capital Management) em
1998 —, os bancos estavam seguidamente determinando seu próprio requerimento
de capital por meio de tais ferramentas (modelagem de risco é um tópico
crucial, mas não será abordado em profundidade neste espaço).
Em suma, a modelagem financeira é algo
amplamente imperfeito e bastante arbitrário.
Vários tipos de risco são irreconhecíveis e, por definição, não
quantificáveis. Ademais, modelos de
risco estão sujeitos a grandes abusos e manipulações. O principal incentivo dos bancos ao utilizar
seus próprios modelos é subestimar os riscos de modo a permitir uma base de
capital mais alavancada (e, logo, mais lucrativa).
Embora requerimentos de capital mais rígidos
sejam de fato uma alteração bem-vinda, a estimativa de quanto capital é
prudente é algo que depende de julgamentos arbitrários. Adicionalmente, a avaliação de ativos de
risco é completamente deficiente. Ambas
as abordagens — a padrão e a ABCI — são inerentemente falhas.
Por fim, os requerimentos de capital da
Basileia são amplamente enviesados em prol da dívida governamental. No Acordo da Basileia original (1988), as
dívidas de todos os governos da OCDE receberam risco zero. E isso permaneceu praticamente inalterado
desde então. Deveriam os reguladores se
surpreender com o fato de que a maior ameaça para o sistema bancário europeu no
momento seja exatamente a dívida soberana?
Índice
de Liquidez
Basileia II centrou-se amplamente nos ativos
dos balancetes dos bancos e negligenciou a liquidez e a estrutura dos passivos do
sistema bancário. Os novos Índices de
Liquidez introduzidos por Basileia III tentam adereçar esta grave
inconsistência.
Além do capital que os bancos devem ter como
reserva para ativos ponderados pelo risco, as instituições financeiras hoje têm
mais dois novos requerimentos para cumprir: Relação de Cobertura de Liquidez
(RCL) e Relação Líquida de Financiamento Estável (RLFE). A RCL foi criado para promover a resiliência
de curto prazo do risco de liquidez de um banco, garantindo que ele possua uma
quantidade suficiente de ativos altamente líquidos para sobreviver a um
significativo cenário de tensão que dure 30 dias completos. E a RLFE tem o objetivo de promover a
resiliência de longo prazo ao exigir que os bancos possuam capital ou
financiamento de longo prazo de alta qualidade para poderem sobreviver por um período
de um ano de tensão um pouco menos severa.
Por mais louvável que seja esta regulação, ela
se baseia em fundamentos questionáveis. A
RCL tem o objetivo de garantir que um banco possua uma quantidade suficiente de
ativos líquidos desimpedidos e de alta qualidade que o permitam sobreviver
(isto é, que o permitam satisfazer as crescentes exigências de restituição de
dinheiro) durante um curto período (30 dias completos) de tensão bastante severa. Isto, portanto, requer que um banco especule
quais serão o fluxo de saída e o fluxo de entrada de dinheiro ao qual ele
estará sujeito durante este período.
Considerando-se que é provável que eles sofram um aumento das exigências
e uma diminuição dos recursos disponíveis, os bancos deveriam manter um colchão
de ativos líquidos de alta qualidade em valor igual ou maior do que seu esperado
fluxo líquido total de saída de dinheiro.
Os bancos serão obrigados a satisfazer A RCL a todo o momento.
A RCL supostamente possui uma função similar
àquela dos compulsórios (definidos pelos bancos centrais). Os compulsórios definem quanto de dinheiro em
espécie (ou de dinheiro eletrônico na forma de reservas depositadas no banco
central, conversíveis em dinheiro a qualquer momento) os bancos devem ter para
lastrear seus depósitos em conta-corrente. A RCL
é exatamente a mesma coisa, com o acréscimo de que ativos de alta qualidade
também se qualificam para satisfazer o regulador. Os compulsórios no atual sistema bancário são
menores do que 10% na maioria dos países, chegando até mesmo a 0% em alguns
casos extremos (Austrália, Canadá e Nova Zelândia).
Duas críticas devem ser feitas: o arranjo de
ativos de alta qualidade e o método de se estimar um "curto período de tensão
bastante severa". Não é difícil
adivinhar qual classe de ativos vai mais uma vez receber a imerecida
classificação de alta qualidade. Sim,
naturalmente, as dívidas soberanas. Não
querendo soar repetitivo, deixemos aos mercados de capital decidir quão boas
elas são.
Quanto à segunda crítica: como podem os bancos estimar
o que constitui um período de tensão severa?
De acordo com o CSBB, as instituições financeiras devem calcular seu esperado
fluxo líquido total de saída de dinheiro durante um cenário de 30 dias de
tensão. Com relação à saída de dinheiro,
ela é "calculada multiplicando os saldos pendentes de várias categorias ou
tipos de passivo e itens não contabilizados nos balanços por taxas esperadas de saques" (ênfase
minha).
O eterno dilema do sistema bancário jaz
exatamente no fato de que estas taxas
não são quantificáveis. A RCL da
Basileia baseia-se no mesmo princípio utilizado para respaldar o valor
percentual do compulsório: a "lei dos grandes números". Ou seja, para satisfazer as normais exigências
de liquidez de seus clientes, os bancos precisam ter em mãos, na forma de
dinheiro, apenas uma fração do dinheiro total que foi neles depositado. No caso da RCL, para aguentar 30 dias de
tensões severas, é necessário ter em mãos dinheiro e mais alguns outros ativos
altamente líquidos.
No entanto, pelo simples fato de que o fenômeno
bancário recai dentro do âmbito da ação humana, os riscos de retiradas de
depósitos não são nem quantificáveis e nem seguráveis. A ação humana está sempre sujeita a uma
permanente incerteza. Consequentemente,
não se trata de um risco segurável (ou mensurável). Ao longo da história, os bancos nunca se
mostraram capazes de permanecer solventes mantendo como reservas apenas uma
fração de seus depósitos. A RCL da Basileia
irá impor um colchão mais grosso contra esta incerteza, é fato. Mas não será capaz de evitá-la
indefinidamente. Não nos esqueçamos de
que uma corrida bancária necessita de muito menos de que 30 dias para derrubar
uma instituição financeira.
A Relação Líquida de Financiamento Estável
(RLFE) é similar às regras de requerimento de capital, embora um pouco mais rígida. Ela ataca as dificuldades geradas pela
maturação descompassada obrigando os bancos a financiar determinadas classes de
ativos com passivos de prazo mais longo (Capital Tier 1 e 2 incluídos). Evidentemente, a dívida soberana está entre a
classe de ativos da alta qualidade. No final,
a RLFE claramente representará um empecilho adicional ao crescimento dos
balancetes.
Como um todo, Basileia III representa um
aprimoramento sobre seu fracassado antecessor.
Os requerimentos de capital foram elevados. E o Comitê finalmente reconheceu que a
iliquidez pode rapidamente se transformar em insolvência. Infelizmente, suas
arbitrárias ponderações de risco se mantêm praticamente inalteradas desde 1988,
concedendo a determinadas classes de ativos uma classificação de baixo risco
(no mínimo) questionável. Talvez a mais
desapontadora peculiaridade seja seu longo cronograma de implementação. Propostas essenciais foram postergadas para
anos mais à frente e a conformidade completa às novas regras ficou apenas para
2019. Algo que me diz que os bancos não
têm todo esse tempo.
A lucratividade dos bancos (retorno sobre o
patrimônio) sofrerá um bom impacto, tudo o mais o constante. Mas é difícil prever como os bancos irão
reagir para compensar esta perda de renda.
E há também os fardos burocráticos: relatórios, divulgações, transparências
e aquiescência às regras de Basileia III certamente irão afetar o resultado
financeiro dos bancos.
No final, o arranjo da Basileia é como um
motorista indo em direção a um penhasco a 145 km/h e que repentinamente reduz
para 95 km/h, ao mesmo tempo em que decide parar de fumar. Isso certamente irá reduzir seus riscos. Sua vida pode até se prolongar. Mas o resultado final não será alterado.
Reformas
verdadeiras
Portanto, como podemos aperfeiçoar o pior
sistema bancário que já houve? Como
podemos garantir que os bancos internalizem os custos de suas maturações?
A primeira reforma a ser proposta já foi na
realidade apresentada por dois membros do Parlamento britânico, Steven Baker e
Douglas Carswell, por meio de um projeto de lei que proibiria os bancos e as sociedades
de crédito imobiliário de emprestar dinheiro depositado em contas-correntes sem
a permissão do respectivo correntista.
Seu propósito é distinguir os depósitos
destinados à custódia dos depósitos destinados a serem emprestados por
instituições financeiras. Um projeto de
lei simples e direto, que exigiria que os bancos especificassem no momento do
depósito se o desejo do correntista é unicamente pedir que o banco guarde seu
dinheiro ou se, ao contrário, ele autoriza o banco a emprestar seu dinheiro
para terceiros. Essa simples mudança na
legislação teria um enorme impacto, uma vez que ela iria organizar a confusão e
impedir que os bancos emprestassem dinheiro de correntistas que jamais
intencionaram destinar seus fundos a empréstimos. Emprestadores seriam recompensados com um
pagamento de juros, por satisfazerem as necessidades de financiamento de um
tomador de empréstimos; e os correntistas não mais se tornariam emprestadores
involuntária e compulsoriamente, da noite para o dia.
Sim, correntistas que desejassem um serviço de
custódia provavelmente teriam de pagar por ele.
No final, tudo vai depender do contrato entre o correntista e o banco; a
única desde que o contrato seja claro
exequível. Esta iniciativa iria diminuir
enormemente os riscos de maturação descompassada que os bancos acentuadamente
praticam no presente, o que iria reduzir as ameaças de crises de liquidez.
Consequentemente, o sistema bancário de
reservas fracionárias (SBRF) teria de ser reavaliado, o que nos leva à segunda
proposta. A capacidade de criar
depósitos por meio da expansão creditícia ex
nihilo coloca todo o sistema bancário sob um enorme risco sistêmico. Primeiramente, há o argumento legal, que
considera ser uma fraude os bancos criarem múltiplos direitos de reivindicação
sobre o mesmo dinheiro originalmente depositado por um único correntista (um
argumento que este autor endossa). Em
segundo lugar, ao expandir o crédito independentemente de ter havido uma prévia
formação de poupança, o SBRF gerará investimentos insustentáveis em diversas
áreas, os quais mais cedo ou mais tarde terão de ser liquidados, exatamente por
não haver recursos que deveriam ter sido previamente poupados. Um típico exemplo de um ciclo econômico.
Reduzir a maturação descompassada a um mínimo e
abolir o SBRF iria aperfeiçoar amplamente a solidez do sistema bancário. Certamente o deixaria menos propenso a
quebras sistêmicas. Sob esse cenário, um
banco central seria irrelevante, uma vez que sua principal função — prover
liquidez — tornar-se-ia virtualmente desnecessária.
A terceira e última proposta possivelmente irá
fazer com que as duas primeiras se tornem redundantes: a adoção de um free banking (sistema bancário livre,
sem regulamentações, sem barreiras à entrada e sem moeda de curso forçado). O free
banking acarretaria a liberdade de se ser bem sucedido e, ainda mais
importante, a liberdade de ir à falência; uma restauração dos incentivos
adequados e uma abolição do sistema regulatório. Acima de tudo, uma completa retirada do
estado do sistema financeiro. Isso
significaria o fim do banco central.
Também significaria o fim de todos os seguros governamentais dos
depósitos. E, obviamente, nenhum tipo de
pacote de socorro.
Internalizar os custos do sistema financeiro é
algo central para restaurar a confiança no setor bancário. Instituições deveriam ser livres para colher
os altos (e arriscados) lucros oriundos da prática de tomar emprestado a curto
prazo e emprestar a longo prazo. Mas
elas não deveriam poder socializar seus prejuízos para o restante da sociedade
quando esses investimentos dessem errado.
Os bancos devem ser totalmente responsáveis por suas decisões.
Esse conjunto de reformas iria atacar várias
questões que ameaçam o atual sistema bancário, como os derivativos. Amplamente reconhecidos como "armas de
destruição em massa", a verdade é que eles só podem ser assim considerados em
um cenário de garantia implícita de socorro.
A realidade é que o banco central foi criado não para impedir que os
bancos assumissem riscos excessivos, mas sim para impedir que eles quebrassem
como consequência desta assunção de riscos excessivos. Jaz aí um de seus principais defeitos.
Seria preferível a adoção de todas as três
propostas acima. Nesta ordem. E então poderíamos finalmente ter um free banking sujeito aos tradicionais
princípios legais. Um conceito tão simples
e, no entanto, tão revolucionário em tempos modernos. Tem funcionado para todas as outras
indústrias. Não há razão para crer que
ela não funcionaria para os bancos.
Conclusão
Para utilizar outra frase de Sir Mervyn King,
"esta é a pior crise financeira que já vivenciamos pelo menos desde a Grande
Depressão, se não da história". Não há
dúvidas a respeito. E suas causas
fundamentais estão intimamente ligadas à maneira como o sistema bancário é
organizado.
Abolir o sistema bancário de reservas fracionárias
e deixar claro quando os depósitos serão mantidos sob custódia é uma medida que
irá aprimorar a solidez dos bancos. No
entanto, essas duas reformas podem fracassar se um emprestador de última
instância continuar em operação, uma vez que os bancos encontrariam maneiras
inovadoras de contornar essas restrições.
É válido lembrar que, dada a presença de uma
implícita garantia de socorro, as regulamentações simplesmente se tornam o
principal obstáculo no caminho dos bancos.
O incentivo do setor passa a ser o de contorná-las de modo a obter os
maiores lucros possíveis. Derivativos, exposições
não contabilizadas nos balanços e tudo o mais que esteja fora do escopo das
regulamentações se tornam válidos.
Perigosas inovações financeiras são o subproduto de regulamentações
bancárias combinadas com uma implícita garantia de socorro. O regulador sempre estará vários passos
atrás.
A atual estrutura do sistema bancário estimula
uma excessiva assunção de risco, embora desconsidere as consequências de tal
postura. Regulamentações bancárias
(inclusive Basileia) induzem instituições financeiras a operarem no
limite. Aquiescer a regras mínimas,
aceitar riscos máximos, e confiar em pacotes de socorro do banco central são
atitudes que jamais podem infundir prudência à prática bancária. Porém, o temor de falência certamente pode
alterar o comportamento.
Um sistema financeiro sólido não pode se basear
somente na confiança ou na ideia de que a maioria dos correntistas não irá
exigir a restituição de seu dinheiro depositado. Retornar a um sistema bancário sólido
significa estender aos bancos as mesmas regras e incentivos que se aplicam a
todo o resto da economia. Nada de
privilégios. Nada de subsídios. Bancos prudentes e capazes irão
prosperar. Os imprudentes e fraudulentos
irão perecer. E toda a economia irá se
desenvolver sobre bases mais sólidas.