O capitalismo é frequentemente descrito pelos seus
detratores como "um sistema darwinista de competição", uma selva na
qual apenas os mais fortes sobrevivem, e na qual os mais
fracos e os menos capazes definham.
Já os mais comedidos simplesmente descrevem o
capitalismo como um sistema "baseado na concorrência".
Curiosamente, vários defensores do capitalismo
também parecem assimilar essa ideia de que o capitalismo é um sistema baseado
na competição. Eles apenas contra-argumentam que essa concorrência, longe de
ser um defeito, é na realidade a grande virtude do sistema, sendo ela a
responsável por elevar o padrão de vida da população ao criar bens e serviços
de melhor qualidade.
Em minha visão, isso é um erro. Aceitar a
pressuposição de que o capitalismo é um sistema baseado na competição -- em
contraste a outros sistemas que hipoteticamente seriam de cooperação (como socialismo e
comunismo) -- significa aceitar um debate que já começa inteiramente moldado
nos termos criados pelos seus detratores, de modo que, a partir daí, qualquer
discussão já está contaminada e enviesada.
No
âmbito estatal, a competição é selvagem
Obviamente, não estou criticando a concorrência. Nem
poderia. Afinal, não fosse a concorrência entre produtores, com cada um deles
se esforçando para ganhar acesso ao dinheiro dos consumidores, não haveria como
vivenciarmos um progressivo
aumento em nossa qualidade de vida em decorrência da
contínua melhora observada nos bens e serviços que usufruímos -- os quais, vale
ressaltar, apresentaram quedas reais nos preços em
decorrência exatamente desta competição.
A concorrência de mercado é o que aumenta a
eficiência e reduz o preço real dos bens e serviços, ao mesmo tempo em que gera
inovação. Dado que todos nós já estamos familiarizados com este argumento --
até porque o vivenciamos diariamente --, é desnecessário ficar reforçando este
ponto.
Adicionalmente, a alternativa à concorrência é o
planejamento centralizado, no qual há um único fornecedor de bens e serviços,
sendo ele quem decide "em nosso nome" como estes serão produzidos e alocados.
Todas as sociedades que tentaram este arranjo se afundaram na miséria
e no extermínio
em massa.
O ponto aqui é outro.
Se os detratores do capitalismo consideram a
competição de mercado algo ruim, por que o mesmo não se aplica à esfera
política?
Peguemos a tão venerada democracia. Se a competição
é um fator deletério e corruptor, então a democracia tem de ser o primeiro
sistema a ser abolido. Afinal, o que fazem os políticos senão competirem
acirradamente entre si para conseguir um cargo?
Pior: não apenas há essa acirrada competição entre
partidos políticos, como também há uma vigorosa competição entre empresas,
lobistas e grupos de interesse para ver quem consegue tratamento preferencial
(subsídios, patrocínios, reservas de mercado etc.) de políticos e legisladores,
tudo com o dinheiro do povo.
Se as pessoas que estão no mercado (a seção livre e
voluntária da sociedade) vivem em um sistema de competição, o que dizer então
do aparato estatal? O que dizer das pessoas que querem acesso a ele? A
democracia é também um sistema de competição. E darwinista. Os políticos estão
sempre competindo pelo acesso ao aparato de controle da sociedade. Estão competindo
pelo "direito" de aprovar e impingir leis, legislações e políticas que serão
aplicadas a todos e que afetarão a todos (queiramos nós ou não). Mais: tudo
isso será compulsoriamente pago por nós.
Políticos e todas as pessoas que querem fazer parte
do aparato estatal não estão simplesmente competindo por uma fatia de mercado,
na qual o vencedor da competição é aquele que melhor satisfaz as demandas dos
consumidores. Eles estão afetando diretamente a todos nós, a sem a nossa
anuência.
O
capitalismo é sobre trocas voluntárias
É óbvio que a competição, por si só, não é um mal.
Longe disso. O problema é que definir o capitalismo como um sistema "baseado na
competição" -- em comparação a outros arranjos que supostamente são baseados na
cooperação -- é um truque retórico.
Aqueles que acreditam que o capitalismo é baseado na
concorrência podem honestamente acreditar nisso, mas não é verdade. O
capitalismo é um sistema tão concorrencial e competitivo quanto qualquer outro
sistema. Concorrência e competição existem em todos os arranjos. Não é uma
exclusividade do capitalismo.
Consequentemente, o correto seria dizer que o
capitalismo (ao menos no ideal laissez-faire)
é um sistema baseado em transações livres e voluntárias de bens e serviços,
transações estas que ocorrem na ausência de coerção física, roubo, compulsão ou
fraude, e é baseado no direito fundamental de ter e acumular propriedade.
Ou, em nome da brevidade: o capitalismo é um sistema de trocas voluntárias, baseado no direito de
ter propriedade.
Sendo assim, é até possível
concluir que o capitalismo é, com efeito, o sistema que mais apresenta as
características de cooperação. Afinal, no capitalismo, a competição significa que
os produtores têm de se esforçar para agradar seus clientes, e eles terão de agir
assim exatamente porque visam ao seu interesse próprio. Em outras
palavras, os vendedores cooperam com os consumidores, atendendo às suas
necessidades e preferências.
Dado que há escassez, sempre haverá competição --
em qualquer sistema
Não é a existência da propriedade
privada ou da livre transação de bens que gera a concorrência. O que gera a concorrência
é a escassez.
Em qualquer situação em
que haja escassez de recursos, haverá alguma forma de competição pela apropriação
destes recursos (bem como para decidir a maneira como esses recursos serão alocados).
Se houver um sistema que
permita trocas voluntárias, alguma competição surgirá naturalmente neste
arranjo. Mas a competição também surgiria em qualquer outro sistema. Mesmo se
existisse uma sociedade completamente comunista, que fosse inteiramente
planejada por um comitê central, e que não praticasse absolutamente nenhuma transação
envolvendo dinheiro, ainda assim haveria competição, e por um motivo incontornável:
o tempo das pessoas sempre será limitado.
Se você fosse, por
exemplo, um cineasta nesta sociedade comunista utópica, você provavelmente iria
querer que o máximo possível de pessoas assistisse ao seu filme. só que todos
os outros cineastas iriam querer o mesmo. Isso colocaria você em concorrência direta
com eles. Podemos então concluir que o comunismo também é um sistema baseado na
competição? É certo que você estaria competindo pelo único cliente: o
patrocínio do estado. Corrupção e compadrio certamente seriam o inevitável
resultado. Quem terá seu filme financiado? Quem não terá? Quem ganhará o altamente cobiçado emprego de cineasta
em vez do nada desejável emprego de varredor de rua ou de recolhedor de lixo? Como
conseguir favores das autoridades? A competição será selvagem. Mas, em vez de
ser decidida pelas transações livres e voluntárias dos espectadores, dos
investidores e dos cineastas, ela será decidida por uma autoridade do comitê central
-- e de maneira bastante autoritária, eu apostaria.
A competição, em suma,
continuaria existindo. Ela apenas seria de outra natureza: em vez de produtores
competindo entre si para conseguir clientes, eles irão competir entre si para
ver quem obtém mais favores da poderosa e corrupta estrutura do estado.
A competição é
simplesmente uma característica inerente ao fato de que vivemos em um mundo de escassez. Ela
existiria em qualquer outro sistema econômico. O socialismo não pode abolir a competição.
Assim como nenhum outro sistema.
O custo de oportunidade significa que a competição está
em todos os lugares
Quando você finalmente constata
essa realidade, você percebe que a escassez faz com que a competição esteja
muito além da economia.
Por exemplo, imagine que
dois amigos distintos me convidem para um jantar em suas respectivas casas na
mesma noite. Eu, obviamente, terei de optar por apenas um, o que fará com que
o outro fique sem minha companhia. Isso por acaso significa que a amizade é um sistema
baseado na competição?
Não podemos nos encontrar
com todos os nossos amigos o tempo todo, ou mesmo com todos eles ao mesmo tempo.
E, mesmo se conseguíssemos, teríamos de dividir nossa atenção entre eles.
Adicionalmente, não somos íntimos de todos eles, de modo que apenas alguns serão
realmente amigos. Não dá para ser amigo íntimo de todos. Tudo isso significa
que inevitavelmente teremos de fazer escolhas. E, com elas, renúncias. No
final, não importa quais critérios você utilizará para escolher quais amizades
priorizar: você estará optando e decidindo; escolhendo alguns e isolando
outros. Em alguns casos, você pode acabar isolando pessoas que adorariam ter a
sua companhia. Mais: ao optar por priorizar amizades, você terá de sacrificar
outras atividades que gostaria de fazer, apenas para ficar na companhia deles.
Estes são fatos básicos da
vida, pelos quais todos nós já passamos. Mas eles não fazem com que a amizade
seja vista como um sistema de competição.
Similarmente, no mercado,
nossos recursos e tempo são limitados. Estamos, a todo o momento, fazendo juízos
de valor, escolhendo quais produtos e serviços iremos consumir tendo por base a
utilidade que imaginamos que eles nos trarão. Ao fazermos isso, sacrificamos
algumas opções em prol de outras. Talvez iremos escolher uma cafeteria que
tenha o café mais saboroso. Ou então aquela que tem o melhor ambiente. Ou
talvez aquela que é mais próxima. Ou aquela outra cujo serviço é o melhor. Ou então
aquela que é a mais barata. Ou quem sabe aquela a que sempre fomos e com a qual
estamos mais familiarizados. Ou talvez aquela que implantou atitudes mais "socialmente
conscientes" -- a que sempre privilegiou a contratação de deficientes físicos,
por exemplo. O fato é que nós decidimos.
Cada provedor de serviços
acredita que irá se beneficiar de nossa clientela e fará diversas tentativas de
nos atrair, seja melhorando a qualidade dos serviços, seja reduzindo (os
mantendo baixos) os preços, o que corretamente podemos identificar como uma
forma de competição. Dado que seres humanos não são infalíveis, em algumas ocasiões
alguém irá comprar um café do qual não irão gostar; mas, no longo prazo, a competição
tenderá a ser vencida por aqueles que agradarem de maneira melhor e mais
consistente seus clientes.
Os benefícios da liberdade de escolha
O fenômeno realmente
miraculoso que ignoramos ao concentrarmos nossa atenção na concorrência é a própria
capacidade que temos de fazermos escolhas.
Por exemplo, suponha que
dois eventos comerciais estejam ocorrendo na mesma tarde. Cada cliente
potencial irá escolher aquele evento que mais lhe seja atraente, utilizando
para isso uma variedade de critérios subjetivos. Entretanto, simplesmente dizer
que esses dois eventos são "concorrentes" seria ignorar completamente o ponto
essencial: os frequentadores destes eventos (que são muito mais numerosos que
os organizadores destes eventos) podem escolher entre dois eventos. Muito
melhor ter a opção de dois (e inclusive optar por nenhum) do que ter apenas a opção
de um. Com efeito, pode até ser possível ir aos dois na mesma tarde,
sacrificando o tempo que ficam em cada um.
Sendo assim, a realidade
é que há muito mais cooperação envolvida no ato fornecer bens e serviços
às pessoas do que há competição. Para conseguir fazer qualquer coisa no
mercado, você tem de cooperar com compradores, vendedores, administradores,
gerentes, empregados, fornecedores, clientes, anunciantes, promotores de
eventos, comerciantes, negociantes, compradores coletivos etc.
O clássico ensaio Eu, o Lápis ainda
continua sendo o melhor exemplo
ilustrativo disso: quando você se dá conta da quantidade de pessoas, nos
mais distintos lugares do mundo, trabalhando conjuntamente para fabricar um
simples lápis de madeira -- e cada um buscando apenas seus próprios interesses
financeiros --, é inevitável não se maravilhar ao constatar como realmente
funciona todo este arranjo empreendedorial. Essas pessoas, que nem se conhecem,
estão atuando em conjunto, em cooperação, e o resultado é que você consegue
comprar um lápis -- algo que jamais conseguiria fabricar sozinho -- por
centavos.
A competição no mercado é o que permite a
escolha em meio à escassez
Dado que os recursos são escassos
e o tempo sempre é limitado, as pessoas têm de fazer escolhas. Consequentemente,
a competição sempre será uma parte inerente a todo e qualquer sistema econômico.
Enquanto vivermos em um mundo caracterizado pela escassez, haverá competição.
A característica precípua
do capitalismo de livre mercado não é a competição, mas a liberdade de escolha.
Pessoas que criticam a competição no capitalismo estão, na prática, pedindo
para que o estado substitua a competição entre produtores para ver quem obtém mais
consumidores voluntários por uma competição entre produtores para ver quem
obtém mais favores do governo. Em vez de produtores tentando convencer
consumidores a voluntariamente gastar seu dinheiro em uma ampla variedade de
bens e serviços, cada vez mais vastos, teremos produtores tentando convencer políticos
a coercivamente tomar dinheiro da população para lhes repassar na forma de subsídios
e demais protecionismos.
Compare o arranjo
capitalista com arranjos corporativistas e socialistas: em todos há competição,
mas apenas no primeiro há liberdade de escolha para os indivíduos.
Compare o livre mercado com
outros sistemas nos quais a competição é feroz para ver quem consegue obter
mais favores de burocratas em cargo de poder: é nestes que realmente há a "lei
da selva" e a "sobrevivência do mais forte".