Não foram poucos os leitores que nos enviaram
mensagens exigindo que o IMB se
manifestasse a favor da greve
(que os defensores chamam de "paralisação") dos caminhoneiros.
Segundo esses leitores, os caminhoneiros estavam se
manifestando contra o estado e exigindo a sua redução. Logo, dado que eles eram
anti-estado, o IMB deveria se posicionar a favor deles -- como, aliás, fizeram
alguns institutos liberais.
O problema é que já somos muito escaldados nessa
questão. No Brasil, quando uma categoria profissional faz greve (ou
"paralisação", como queiram), ela nunca realmente quer a redução do estado. Ao
contrário, aliás: quer mais privilégios garantidos pelo estado.
Esse é a regra: no setor público, categorias fazem greve por aumento salarial e
manutenção (ou mesmo ampliação) de mordomias. O pagador de impostos banca as
exigências. No setor privado, fazem
greve por reserva de mercado, garantia de preços mínimos e isenções (esta
última, uma demanda justa, desde que a isenção tributária não seja compensada
sobre outros setores, que é o que sempre acontece). O consumidor banca as
exigências.
No caso específico dos caminhoneiros e das
transportadoras, embora de fato utilizassem um linguajar com sotaque
anti-estado, exigindo a redução dos impostos (CIDE, PIS/COFINS e ICMS) sobre o
diesel, as reais demandas eram muito mais estatizantes do que libertárias.
E isso ficou comprovado pelas medidas provisórias
editadas pelo governo para satisfazer as demandas da categoria. Eis aqui
a íntegra do documento que formalizou a ata da reunião dos caminhoneiros com o
governo.
Vamos aos principais pontos.
1)
Redução de R$ 0,46 no preço do diesel
Os caminhoneiros pediam uma redução entre R$ 0,40 e
R$ 0,60. Conseguiram. Mas como será feita essa redução?
De um lado, o governo extinguirá
a CIDE e reduzirá
o PIS/COFINS que incide sobre o diesel, de R$ 0,46 por litro para R$ 0,35 por
litro.
Essa é a única parte boa da notícia. Agora vem a
encrenca.
Essa redução de impostos representará apenas R$ 0,16
de redução no preço do diesel. Como o governo prometeu redução de R$ 0,46,
ainda faltam mais R$ 0,30. De onde virão?
Exato, de subsídios. O governo repassará dinheiro
de impostos para a Petrobras (que, na canetada, reduziu o preço do diesel
em suas refinarias) e para importadoras de combustíveis (responsáveis
por 20% do consumo interno) para compensar essa queda forçada no preço.
Qual será o custo final de tudo? A extinção da CIDE
e a redução do PIS/COFINS gerarão, segundo o próprio governo, uma queda na
arrecadação de R$
4 bilhões. Já os subsídios diretos custarão incríveis R$
9,5 bilhões.
Ou seja: queda de R$ 4 bilhões na arrecadação e
aumento de R$ 9,5 bilhões nos gastos. Isso dá um rombo total de R$ 13,5
bilhões. Que tal?
E como esse rombo será fechado? De concreto, haverá
a reoneração
da folha de pagamento de 28 setores. Ou seja, o governo irá aumentar o
número de setores que voltarão a pagar imposto sobre a folha de pagamento
(transportadoras estão excluídas). Esse projeto está tramitando no Senado.
O governo também afirmou que o restante virá da "reserva
de contingência do Orçamento e de um forte corte nas despesas". Este
último, obviamente, nunca ocorreu na história do país. Gastos nunca são
cortados; no máximo, reduz-se seu ritmo de crescimento.
Eis, então, a primeira conquista: controle de
preços, aumento do déficit orçamentário e aumento da carga tributária sobre
outras empresas.
Nada libertário.
Ah, e de lambuja, o
Procon irá fiscalizar se os postos irão realmente repassar às bombas essa
queda no preço. Isso é uma espécie de reedição branda dos fiscais do Sarney.
Prossigamos.
2)
Edição de Medida Provisória para
extinguir a cobrança de pedágio pelo eixo suspenso de caminhões vazios em
estradas federais, estaduais e municipais
Essa medida já era válida para as rodovias federais
desde 2015. Agora, será também obrigatória para as rodovias estaduais e
municipais, inclusive as concessionadas.
Qual o problema com essa medida? Vários. Citarei os
três principais.
Para começar, essa medida representa a total
abolição do federalismo (se é que ele já existiu no país) e da autonomia de
estados e municípios. O governo federal revogou a autonomia de
estados e municípios sobre uma determinada questão e simplesmente centralizou uma decisão paroquial em
Brasília. Na prática, todas as estradas do país foram federalizadas.
Adicionalmente, tal medida gera uma inevitável
incerteza jurídica. Empresas concessionárias que arremataram trechos rodoviários
estaduais e municipais sob determinadas condições (como poder cobrar por eixo
suspenso) agora, repentinamente, irão operar sob novas regras, definidas pelo
governo federal. Houve uma alteração súbita nas regras, uma quebra de contrato,
algo que não estava acordado no momento da concessão.
Pela lógica, futuras concessões sairão mais caras,
pois as empresas obviamente levarão em conta essa incerteza jurídica.
Por fim, dado que a receita das concessionárias será
reduzida por essa medida, é um tanto óbvio que elas irão tentar compensar essa
queda na arrecadação aumentando os pedágios sobre motos e carros. A ANTT não irá
se opor a esse aumento, o qual será justificado como "reposição inflacionária".
3)
Edição de Medida Provisória garantindo
que a CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) contrate caminhoneiros
autônomos sem licitação para 30% dos
fretes
Não tem como disfarçar: isso é reserva de mercado
explícita, agora sacramentada por Medida Provisória.
Caminhoneiros autônomos terão agora o direito de
transportar 30% dos fretes da Conab, sendo escolhidos sem licitação -- o que, na prática, representa literalmente um
cheque em branco.
Apenas para lembrar: a CONAB é uma estatal que, só
em 2017, gastou R$
107 milhões apenas com frete. De agora em diante, a porteira está aberta.
4)
Edição de Medida Provisória contemplando o texto do Projeto de Lei da Câmara nº
121/2017, que dispõe sobre a política de preços mínimos de frete em território
federal
Essa também não como disfarçar: é uma política de
imposição de preços mínimos, cujo efeito é impedir a entrada de novos e
pequenos concorrentes. O
autor deste projeto de lei é o deputado federal Assis do Couto, do PT do
Paraná.
Na prática, o governo federal está dizendo que
nenhum frete pode custar menos que o valor estipulado por burocratas em conluio
com caminhoneiros e transportadoras. O governo estipular preços mínimos
significa a abolição do mais salutar efeito do livre mercado e da livre
concorrência, que é exatamente a queda (ou a contenção) de preços.
Mas as consequências são ainda piores: se um
caminhoneiro novato estiver tentando entrar no mercado e quiser oferecer preços
menores exatamente para tentar se estabelecer e conseguir um nicho, ele agora
estará proibido disso, por força de lei. E se, por acaso, ele ainda assim
quiser cobrar um preço baixo, poderá ser preso.
De novo: tal medida representa a abolição da livre
concorrência, erigindo uma barreira à entrada de novos concorrentes no mercado
de transportes. Representa também uma reserva de mercado para os caminhoneiros
e transportadoras já estabelecidos.
Desnecessário ressaltar que, havendo agora um piso
para o frete, a tendência é que haja uma alta nos preços, principalmente dos
alimentos. (Redução no preço do diesel é uma redução de custo, a qual não
necessariamente leva a uma redução de preços; redução de preços só ocorre
quando há livre concorrência).
Como
apoiar isso?
Portanto, eis o resumo da ópera: mais reserva de
mercado, imposição de preços mínimos para frete, restrição à entrada de novos concorrentes, mais centralização sob o
governo federal, controle de preços do diesel, aumento de subsídios, repasses de dinheiro de impostos para a Petrobras e para importadoras de combustível, aumento do déficit orçamentário (o que implicará aumento da
dívida pública) e aumento de impostos sobre outros setores.
É absolutamente impossível apoiar isso.
E, no final, essa era a real pauta dos caminhoneiros
e das transportadoras: conseguir benefícios (à custa de quem quer que fosse). O
fato de eles terem utilizado um linguajar anti-estado (e, convenhamos, xingar
políticos de ladrões já deixou há muito de ser uma postura anti-estado; virou
convencional) não oculta o fato de que, na prática, suas exigências eram por
mais estado (desde que o estado agora fosse a seu favor) e por menos livre
concorrência.
Qual seria uma pauta realmente libertária? Desestatização da
Petrobras, liberação efetiva do mercado interno para o refino de petróleo (hoje, a
Petrobras comanda 98%
do refino no Brasil e não há nenhuma segurança jurídica para a entrada de concorrentes; entenda os detalhes aqui), redução dos gastos do governo, como a abolição de ministérios,
agências e secretarias (o que, aí sim, permitiria redução de impostos),
abolição das alíquotas de importação de petróleo, e fim das regulamentações sobre a
abertura de postos de combustíveis, que são a maior reserva de mercado do
país.
E o que fazer para resolver os problemas urgentes
gerados pela paralisação? O governo e a ANTT deveriam liberar transportadoras
estrangeiras (argentinas, uruguaias, paraguaias, peruanas, colombianas,
bolivianas etc). para fazerem fretes aqui dentro, de uma cidade a outra. Embora
isso não vá resolver em definitivo o problema, ao menos amenizaria bastante o
desabastecimento ao redor do país. Mas isso nunca será feito, pois sempre
haverá alguém para invocar a questão da "soberania nacional".
Conclusão
Embora tenham utilizado um linguajar anti-estado (mas
que se resumia apenas a slogans surrados, como "parar
a roubalheira"), as demandas de caminhoneiros e transportadoras,
infelizmente, levaram a um aumento do poder do estado.
Em última instância, como bem disse um leitor, as exigências
de caminhoneiros e transportadoras não eram anti-estado; eles apenas queriam que
o governo reduzisse os preços do diesel e do pedágio simplesmente porque o alto
custo estava afetando seus lucros. Normal. Não há nada de inerentemente
libertário nessa postura.
E queriam também, como ficou comprovado, mais
reserva de mercado e preço mínimo tabelado. Isso, lamento, é ser pró-estado, e não
anti.
E, no final, quem irá bancar todas essas demandas,
tanto na forma de impostos e de preços mais altos? Apenas olhe para o espelho.
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Leia
também sobre a greve de 2015:
... E os caminhoneiros
pensaram que aquilo seria bom para eles