Se
usamos uma só palavra para nomear duas coisas diferentes que às vezes aparecem
juntas, essas duas coisas acabam se tornando uma só no imaginário popular. É o
caso do termo "público".
Público
opõe-se a privado. Só que há dois tipos de "privado": aquilo que é do uso
exclusivo de poucos, e aquilo que é propriedade privada.
E
há dois tipos de "público": aquilo que muitos usam livremente, e aquilo que
pertence ao estado. Sob um mesmo termo, "do estado" e "para todos" viram
sinônimos. Mas o estado não é, nem nunca será, para todos.
Essa
confusão serve muito bem aos interesses do próprio estado, que se aproveita da
aura positiva que o termo "público" confere. Ele, de alguma maneira, é de
todos, por todos, para todos. Representa
a vontade geral, tem um pouquinho de cada cidadão, é uma força ordenadora que
paira sobre a sociedade -- diferente do setor privado, onde impera a ganância,
o lucro (esse pecado capital) e o interesse... privado.
Muita
gente nem percebe que "estado" e "sociedade" não são a mesma coisa.
Ao
dizermos que o estado é público repetimos mantras espirituais de um passado em
que se acreditava que o estado tinha algo de divino, numa verdadeira mística do
poder. Tirou-se o Deus transcendente da jogada e colocou-se o deus-povo em seu
lugar, como se houvesse um povo além e acima dos indivíduos que o compõem.
Hoje
em dia, nosso estado é laico, mas apenas com relação às religiões que competem
com a sua. Quanto a si mesmo, não há ficção espiritual, mentira piedosa ou
hagiografia de que ele não faça uso para perpetuar seu poder onde ele mais
importa: nas mentes dos fieis/súditos/cidadãos/contribuintes. Uma dessas santas
artimanhas é justamente a ilusão de que se trata de um "setor público",
representante e servidor do povo.
Algumas
das posses do estado são, de fato, públicas. Ele tem o monopólio quase
absoluto, por exemplo, do tipo mais básico de espaço público: a rua. Mesmo as
ruas, contudo, nem sempre são públicas: em São Paulo, muitas vilas têm portões que impedem a
entrada de não moradores. Estradas estatais cobram pedágio. Por outro lado,
praças, parques, museus e bibliotecas, que também são espaços públicos, nem
sempre são do estado. E ainda outros espaços públicos como bares, restaurantes
e shoppings são quase sempre propriedades privadas.
Muito
do que o estado tem ou faz, ademais, é exclusivo, é para poucos. Poucos podem
usar a frota de carros oficiais ou cursar o Instituto Rio Branco ou mesmo
receber um diploma da USP. São do estado, mas impõem severas restrições ao
acesso.
Pensemos
no ensino estatal; ele é "gratuito". Mas há escolas privadas que também oferecem
vagas gratuitas; e outras, filantrópicas, que atendem apenas gratuitamente; e
nem por isso as chamamos de "públicas". Ao mesmo tempo, instituições de ensino
estatal podem cobrar, como fazem as universidades estatais nos EUA e na
Inglaterra. Ser chamado de "público" não tem nada a ver com a real abertura,
gratuidade ou universalidade; é apenas um termo que se aplica ao que vem do estado.
E um termo nada neutro.
O
estado, por ser o "setor público", goza de uma prerrogativa de benevolência ou
generosidade. No entanto, a ideia de que os bens e serviços do estado "servem a
todos", ao interesse comum ou ao bem público -- em oposição a empresas que
buscam o bem privado -- é uma fórmula retórica vazia. Por acaso empresas que
produzem e distribuem comida não servem ao interesse público? E as que produzem
e vendem serviços de cultura e entretenimento? Tudo que tem uma demanda é um
interesse público.
Empresas
como Google e Facebook servem -- gratuitamente -- a muito mais pessoas do que o
estado brasileiro. Qual o sentido de
dizer que os interesses deste são "públicos" e os delas "privados"?
Outra
faceta do mito estatal diz que o estado é público porque é seu, meu e de todos
nós; ou ao menos que ele representa o coletivo. Isso também não é verdade. O estado
é uma organização entre outras, e ele não é mais "nosso" do que qualquer
empresa. O mecanismo do voto, nosso meio de agir sobre ele, é mais tênue e
ineficaz do que o poder do consumidor sobre qualquer empresa ao comprar e
deixar de comprar (poder do qual o estado se blinda por meio dos impostos e da
emissão de dinheiro).
Ademais,
o poder dos políticos eleitos é limitado, pois eles constituem uma fina camada
do estado. O grosso dele é composto de funcionários cuja atividade independe do
voto popular e sem o apoio dos quais nenhum político pode governar. Já no
famigerado setor privado, ao menos no caso das empresas negociadas em bolsa
(que também são chamadas, à sua maneira, de públicas), aí sim você pode se
tornar dono de uma parte delas; e pode inclusive vendê-la depois.
Por
acaso temos direito de vender a parcela do estado que supostamente nos
pertence? Não, e por quê? Dica: ele não é nosso.
O
estado não é mais público do que tantas outras instituições que são propriedade
privada. Quem de fato o controla são poucos e não tem como ser diferente.
Muitos de seus serviços e benefícios são direcionados a poucos (pensemos agora
no BNDES ou nas aposentadorias dos servidores públicos, esses heróis da
pátria). Ele também não está mais voltado ao serviço do público do que outras
organizações. Seus agentes, por fim, não são mais virtuosos ou altruístas do
qualquer outra pessoa; respondem aos mesmos exatos incentivos que todos os
pobres mortais.
Assim,
ao falar das coisas do estado, evite o adjetivo "público"; ele engana. Utilize
"estatal" em seu lugar. Funcionário estatal, escola estatal, rua estatal,
interesse estatal, setor estatal. Reserve o "público" para praças e bares, que
podem ser estatais ou não. A perpetuação da mística do poder do estado só nos
afasta da realidade crua: o estado não é você, o que é dele não é seu, não há
uma vontade coletiva por trás dele e ele não conhece e nem serve a seus
interesses melhor do que qualquer outra organização.
Na
verdade, o estado -- esse ente de razão -- nem existe; são só pessoas como você
e eu, que não sabem mais e não são melhores do que você e eu, mas cuja vontade
recebe -- de nossa parte -- a permissão tácita para se impor à força. No dia em
que essa verdade realmente penetrar nossa consciência, ele estará em maus
lençóis.