Segunda-Feira, 15 de abril de 2019, apresentou ao
mundo uma cena triste e assombrosa: a Catedral de Notre Dame em Paris foi
parcialmente consumida por um incêndio.
Este terrível "espetáculo" serviu para nos relembrar
como séculos de "capital cultural" acumulado podem rapidamente ser destruídos.
As madeiras de carvalho dos anos 1200 que formavam o
telhado da catedral e sua torre principal (a 'flecha') se
perderam para sempre. Alguns vitrais inestimáveis podem
ter sido danificados.
Como diz o ditado, a França é o coração do Ocidente,
Paris é o coração da França e Notre Dame é o coração de Paris -- e, sendo
assim, a imagem da icônica catedral em chamas representa uma perturbadora,
embora simplista, metáfora do declínio do Ocidente.
A expressão "capital cultural" aqui utilizada
significa, é claro, algo bem mais amplo do que as meras definições econômicas
de capital como sinônimo de 'riqueza financeira' ou de 'fatores de produção'.
Mesmo a mais ampla visão austríaca, que classifica 'capital' como bens de
produção heterogêneos -- aquilo que Rothbard rotulou de "a intrincada, delicada
e entrelaçada estrutura de bens de
capital" -- não é capaz de capturar a soma da riqueza de uma sociedade.
O capital, em última instância, é algo mensurável, reduzível
a unidades, ao passo que o valor de Notre Dame para os católicos ao redor do
mundo não pode ser mensurado.
Não é possível quantificar o custo de seu estrago ou
destruição em termos puramente econômicos. Mas é possível reconhecer uma perda.
Centenas de anos de riqueza associados ao belo telhado e à bela torre principal
da catedral foram perdidos pela humanidade para sempre.
A
riqueza é composta ao longo do tempo
Assim como ocorre com os juros compostos, a riqueza
civilizacional também é algo que vai se capitalizando (crescendo
exponencialmente) ao longo do tempo. O conceito de 'riqueza' pode ser tanto
algo material como também cultural, espiritual e, é claro, civilizacional.
Pense em riqueza não apenas em termos de balanços
patrimoniais, mas em termos de cultura, de conhecimento e de sabedoria que vão
se acumulando (capitalizando) ao longo do tempo -- como uma espécie de poupança
que vai crescendo exponencialmente.
Com efeito, este é o segredo: acumulação e tempo.
Sociedades saudáveis constroem e preservam riqueza, o que significa que elas
são criadas por indivíduos com um horizonte temporal voltado para o longo
prazo; por indivíduos que se esforçam para produzir mais do que consomem.
As pessoas que construíram Notre Dame ao longo de
dois séculos, utilizando andaimes e polias rudimentares, certamente não
esperavam ver o resultado final de seu trabalho. Com efeito, nenhum papa, arquiteto,
financista, pedreiro, artista, operário ou monarca francês testemunhou todo o
desenrolar do projeto, desde o início até a conclusão.
Mas eles construíram algo que durou, algo de
benefício incalculável para as gerações futuras. Eles criaram uma riqueza que
se expandiu para muito além de suas vidas.
Todas as sociedades saudáveis fazem isso. A noção de
se preocupar com coisas que irão durar para além de sua vida é algo intrinsecamente
humano. Os seres humanos são naturalmente propensos a construírem sociedades, e
os humanos mais ambiciosos sempre se esforçaram para criar não apenas
monumentos, mas também modos de vida duradouros.
E isso só é possível quando as pessoas trabalham com
uma visão de longo prazo, visando a
um futuro que eles próprios não irão usufruir.
Tal comportamento foi ainda mais verdadeiro para nossos
ancestrais primitivos, que viveram vidas extremamente
curtas e difíceis -- as quais permitiram o luxo e a abundância na qual hoje
vivemos. Podemos apenas imaginar o quanto eles gostariam de apenas poder
usufruir meios de subsistência que hoje damos como garantidos -- comida, água,
roupas, abrigo -- em vez de ter de caçar, coletar e produzir estes meios
diariamente.
Este traço, aliás, talvez seja, mais do que qualquer
outro, o marco distintivo da civilização. Podemos rotulá-lo de várias coisas,
mas vamos apenas dizer que sociedades saudáveis criam capital. Elas consomem menos
do que produzem. E esta acumulação de capital cria uma
espiral ascendente que permite o aumento do investimento e da produtividade,
tornando o futuro mais rico e mais brilhoso.
A acumulação de capital tornou possível à população
humana se desenvolver e prosperar para além da angústia da mera subsistência. Tornou
possíveis as revoluções agrícola, industrial e digital.
O que nos leva ao ponto principal: a reconstrução de
Notre Dame.
Seria
possível fazer de novo e igual?
O conhecimento prático sobre como fazer alguma coisa
(o famoso "know-how"), o talento artístico e a habilidade artesanal também representam
formas de riqueza que podem ser perdidas ao longo do tempo. E aparentemente
foram.
Este
artigo de uma revista especializada questiona se a Notre Dame pode
realmente ser reconstruída da mesma maneira:
Embora
os arquitetos de hoje possuam informações detalhadas sobre a catedral o
suficiente para fazer uma reconstrução tecnicamente muito precisa, a habilidade
artesanal muito dificilmente será a mesma dos construtores originais.
Hoje,
a pedra que foi utilizada para construir a catedral seria cortada utilizando um
maquinário específico, e não as mãos de um pequeno exército de pedreiros
especializados, como era no século XII. "Construções góticas dos séculos XIX e
XX sempre parecem meio mortas, pois as pedras não apresentam as mesmas marcas criadas
pelas mãos dos construtores", afirma Stephen Murray, historiador de arte da
Universidade de Columbia.
Além de tudo isso, vale também acrescentar o fato de
que a reconstrução de Notre Dame ocorrerá em uma época dominada por uma visão de
mundo bastante diferente daquela que levou à construção da catedral. Notre Dame
foi construída na Alta Idade Média -- era em que a Europa inventou a
Universidade. Era a época de São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. Era uma
época de imenso interesse em novas tecnologias e em novos tipos de aprendizado.
Boa parte do qual possibilitou o surgimento de Notre Dame. Era também, é claro,
uma época de amplo e predominante cristianismo.
A Europa de hoje, no entanto, já amplamente rejeitou
o cristianismo, e até mesmo o vitupera e ridiculariza em seus trabalhos artísticos,
em sua política e em sua academia. Consequentemente, a visão de mundo que levou
à construção de Notre Dame se tornou anátema à mentalidade européia moderna. Os
europeus podem valorizar a construção física conhecida como Notre Dame, mas o espírito daquilo que ela representa já foi
incendiado há séculos.
Trata-se de um capital cultural e espiritual que já foi dilapidado e que não pode mais -- ao menos não no curto prazo -- ser recriado.
O
erro a ser evitado
Questões religiosas e espirituais à parte, nunca é
demais ressaltar que, sim, a civilização é muito mais do que a economia, mas é
crucial que ela entenda de economia. Mises nunca se cansou de alertar que a civilização
"irá perecer caso as nações mantenham o caminho pelo qual optaram ao abraçar doutrinas
que rejeitam o pensamento econômico".
Consequentemente, quando consideramos o triste espetáculo
da Notre Dame em chamas, deveríamos nos perguntar se a política e a economia de
nossa era estimulam ou desencorajam a construção de riqueza para as gerações futuras.
Mesmo se reduzirmos o legado dos atuais países ocidentais
ao mero bem-estar material, a ameaça de perdermos no futuro tudo o que nos tornou
ricos hoje certamente deve nos preocupar a todos.
Políticas voltadas apenas para satisfações de curto prazo,
para imediatismos que geram
consequências nefastas de longo prazo, podem consumir o futuro de uma nação
exatamente como o fogo consumiu o telhado de Notre Dame.