Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB.
A unidade monetária
Na
seção anterior,
vimos como o dinheiro surge naturalmente no mercado. Agora, veremos como ele pode ser produzido e
gerenciado privadamente. A primeira
pergunta a ser feita é: como este dinheiro-mercadoria (no caso, ouro e prata) é
utilizado? Mais especificamente, qual é
o estoque -- ou a oferta -- de dinheiro na sociedade e como ele é transacionado?
Em
primeiro lugar, bens físicos tangíveis são comercializados em termos de sua
massa ou de seu peso. A massa é a
unidade característica de uma mercadoria tangível. Sendo assim, o comércio ocorre em termos de
unidades como toneladas, libras, onças, grãos, gramas etc.[1]
O ouro não é exceção. Como outras mercadorias, o ouro pode ser
transacionado em unidades de massa.[2]
É
óbvio que o tamanho da unidade comum escolhida para o comércio não faz
diferença para o economista. Um país que
esteja no sistema métrico pode preferir calcular em gramas; já a Inglaterra ou
os Estados Unidos podem preferir trabalhar com grãos ou onças. Todas as unidades
de massa são conversíveis entre si: uma libra equivale a dezesseis onças; uma
onça equivale a 437,5 grãos ou 28,35 gramas etc.
Supondo
que o ouro seja escolhido como dinheiro, o tamanho da unidade de ouro utilizada
no cálculo não importa. João pode vender
um casaco por uma onça de ouro nos Estados Unidos ou por 28,35 gramas na
França. Ambos os preços são idênticos.
Embora
tudo isso pareça óbvio demais para ser enfatizado, a realidade é que uma enorme
quantidade de miséria ao redor do mundo teria sido evitada caso as pessoas houvessem
entendido completamente essas simples verdades.
Por exemplo, quase todas as pessoas pensam no dinheiro como se ele fosse
uma unidade abstrata de algo que pode ser trocado por outra coisa, com cada moeda
estando ligada exclusivamente a um determinado país. Mesmo quando os países estavam no
"padrão-ouro", as pessoas continuavam pensando desta forma. A moeda norte-americana era o "dólar", a
francesa era o "franco", a alemã, o "marco" etc. Todas estas moedas estavam explicitamente
vinculadas ao ouro, mas todas elas eram consideradas soberanas e independentes
por seus cidadãos. Exatamente por isso
foi fácil para os países "saírem do padrão-ouro". Mas isso não altera uma verdade: todos estes nomes de moedas eram meras denominações
para unidades de massa de ouro ou prata.
A
"libra esterlina" inglesa era a denominação originalmente dada a uma libra de
prata. E o dólar? O dólar surgiu como sendo o nome dado a uma
onça de prata cunhada por um conde da Boêmia chamado Schlick, no século
XVI. O conde Schlick vivia no Vale do
Joachim, ou Joachimsthal em alemão.
As moedas do conde ganharam grande reputação por sua
uniformidade e pureza, e passaram a ser chamadas por todos de Joachimsthalers. Com o tempo, elas passaram a ser chamadas
simplesmente de "thalers" [que significa proveniente "do vale"]. O nome "dólar" surgiu de "thaler".
No
livre mercado, portanto, os vários nomes que as unidades podem ter são
simplesmente definições de unidades de
massa. Até antes de 1933, quando
estávamos "no padrão-ouro", as pessoas costumavam dizer que o "preço do ouro" estava
"fixado em 20 dólares por onça de ouro".
Mas isso era uma forma perigosamente errada de ver a moeda. Na realidade, "o dólar" havia sido definido como sendo o nome dado a 1/20 (aproximadamente) de uma onça de ouro. Era, portanto, errado falar em "taxas de
câmbio" entre a moeda corrente de um país em relação às outras moedas de outros
países. A "libra esterlina", na prática,
não "cambiava" por cinco "dólares".[3] O dólar havia sido definido como 1/20 de uma onça
de ouro, e a libra esterlina, na época, era simplesmente o nome dado a 1/4 de uma
onça de ouro. Logo, por simples
matemática, uma libra esterlina também valia 5/20 de uma onça de ouro. Daí o senso comum de que uma libra esterlina
valia 5 dólares.
Claramente,
todos estes valores e todo este emaranhado de nomenclaturas eram complicados e
enganosos. Como eles surgiram é algo que
será mostrado mais adiante no capítulo sobre a interferência do governo na
questão monetária. A questão é que, em
um mercado genuinamente livre, o ouro simplesmente seria transacionado
diretamente em gramas, grãos ou onças, e tais denominações confusas, como
dólares, francos, marcos etc., seriam supérfluas. Por conseguinte, nesta seção, trataremos o
dinheiro como sendo diretamente transacionável em termos de onças ou gramas.
É
certo que o livre mercado irá escolher como sendo a unidade comum aquela
grandeza do dinheiro-mercadoria que for a mais conveniente. Se o dinheiro fosse a platina, ela
provavelmente seria transacionada em termos de frações de uma onça; se o ferro
fosse utilizado como dinheiro, ele seria calculado em libras ou toneladas. Obviamente, o tamanho da unidade não faz
diferença para o economista.
O formato da moeda
Se
o tamanho da unidade monetária ou o seu nome fazem pouca diferença econômica, o
formato do metal monetário também é igualmente irrelevante. Dado que
o metal é o dinheiro utilizado, conclui-se que a todo o estoque do metal, contanto que esteja disponível ao homem,
constitui o estoque mundial de dinheiro. Não faz muita diferença qual seja o formato em
que o metal se encontra em determinado período.
Caso o ferro seja o dinheiro, então todo
o ferro existente é dinheiro, esteja ele em formato de barras, de minério ou
incorporado em um maquinário especializado.[4] O ouro já foi comercializado como dinheiro na
forma de pepitas, de pó em sacas, e até mesmo como jóias. Não é de se surpreender que o ouro, ou outras
metais, possa ser comercializado em vários formatos, uma vez que a
característica que importa é sua massa.
É
verdade, no entanto, que alguns formatos são mais convenientes do que
outros. Nos últimos séculos, ouro e
prata foram fracionados em moedas
metálicas para as transações de menor valor, aquelas do dia-a-dia, e em
barras para as transações de maior valor.
Alguma quantidade foi transformada em jóias e outros ornamentos. Mas isso é importante: qualquer tipo de
transformação de um formato para outro custa tempo, esforço e consome vários
recursos. Realizar tal trabalho será um
empreendimento como qualquer outro, e os preços por esse serviço serão
estabelecidos da maneira habitual. A
maioria das pessoas concorda que é legítimo que joalheiros façam ornamentos a
partir do ouro bruto, mas elas estranhamente rejeitam que o mesmo princípio seja
aplicado à manufatura de moedas. Não
obstante, no livre mercado, a cunhagem é, em essência, um empreendimento como
outro qualquer.
Muitas
pessoas acreditavam, na época do padrão-ouro, que as moedas eram, por algum
motivo, um dinheiro mais "real" do que o ouro maciço não cunhado e em estado
natural (em barras, lingotes ou qualquer outro formato). É verdade que as moedas usufruíam um ágio
sobre o ouro em barra, mas isso não se devia a nenhuma misteriosa virtude embutida
nas moedas. Isso adivinha do simples fato
de que era mais caro cunhar moedas a partir da barra do que fundir moedas de
volta ao formato de barra. Por causa dessa
diferença, as moedas eram mais valiosas no mercado.
A cunhagem privada
A
ideia de cunhagem feita por empresas privadas parece tão estranha nos dias de
hoje, que vale a pena uma análise mais minuciosa. Estamos acostumados a pensar na cunhagem de
moedas como sendo uma "necessidade de soberania". No entanto, o mundo não mais está vinculado a
uma "prerrogativa real", e o conceito de soberania jaz não no governo, mas no
povo. Ou é o que dizem.
Como
funcionaria a cunhagem privada? Da mesma
maneira que qualquer outro empreendimento, como dissemos acima. Cada cunhador ou empresa cunhadora, ao
receber clientes com lingotes de ouro, iria fundir estes lingote e produzir moedas
nos tamanhos ou formatos que mais agradassem a seus consumidores. O preço deste serviço seria estabelecido pela
livre concorrência no mercado.
A
objeção típica a este arranjo é que seria muito trabalhoso mensurar o peso ou avaliar
a pureza do ouro em cada transação realizada. Mas absolutamente nada impede os cunhadores
privados de estamparem tais informações nas moedas, e garantirem seu peso e sua
pureza. Cunhadores privados podem garantir
a qualidade de uma moeda com, no mínimo, a mesma eficácia que a Casa da Moeda
estatal. Aqueles cunhadores reconhecidos
como os mais honestos ganhariam proeminência no mercado. As pessoas utilizariam as moedas daqueles
cunhadores que usufruíssem a melhor reputação pela boa qualidade de seu
produto. Meros pedaços de metal polido
não seriam aceitos como moeda. Como
vimos, foi exatamente assim que o "dólar" se tornou notório e conhecido -- como
uma moeda de prata competitiva e de qualidade.
Os
opositores da cunhagem privada dizem que as ocorrências de fraude seriam
generalizadas. No entanto, estes mesmos
opositores estão dispostos a conceder ao governo o monopólio da cunhagem. Mas, dado que eles estão dispostos a confiar
no governo, então, certamente, com a cunhagem privada, elas deveriam ao menos
confiar no governo para evitar ou punir as fraudes. Normalmente se pressupõe que a prevenção ou a
punição da fraude, do roubo e de outros crimes é a verdadeira justificativa
para a existência de um governo. Mas se
o governo não é capaz nem de deter um criminoso quando a sua função é a de
meramente fiscalizar a cunhagem privada, então qual a esperança de haver uma
cunhagem confiável quando a integridade dos agentes do mercado privado é descartada
em prol de um monopólio governamental de cunhagem?
Se
o governo não é confiável nem para desmascarar aquele malfeitor que ocasionalmente
surgiria no livre mercado de moedas, por que então deveríamos confiar no
governo quando este é colocado em uma posição de total controle sobre o
dinheiro, podendo depreciá-lo, adulterá-lo, falsificá-lo ou deturpá-lo com
plena sanção legal para agir como o único vilão no mercado? Da mesma forma que é uma insanidade dizer que
o governo deve socializar toda a propriedade a fim de evitar que alguém roube
propriedades, é também ilógico dizer que o governo deve abolir a cunhagem
privada e monopolizar esta tarefa com o intuito de evitar fraudes. O raciocínio por trás da abolição e da
proibição da cunhagem privada é o mesmo daquela da socialização da propriedade
privada.
Ademais,
todos os empreendimentos modernos baseiam-se na garantia de padrões. A farmácia vende um frasco de 250 mililitros
de remédio; o açougueiro vende um quilo de carne. O consumidor espera que tais medidas sejam acuradas,
e elas são. E pense nos vários milhares de
produtos especializados e vitais fabricados pelas indústrias, os quais devem seguir
padrões e especificações extremamente rigorosos. O comprador de um parafuso de 12,7 milímetros
(1/2 polegada) deve obter um parafuso de exatamente 12,7 centímetros, e não um
de 9,5 milímetros.
E,
ainda assim, não obstante todo este rigor de medidas, tais empreendimentos não
faliram. Eles não desapareceram. São poucas as pessoas racionais que defendem
que o governo tem de estatizar a indústria de maquinários como parte da sua tarefa
de evitar fraude nas medidas indicadas.
A economia de mercado moderna é formada por um número infinito de transações
intricadas, a maioria delas dependente de padrões de quantidade e qualidade
muito precisos. E as fraudes ocorrem em
níveis mínimos, e esse mínimo, ao menos em teoria, está sujeito a ação judicial. O mesmo ocorreria caso houvesse a cunhagem
privada. Podemos ter a certeza de que os
clientes de um cunhador, bem como os concorrentes desse cunhador, estariam intensamente
alertas para qualquer possibilidade de fraude no peso ou no grau de pureza de
suas moedas.
Os
defensores do monopólio estatal da cunhagem alegam que o dinheiro é diferente
de todas as outras mercadorias porque a "Lei de Gresham" comprova que "o
dinheiro ruim expulsa o dinheiro bom" de circulação. Sendo assim, o livre mercado não é confiável
para ofertar ao público um dinheiro de qualidade. Mas essa formulação tem por base a
interpretação equivocada da famosa lei de Gresham. A lei de Gresham é válida apenas quando há um
controle de preços imposto pelo
governo sobre o dinheiro. O que a lei de
Gresham realmente diz é que "o dinheiro que está artificialmente sobrevalorizado
pelo governo tirará de circulação o dinheiro que está artificialmente
subvalorizado".
Suponha,
por exemplo, que haja várias moedas de uma onça de ouro em circulação. Após alguns anos de intenso
uso, começam a surgir desgastes em algumas dessas moedas, de modo que elas passam
a pesar somente 0,9 onça. É óbvio que,
no livre mercado, essas moedas desgastadas circulariam valendo 90% do valor das
moedas íntegras, de modo que o valor de face das moedas desgastadas teria de
ser repudiado.[5] No mínimo, são justamente essas moedas "ruins"
que deixariam de ser utilizadas e sairiam de circulação.
Mas
suponha que o governo decrete que todos os cidadãos devem tratar as moedas
desgastadas da mesma maneira como tratam as íntegras, e que todos devem
aceitá-las igualmente, ao seu valor de face, em suas transações diárias. O que o governo fez neste caso? Impôs um controle
de preços coercivo sobre a "taxa de câmbio" entre os dois tipos de
moeda. Ao insistir na paridade em vez de
permitir que as moedas desgastadas fossem transacionadas a um valor nominal 10%
menor, o governo sobrevalorizou
artificialmente as moedas desgastadas e subvalorizou
as moedas novas. Consequentemente, todos
os cidadãos tenderão a utilizar apenas as moedas desgastadas, e entesourarão (ou
exportarão) as novas. Portanto, não é no livre mercado que "o dinheiro
ruim expulsa o dinheiro bom", mas sim como resultado direto da intervenção
governamental no mercado.
Não
obstante o infindável assédio dos governos sobre esta atividade, algo que
tornou as condições altamente precárias, as moedas privadas ainda assim
conseguiram prosperar em vários momentos da história. Em conformidade com a lei que diz que todas
as inovações surgem de indivíduos livres e não do estado, as primeiras moedas
foram cunhadas por cidadãos privados e ourives. Com efeito, quando o governo começou a
monopolizar a cunhagem, as moedas da realeza traziam as garantias de banqueiros
privados, os quais, aparentemente, usufruíam muito mais confiança aos olhos do
público do que o governo. Moedas de ouro
cunhadas privadamente circularam na Califórnia até 1848.[6]
Veja também:
Como seria a produção de
dinheiro no livre mercado
[1] Mesmo aqueles bens
que são nominalmente comercializados em termos de volume (fardo, alqueire, etc.) assumem de maneira tácita um padrão
de peso por unidade volumétrica.
[2] Uma das virtudes
cardeais do ouro como dinheiro é a sua homogeneidade
-- ao contrário de muitas outras mercadorias, o ouro não possui diferenças em
sua qualidade. Uma onça de ouro puro é igual a qualquer outra onça de ouro puro
ao redor do mundo.
[3] Na verdade, a libra
esterlina era por definição igual a US$4.87, mas estamos utilizando US$5 por
uma questão de conveniência nos cálculos.
[4] Enxadas de ferro
foram extensamente utilizadas como dinheiro tanto na Ásia quanto na África.
[5] Para lidar com o
problema do desgaste, os cunhadores privados poderiam ou estabelecer um tempo
limite de garantia do peso estampado em sua face ou concordar em cunhar
novamente, seja no peso original ou em um mais baixo. Podemos notar que, em uma
economia livre, não haverá aquela padronização compulsória das moedas que
predomina quando um monopólio estatal controla o processo de cunhagem.
[6] Para exemplos
históricos de cunhagem privada, ver B.W. Barnard. "The Use of Private Tokens for Money in the United States", Quarterly Journal of Economics
(1916-17), p. 617-26; Charles A, Conant, The
Principles of Money and Banking, Nova York:
Harper Bros, 1905, vol. I, p. 127-32; Lysander Spooner, A Letter to Grover Cleveland, Boston:
B. R. Tucker, 1886, p.79; e J. Laurence Laughlin, A New Exposition of Money, Credit and Prices, Chicago:
University of Chicago Press, 1931, vol. I, p. 47-51.
Sobre cunhagem, ver também Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit, p. 65-67; e Edwin Cannan, Money, 8th
Edition, Londres: Staples Press, 1935, p. 33ss.