Por mais paradoxal e contraintuitivo que pareça,
está havendo uma escassez de dinheiro na Venezuela. Em um país cuja inflação anual verdadeira
está estimada em 800%
e o dinheiro está sendo literalmente utilizado como guardanapo,
várias instituições financeiras estão se vendo obrigadas a
limitar os saques de dinheiro, pois a quantidade de cédulas está acabando. Na prática, está ocorrendo um corralito
venezuelano.
Como é possível que, justamente em um país cuja quantidade
de dinheiro tenha aumentando
exponencialmente e o dinheiro tenha chegado a valer menos que o papel em
que está impresso, esteja havendo escassez de dinheiro? Não seria uma aparente contradição que a
oferta desmesurada de dinheiro coexista com uma demanda não suprida?
Desgraçadamente, não.
As hiperinflações não se caracterizam somente por
uma explosão na quantidade dinheiro, mas também, e acima de tudo, pela expectativa de que o valor do dinheiro irá
se desmoronar aceleradamente. As causas
desse desmoronamento são várias, mas o essencial é que a demanda pelo dinheiro
como ativo financeiro desaparece. As pessoas,
as empresas, os investidores e os especuladores param de poupar em dinheiro e
passam a fazê-lo por meio de outros ativos financeiros que não têm um valor
nominal constante (como ações) ou em ativos reais (como imóveis).
O ato de guardar dinheiro, portanto, deixa de ser
efetuado em dinheiro e passa a ser feito por meio de outros bens ou ativos (no
extremo, muitos produtores optam por consumir sua própria produção em vez de levá-la
ao mercado para trocá-la por um dinheiro cujo valor afunda diariamente). Consequentemente, o ato de se desfazer do
dinheiro em troca de bens tangíveis se aumenta aceleradamente. A demanda pelo dinheiro despenca.
No entanto, dizer que a demanda pelo dinheiro como
ativo financeiro despenca não equivale a dizer que ninguém irá necessitar de
dinheiro para nada. As compras e vendas
realizadas dentro da economia continuarão sendo intermediadas pelo dinheiro: é
o que se chama de demanda por dinheiro
com objetivo de transação. Ou seja,
quando necessito comprar algo, vendo alguns bens reais ou ativos financeiros
que possuo e rapidamente compro aqueles de que necessito.
No caso da Venezuela atual, um de seus vários
problemas monetários é que essa demanda por dinheiro para transações nem sequer
pode ser satisfeita, não obstante a gigantesca
oferta de dinheiro na economia. A razão
disso é que, como dito acima, os vendedores de mercadorias não desejam se
desfazer das mesmas em troca de quantidades de dinheiro que não planejam gastar
de imediato. Isso significa que se um
comerciante possui mercadorias no valor de 10.000 dólares e, durante o próximo mês,
planeja gastar apenas 500 dólares, ele não irá vender seu excesso de
mercadorias de 9.500 dólares em troca de bolívares que se depreciam a um ritmo
acelerado. O comerciante só irá demandar
bolívares para satisfazer suas transações de curto prazo, mas não para
poupá-los.
A única maneira de induzi-lo a vender a maior parte
de suas mercadorias é lhe pagando um preço suficientemente alto como que para
compensá-lo pela depreciação futura que se espera que irá ocorrer com o
dinheiro. Em termos mais técnicos: os preços
de suas mercadorias à venda aumentarão até o ponto em que incorporem um bônus sobre
a inflação futura esperada -- a qual, por se estar em meio a uma hiperinflação,
será altíssima.
Consequentemente, em uma hiperinflação, os preços se
multiplicam não em função do dinheiro que foi impresso, mas sim em função do
valor que se espera que o dinheiro terá no futuro. Por isso, os preços podem aumentar a uma taxa
muito mais acelerada do que a taxa de aumento da quantidade de dinheiro, por
mais volumosa que seja esta última.
Imagine que um governo multiplica por 100 a oferta
de dinheiro e que, como reação, os comerciantes multiplicam os preços por
10.000. Nessas condições, poderá ocorrer
a circunstância de que os cidadãos não terão dinheiro suficiente para fazer as
mesmas compras que vinham fazendo antes do aumento de preços; ou seja, poderá
haver carência de dinheiro para adquirir os mesmos bens que era possível comprar
antes da inflação.
É isso o que está ocorrendo na Venezuela: a multiplicação
da oferta de dinheiro deu lugar ao colapso de sua demanda como ativo financeiro
e, portanto, a uma multiplicação dos preços muito superior ao aumento da oferta
monetária. Consequência? O dinheiro tornou-se escasso para efetuar vários
pagamentos que, antes da multiplicação da oferta monetária, podiam ser
efetuados com normalidade.
A escassez de dinheiro na Venezuela não é uma prova
de que o governo imprimiu pouco dinheiro, mas sim de que imprimiu em demasia. Mais ainda: espera-se que vá imprimir muito
mais.
Países
"normais" também correm esse risco
A perda acelerada do poder de compra de uma moeda não
é exclusividade de países cujos governos imprimiram muito dinheiro. Ela pode acontecer com praticamente todo e
qualquer país: basta que seu governo perca a credibilidade e descuide do
orçamento. O que irá variar é apenas a
intensidade com que a moeda se desvaloriza.
Ao contrário do que ocorria quando a moeda era uma
commodity (como o ouro) não controlada pelos governos, as moedas hoje são
puramente fiduciárias. Uma moeda
fiduciária não é uma moeda de mercado, mas sim uma moeda governamental. Se, por exemplo, o governo vigente é
derrubado por uma revolução e espera-se que o governo seguinte não reconheça a
moeda fiduciária atual como um instrumento para pagar tributos, então é
evidente que estaremos diante de meros pedaços de papel de utilidade nula. Ou seja, meros pedaços de papel que ninguém irá
querer manter em seu patrimônio.
Caso a Grécia, por exemplo, tivesse saído da zona do
euro e adotado uma nova moeda, seguramente o país sofreria uma hiperinflação
-- como ocorreu com vários países latino-americanos em decorrência de sua crise
da dívida na década de 1980.
Diferentemente do ouro, cujo valor independe dos ditames
do governo vigente, o valor da moeda fiduciária depende majoritariamente da sobrevivência
do regime político que a emite de maneira monopolística.
Os países ocidentais estão muito longe de uma hiperinflação
clássica, mas há um risco iminente: países cujos governos não mantêm um orçamento
equilibrado -- e, consequentemente, vivenciam um aumento descontrolado da dívida
pública -- estão colocando em risco a credibilidade e a solidez da
economia. À medida que os agentes econômicos,
principalmente os investidores estrangeiros, esperam que o governo irá recorrer
à inflação para seguir financiando seus déficits orçamentários, a confiança
na moeda pode se esvair.
Quando os déficits orçamentários do governo se
tornam grandes e permanentes, ao ponto de que é impossível cortar gastos sem
gerar convulsões sociais e tampouco é possível financiá-lo se recorrer a uma inflação
de grande calibre, a demanda global pela moeda nacional cai, a taxa de
câmbio dispara, todos os
produtos importados ou que utilizam componentes importados se tornam inacessíveis para o cidadão comum,
os preços de todos os produtos aumentam em ritmo crescente, e toda a dinâmica de uma
hiperinflação ao estilo venezuelano (variando apenas a intensidade) é
desencadeada.
Nem é necessário haver um grande aumento da oferta monetária;
basta que o governo perca credibilidade ou que não controle seu orçamento. Isso
pode fazer com que a demanda pela moeda desabe.
[N. do E.: Nesse cenário, caso um rigoroso ajuste
fiscal por meio do corte de gastos não seja feito, a única maneira de manter a demanda pela moeda nacional
é elevando a taxa de juros a níveis estratosféricos, de modo a manter o
interesse de investidores e especuladores em aplicações financeiras.
No Brasil, isso foi feito logo no início de 2003,
quando, após a eleição de Lula, o câmbio disparou. A SELIC foi elevada para 26,50% para conter
uma inflação de preços que chegou a 17%. (Veja todos os detalhes aqui). Isso garantiu uma taxa de juros real de 8,12%.
Atualmente, com a inflação
de preços acima de 10% e com a SELIC em 14,25%, a taxa de juros real está
em "apenas" 3,85%.]