Cheguei à conclusão de que o mundo estaria em melhor
situação caso jamais tivesse sido inventada uma sub-disciplina, dentro da
economia, chamada de "economia
internacional" (ou, alternativamente, "comércio exterior" ou "finanças
internacionais").
A profissão de economista provavelmente também estaria
em melhor situação sem tal sub-disciplina.
Países
não comercializam
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- comercializam. Países não comercializam.
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- possuem vantagens comparativas e
desvantagens comparativas[1].
Países não possuem vantagens ou desvantagens.
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- se especializam em determinadas
formas de produção. Países não o
fazem.
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- criam ou se aproveitam de economias de escala
em seus processos produtivos. Países
não o fazem.
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- gastam, poupam e investem. Países não fazem isso.
Somente indivíduos -- separadamente ou em grupos
voluntariamente formados, como empresas -- vivenciam ganhos ou perdas de renda,
riqueza e bem-estar. Países
não vivenciam nada.
Obviamente, podemos tomar a liberdade semântica de,
em nome da simplicidade, falar coisas como "Os EUA comercializam com a China", "A
Alemanha possui uma vantagem comparativa no ramo das cervejas", "A renda
nacional da Índia está aumentando", e "O déficit comercial do Peru está
diminuindo". Mas todas essas expressões apenas descrevem os resultados
agregados e não-premeditados de inúmeras ações e escolhas voluntariamente
feitas por cada indivíduo específico, um ser humano de carne e osso.
Adicionalmente, é claro que os governos também efetuam várias dessas atividades -- por exemplo,
gastar. Mas nenhum governo é um país. Cada governo é simplesmente uma organização
formada por indivíduos de carne e osso e gerida por esses indivíduos específicos,
que agem de acordo com determinadas regras formais e informais.
O motivo desta minha constatação -- de que é lastimável
que exista uma sub-disciplina chamada "economia internacional" -- é que
discutir "comércio exterior" e "finanças internacionais" em separado dá a impressão
de que haveria algo de exclusivo e singular nas transações internacionais de
bens e serviços, e nos investimentos estrangeiros e em instrumentos
financeiros, que exigiriam que tais transações sejam estudadas separadamente das
transações não-internacionais.
Mas o fato é que não há nada de essencialmente
singular e exclusivo nas transações internacionais. Absolutamente nada.
Discutindo minúcias
Existem, obviamente, diferenças não-essenciais que separam as transações domésticas das transações internacionais.
Exemplos dessas diferenças não-essenciais incluem a
necessidade de se fazer conversões de moedas; o fato de que jurisdições
diferentes adotam políticas monetárias distintas; o fato de que as pessoas de
uma determinada jurisdição política atuam sob diferentes leis e legislações --
inclusive políticas tributárias -- em relação às pessoas de outras jurisdições políticas;
a realidade de que o salário médio e a riqueza em algumas jurisdições políticas
frequentemente diferem daqueles em outras jurisdições políticas; e o fato de
que as transações internacionais geralmente (embora nem sempre) percorrerem
distâncias geográficas maiores do que as distâncias percorridas por transações domésticas.
No entanto, quaisquer eventuais ganhos analíticos
que possam existir em decorrência de se tratar, de um lado, transações que são separadas
por essas diferenças não-essenciais e, de outro, transações que não são separadas
por essas diferenças, tais ganhos são ínfimos.
A própria noção de "comércio internacional" nos faz
perder a realidade essencial do comércio, a saber: o comércio, de qualquer
natureza, sempre e em todo lugar, envolve indivíduos de carne e osso negociando
e transacionando entre si, de uma forma que cada um dos indivíduos envolvidos
julga ser de seu melhor interesse.
Não ver as coisas dessa maneira é o resultado
trágico de querer enxergar o comércio como algo feito entre países, e não entre
indivíduos. Essa perspectiva coletivista -- e não individualista -- nos leva a
querer julgar os méritos do comércio de acordo com como ele irá ou não irá
aumentar o bem-estar líquido agregado (seja lá como tal coisa seja mensurada ou
concebida) do conjunto de seres humanos que formam a população de cada país
específico.
Porém, essa avaliação coletiva e agregada do
comércio, feita "em nível nacional", é ilegítima. Ou, no mínimo, tal avaliação seria
tão legítima quanto uma avaliação que levasse em conta o comércio entre estados
de um país, entre cidades, e até mesmo entre bairros.
As pessoas da minha vizinhança comercializam
livremente com as pessoas de fora da minha vizinhança. Em algumas ocasiões,
essa liberdade de comércio traz desvantagens para meus vizinhos imediatos: por
exemplo, para trocar o óleo do meu carro, eu não vou ao posto mais próximo, que
está na minha vizinhança; eu vou à concessionária onde comprei meu carro, que
está a vários quilômetros de distância da minha casa.
Caso existisse uma sub-disciplina econômica dedicada
ao estudo do "comércio interbairros", haveria todos os tipos de nefastos
estudos teóricos e empíricos sobre os malefícios desse comércio, mostrando como
ele está diminuindo o bem-estar do bairro A em prol do bairro B. Tais estudos e
análises, consequentemente, levariam a intervenções governamentais visando a
reequilibrar a balança comercial entre os bairros, com o governo concedendo subsídios
ao bairro A e impondo tarifas de importação aos habitantes do bairro B.
Felizmente, tal sub-disciplina (ainda) não existe. Consequentemente,
nosso bem-estar é maior do que se ela existisse, pois não há restrições governamentais
ao comércio entre bairros.
Mas e se houvesse? Primeiramente, as restrições
seriam motivadas por ignorância econômica: algum gaiato diria que meus vizinhos
e eu não podemos comercializar livremente com pessoas de outros bairros caso o
resultado fossem um déficit comercial para o nosso bairro. Segundo, e ainda
mais importante: as restrições seriam defendidas por bairros politicamente
influentes, que lucrariam com a "proteção" que receberiam na forma de restrições
governamentais ao comércio entre bairros.
Agora pense: não há restrições ao comércio entre
bairros, entre cidades e entre estados. Não há nenhuma preocupação com balança comercial
entre o seu estado e o estado vizinho. Aliás, você, alguma vez na vida, já leu
alguma estatística sobre isso? Felizmente não.
Qual então é o sentido econômico de haver restrições comerciais entre países? Qual exatamente
é a diferença econômica entre você comprar algo de uma pessoa que está do outro
lado da rua ou do outro lado do planeta?
Comércio é comércio. Não interessam as fronteiras geográficas
e políticas envolvidas. Economistas sérios deveriam estudar os efeitos do
comércio em si. Ponto. Dar atenção ao comércio internacional ao mesmo tempo em
que se ignora o comércio interestadual, o intermunicipal, o interbairros, o
interfamílias e, acima de tudo, o interindividual é total incoerência.
O fato é que o comércio interbairros é tão
importante quanto o comércio internacional. Se um não é estudado e não é
manipulado, não faz sentido que o outro seja.
Conclusão
Não existisse uma disciplina separada chamada "comércio
internacional", a população seria poupada de todas as miragens enganosas que são
criadas quando o comércio é discutido como se seus conteúdos e características
fossem fundamentalmente diferentes de acordo com as fronteiras políticas envolvidas.
Mais ainda: os poderosos grupos de interesse que
auferem grandes lucros com o protecionismo teriam de realmente produzir bens e serviços
de qualidade para agradar a população, em vez de apenas se esbaldarem
confortavelmente em suas reservas de mercado garantidas pelo governo -- e
fundamentadas nas estatísticas da "economia internacional".
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Leituras
complementares e indispensáveis:
Por que economistas são
histéricos em relação à balança comercial?
Descubra se você é um
protecionista mercantilista
A abertura comercial é imprescindível para o crescimento econômico - e isso não é folclore
Não há argumentos
econômicos contra o livre comércio - o protecionismo é a defesa de privilégios
Nove perguntas frequentes
sobre importação, livre comércio e tarifas protecionistas
Defender o protecionismo é
defender a escassez - defender o livre comércio é defender a abundância
Protecionismo é violência -
cria uma reserva de mercado para os poderosos e empobrece os mais pobres
O livre comércio nos
enriquece e o protecionismo nos empobrece - como reconhece Paul Krugman
[1] Segundo
a lei das vantagens
comparativas de David Ricardo, se cada um se concentrar em produzir aquilo
que realmente faz bem, e comercializar livremente esses produtos, a riqueza
real de todos será maior.