Antes
de qualquer coisa, devo esclarecer que imagino o anarcocapitalismo como
resultado evolucionário da civilização humana, como uma ordem espontânea, e não
como um modelo imposto de cima para baixo, nem instalado via revolução ou a
partir de quaisquer arranjos técnicos ou filosóficos preconcebidos.
Acredito
que esse modelo, se um dia vingar, só poderá florescer a partir de sociedades
moral, econômica e civicamente muito avançadas.
Não
tenho qualquer pretensão de ver o anarcocapitalismo em funcionamento onde quer
que seja. Se um dia vier a ocorrer, será apenas muitas gerações à frente.
Portanto, minha opção "ancap" é muito
mais uma questão moral do que pragmática. Simplesmente, não consigo admitir que
o ser humano será, para todo sempre, refém do "mais frio e cruel dos monstros".
Qualquer
pessoa normal concordaria que um indivíduo que atenta contra a vida, a
liberdade ou a propriedade de outro comete um mal, um ato injusto. Por
outro lado, a maioria de nós também aceita a existência de certas
circunstâncias atenuantes que poderiam mitigar uma ação injusta. Mesmo
nesse último caso, porém, a violência seria ainda lamentável e, portanto, algo
a ser evitado. Em outras palavras, embora uma ação criminosa jamais se
torne realmente boa, ela pode tornar-se defensável e até desculpável.
Em
quaisquer casos, entretanto, o que justifica uma ação é o motivo, a
circunstância, e não a entidade, a organização ou a quantidade de pessoas que a
praticam.
Se
eu afirmasse que um atentado à vida, à liberdade ou à propriedade torna-se
menos nocivo na proporção em que aumenta o número de agentes que o cometem,
você pensaria que sou estúpido, louco ou moralmente deficiente. Todavia,
muitas pessoas entendem que a violência contra direitos individuais
elementares, não importa quão absurda e vil, pode tornar-se boa e justa, desde
que executada por agentes governamentais empossados através de eleições
democráticas.
Como bem resumiu Maggie McNeill, chega a ser
patética a ginástica mental de certas pessoas (muitos liberais aí incluídos) na
tentativa de justificar o injustificável. Elas entendem que a democracia,
como num passe de mágica, absolve quase todos os crimes e injustiças cometidos
coletivamente, do mesmo modo que nossos antepassados atribuíam um certo direito
divino a seus monarcas e imperadores. Alguns chegam a fazer
pronunciamentos apologéticos sobre o poder da lei votada democraticamente, como
se esta houvesse sido ditada por uma divindade celestial e esculpida em pedra.
Ora,
um governo é apenas um grupo de indivíduos, selecionados por meios arbitrários,
de acordo com regras arbitrárias acordadas por grupos poderosos o suficiente
para impor sua própria opinião sobre o resto da população. Pior: nenhum
governo pode impor suas leis e decretos senão através da ameaça e da violência,
o que o torna inexoravelmente um ente tirânico, cuja intensidade do mal perpetrado
dependerá da índole daqueles que o controlam. A tirania é, portanto,
inerente a qualquer governo, variando apenas em gênero e grau.
Isso
não significa que a humanidade possa ficar inteiramente sem governo, pelo menos
nesta fase de nossa evolução. Eu seria ingênuo se acreditasse que uma
sociedade completamente anárquica poderia sobreviver atualmente sem degenerar
no caos, na lei do mais forte. Por outro lado, não há nada que justifique
a crença de que esta realidade será permanente. Pensemos, por exemplo, nas
práticas médicas do passado. Quantas intervenções absolutamente insanas
para os padrões atuais -- como lobotomia, sangrias, choques elétricos, ingestão
de urina, entre outras -- não foram um dia consideradas
males necessários e praticadas sob efusivos aplausos e reconhecimentos?
Como nos lembra Bryan Caplan, há mil anos, se
alguém sugerisse que o sistema democrático seria hoje o arranjo comum na
maioria das nações, certamente seria tachado de louco. Segundo ele, a
"loucura", nesse caso, tem a ver com expectativas. Durante a Idade Média,
todos estavam acostumados ao despotismo. Ninguém esperava que um
governante derrotado entregasse voluntariamente o poder. Com efeito, a
recusa de entregar o poder não parecia loucura aos olhos de ninguém.
Nas
sociedades modernas, em contraste, todos estão acostumados à democracia.
Todos esperam de um derrotado que entregue voluntariamente o poder. A
recusa, neste caso, é que parecerá loucura, a qual resultaria provavelmente não
no fim da democracia, mas da carreira desse governante.
Imagine
agora alguém que, há dois milênios, se insurgisse contra a escravidão ou
previsse que, dois mil anos depois, a escravidão não apenas estaria extinta da
face da Terra, como seria considerada crime hediondo em todos os lugares.
Nem Jesus Cristo ousou tanto, pois certamente seria visto como louco. O
que dizer então de alguém que, há apenas duzentos anos, falasse de coisas como
viagens espaciais, aviões, automóveis, televisão, computador, internet e
edifícios com duzentos metros de altura? Não seriam tais coisas, naquela
época, mais inverossímeis (utópicas?) do que imaginarmos, nos dias de hoje, uma
eventual futura sociedade sem Estado, vivendo de forma ordeira e
próspera? Não seria muita arrogância de nossa parte pretender saber como
se organizarão as civilizações futuras?
Não
importa. Como disse acima, minha opção pelo anarcocapitalismo é muito
mais uma opção moral do que pragmática. Mas deixo que o grande Bob Higgs a explique:
Muitas
discussões sobre o anarquismo poderiam ser evitadas se esses dois aspectos
distintos da ideologia estivessem sempre em mente — sua possibilidade prática e
seu ideal moral.
Sinto-me
sem qualquer obrigação de argumentar de forma convincente de que forma esta
ordem social pode ser estabelecida na prática. Não sei se é possível ou não,
assim como desconheço muitos outros desenvolvimentos que podem ou não vir a
tornar-se realidade no futuro.
No
entanto, vou continuar a defender o anarquismo libertário como um ideal moral
que, acredito, todas as pessoas decentes deveriam defender. Se nós anarcocapitalistas
tivermos sucesso, o resultado será esplêndido, de fato, mas se falharmos, acho
que teremos feito a coisa certa. Afinal, que mal podemos fazer por abster-nos
de apoiar certos crimes? Qual é o mal em denunciar quem os comete ou quem contribui
para justificar os crimes inerentes ao funcionamento do estado?
Em outra passagem, ele é ainda mais enfático:
Embora
eu não peça desculpas por essa escolha ideológica, tampouco compartilho da
expectativa aparente de alguns companheiros anarquistas libertários, segundo os
quais a revolução é iminente, ou ocorrerá muito em breve (…)
Se
eu entendo o mundo desta forma, algumas pessoas perguntam, qual é o meu
objetivo ao abraçar o anarquismo libertário? Bem, obviamente não estou nisso a
fim de ficar do lado vencedor. Se esse fosse meu objetivo, eu já teria
encontrado uma maneira de tornar-me útil participando de lobbies no Congresso.
Não, eu pus-me onde estou agora um pouco como Martinho Lutero fez quando
anunciou: "Eis-me aqui. Não consigo estar em nenhum outro lugar".
No
meu caso, esta declaração significa que eu estou simplesmente fazendo o que me
parece a coisa decente a fazer; que tomar qualquer outra posição ideológica
iria envolver-me em males dos quais eu não quero participar. Embora eu sinceramente acredite que um mundo
sem estado seria melhor do que o mundo atual de inúmeras maneiras, tais
como melhor saúde, maior riqueza e maior bem-estar material, eu não sou um anarquista
libertário por razões consequencialistas, mas sim, e principalmente,
porque acredito que é errado para qualquer um -- inclusive aqueles designados
governantes e seus funcionários -- fazer o que é considerado errado para
mim ou para qualquer outro indivíduo na esfera privada.