Nunca se prestou tanta atenção a um julgamento
do Supremo Tribunal Federal, a nossa mais alta Corte de Justiça, do que agora,
quando os onze magistrados mais poderosos do país estão decidindo se condenam
ou absolvem os envolvidos no escândalo de corrupção conhecido como mensalão.
Seria muito interessante, entretanto, se outros
julgamentos do STF merecessem a mesma atenção das pessoas. Refiro-me aos
julgamentos nos quais o STF se manifesta acerca dos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência, pilares do regime capitalista de livre
mercado supostamente adotado pela nossa Constituição Federal de 1988.[1]
Nas linhas a seguir, tentarei mostrar que várias
decisões da nossa Suprema Corte[2]
apresentam um viés marcantemente estatista e anti-mercado[3].
Uma explicação prévia
No mundo jurídico, tem sido comum, de
uns tempos pra cá, ouvir os juristas debaterem muito sobre a distinção entre
regras e princípios. Desse debate, podemos extrair algumas conclusões que
correspondem, grosso modo, ao entendimento geral sobre o tema:
(i)
a norma é um gênero, do qual são espécies as regras e os princípios;
(ii)
as regras são mandamentos concretos, ao passo que os princípios são mandamentos
de otimização;
(iii)
as regras se aplicam à maneira do tudo ou nada, tendo, pois, vigência
excludente em caso de conflito; os princípios, por outro lado, têm vigência
concorrente em caso de conflito, podendo dois princípios contraditórios
conviverem harmoniosamente;
(iv)
os
conflitos entre regras dão origem a antinomias, sendo solucionados por
critérios formais: lei posterior derroga lei anterior, lei superior derroga
lei inferior e lei especial
derroga lei geral;
(v) Os conflitos
entre princípios não caracterizam antinomias verdadeiras, sendo solucionados
pela técnica da concordância prática, que consiste na redução proporcional do
âmbito de alcance de cada princípio, preponderando aquele de maior peso.
Nesse debate, para a formulação de
tais conclusões, quase sempre são citadas as obras de Robert Alexy[4] e
Ronald Dworkin[5].
No Brasil, abundam trabalhos acadêmicos tratando do assunto, podendo ser destacada
a obra de Daniel Sarmento[6].
Pois bem. O que acontece é que, dada a
jurisprudência do STF construída à luz do panorama jurídico acima delineado, a
força normativa dos princípios que norteiam o regime capitalista de livre
mercado -- livre iniciativa e livre concorrência -- é praticamente nula, em
razão da excessiva relativização deles. Sempre que os princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência se chocam com outros princípios ditos
"sociais", estes prevalecem, muitas vezes sem que as decisões sejam devida e
suficientemente fundamentadas.
Algumas decisões do STF
No julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 319-4, o STF decidiu que "em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre
iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor
e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da
justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a politica de
preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao
aumento arbitrário dos lucros". Transcrevo abaixo excertos dos votos de
alguns Ministros:
Tem razão, pois, José
Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., págs.
663/664, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1989) ao acentuar que "a liberdade
de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada
com a realização da justiça social (os fins condicionam os meios), não pode
significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro
estabelecido pelo poder público, e portanto, possibilidade de gozar das
facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. É
nesse contexto que se há de entender o texto supratranscrito do art. 170,
parágrafo único, sujeito aos ditames da lei e, ainda, dos condicionamentos
constitucionais em busca do bem-estar coletivo. Ela constitui uma liberdade
legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima,
quando exercida com o objetivo de puro lucro e realização pessoal do
empresário". E conclui com a observação de que o Poder Público, nos termos da
lei, pode legitimamente regular a liberdade de indústria e comércio, em alguns
casos impondo a necessidade de autorização ou de permissão para determinado
tipo de atividade econômica, quer regulando a liberdade de contratar,
especialmente no que tange às relações de trabalho, mas também quanto à fixação
de preços, além da intervenção direta na produção e comercialização de certos
bens.
Essas conclusões se
justificam ainda mais intensamente quando a atividade econômica diz respeito à
educação, direito de todos e dever do Estado, disciplinada, em si mesma, no
Título da Ordem Social, ordem essa que tem como objetivo, além da justiça
social, o bem-estar social, nos termos expressos do art. 193.
O regime de controle ou
de tabelamento de preços é inteiramente compatível com a Constituição vigente,
que, ao consagrar a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, impõe
a observância, dentre outros, do princípio da defesa do consumidor, como dispõe
o art. 170, n. V (...) A Constituição Federal, aliás, inclui a matéria no
Capítulo pertinente aos direitos e deveres individuais e coletivos,
prescrevendo o inciso XXXII do art. 5º, que "o Estado promoverá, na forma
da lei, a defesa do consumidor" (...) A Constituição de 1988 comporta
naturalmente medidas mais atenuadas de intervenção, como o controle do
abastecimento, o ordenamento jurídico dos preços e outras tendentes igualmente
à tutela do consumo e do investimento. (Ministro Moreira Alves)
O
Estado Liberal caracterizava-se pela neutralidade assumida na cena econômica e
social. A doutrina do laissez-faire, laissez-passer conferia base ideológica ao
liberalismo econômico. O Estado Liberal, também denominado Estado Mínimo ou
Absenteísta, não intervinha na ordem econômica e social. Limitava-se a fiscalizar
o livre e normal desenvolvimento da produção (...). Os abusos e iniqüidades
então cometidos constituíam, por uma questão até dogmática, fenômenos incapazes
de estimular, no aparelho de Estado, uma resposta apta a solucionar os graves
conflitos resultantes das relações sociais. [...]
Processou-se,
daí, uma evolução jurídico-política na própria concepção de Estado. Do Estado
Liberal evoluiu-se para o Estado Social, caracterizando-se este por sua ação
interventiva na ordem econômica e social. De simples espectador da cena
sócio-econômica, o Estado passou a ser um de seus mais importantes protagonistas.
[...]
O
Estado Social é, nitidamente, um Estado intervencionista (...). O estágio de
evolução que se encontra o Estado contemporâneo é uma conseqüência direta do
processo histórico de sua transformação (...). A modernização do Estado reflete,
na realidade, as novas tendências que exigem a sua constante atualização. Sem transformações
substanciais, que privilegiem a justa solução das graves questões sociais, o Estado terá, certamente, falhado à sua alta missão
institucional.
[...]
No
constitucionalismo brasileiro, a idéia social foi introduzida pela Constituição
Federal de 1934. Esse documento constitucional marca o instante de ruptura com
as práticas liberais e burguesas do antigo regime. Essa Carta republicana
surge, na real verdade, como o marco divisório entre duas concepções virtualmente
inconciliáveis de Estado. A Constituição brasileira de 1934 representa, assim,
dentro desse contexto, um momento de superação doutrinária e dialética de todos
os obstáculos criados pelo liberalismo.
[...]
Todas
as atividades econômicas estão sujeitas à ação fiscalizadora do Poder Público.
O ordenamento constitucional outorgou ao Estado o poder de intervir no domínio
econômico (...). A liberdade econômica não se reveste de caráter absoluto, pois
seu exercício sofre, necessariamente, os condicionamentos normativos impostos
pela Lei Fundamental da República. A própria noção de intervenção regulatória
ou indireta do Estado, cuja prática legitima o exercício do poder de controle
oficial de preços, constitui uma categoria jurídica a que não se tem revelado
insensível o legislador constituinte brasileiro. Quaisquer que sejam as modalidades
ditadas pelo sistema de controle oficial de preços ou qualquer que seja o
momento em que esse sistema opere e se concretize (a priori ou a posteriori), as
limitações que dele derivam, desde que fundadas na lei, incluem-se na esfera de
abrangência constitucional do poder de intervenção regulatória do Estado.
Desse
modo, inexiste apoio jurídico, em nosso sistema constitucional, para a tese que
pretende ver subtraídas, à ação regulatória do Estado, as atividades empresariais
de exploração econômica do ensino. (Ministro Celso de Mello)
Um instrumento constitucional de concretização desta função permanente
de ponderação de valores, que, em termos absolutos, se contradiriam, Senhor
Presidente, é precisamente, na ordem econômica, a competência do Estado para
intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica,
expressamente legitimado pelo artigo 174 da Constituição, que não se reduz, data
venia, a autorizar o
papel repressivo do abuso do poder econômico, previsto num dos incisos do
artigo 173: a meu ver, essa atividade normativa e regulatória compreende,
necessariamente, o controle de preços, que, mostra Comparato, tanto se pode
manifestar na fixação de preços mínimos, para estimular determinado setor da
economia, particularmente em períodos recessivos, como na fixação de preços
máximos ou como se cuida, no caso, no estabelecimento de parâmetros de
reajuste. Não excluo dessa atividade regulatória e, conseqüentemente, desta
possibilidade de controle de preços, nenhum setor econômico, Senhor Presidente.
Mas, também na linha do voto do eminente relator, penso que mais patente se
torna a legitimidade dessa intervenção, quando se trata de atividades abertas à
livre iniciativa, porém, de evidente interesse social, porque situadas em área
fundamental da construção da ordem social projetada na Constituição de 1988.
(Ministro Sepúlveda Pertence)
Volto a dizer que não nego possa haver exploração mercantilizada do
ensino; mas se existe é por tolerância e complacência da Administração Pública.
(Ministro Paulo Brossard)
No julgamento da Medida Cautelar 1.657, na qual
se discutia a legalidade do fechamento de uma fábrica de cigarros por não
pagamento de tributos, o STF decidiu que esse fechamento era legal, sim. Os
Ministros argumentaram que o mercado tabagista tem que ser altamente tributado
mesmo, e se a empresa não pagar deve perder sua autorização estatal para
funcionar. O Ministro Cezar Peluso exaltou a função extrafiscal[7] da
tributação do cigarro. O Ministro Eros Grau reconheceu que "a União fica com praticamente três quartos do preço que se paga por
uma carteira de cigarro", mas achou isso muito normal, porque, para ele, "há aí uma atividade sujeita a regime
especial (...), porque envolve risco à saúde". O Ministro Carlos Ayres Britto
disse o seguinte:
A
atividade tabagista, no plano industrial e mercantil, é delicada mesmo. Ela é
tão especial que reclama um regime tributário igualmente especial ? aliás, como
fez esse Decreto nº 1.593. Porque, pelos efeitos nocivos à saúde dos consumidores
do tabaco, é um tipo de atividade que muito dificilmente se concilia com o
princípio constitucional da função social da propriedade.
Claro
que há o aspecto estritamente econômico e também do emprego, mas uma função
social mais consentânea com os valores outros perpassantes da Constituição é de
difícil conciliação com a atividade tabagista nesse plano da industrialização,
da comercialização e do consumo.
Por
outra parte, ela parece mesmo se contrapor a uma política pública explícita na
Constituição Federal. Quero me referir ao artigo 196, caput, que faz da
saúde pública um dever do Estado, exigente de políticas sociais e econômicas de
redução do risco da doença e de outros agravos à saúde. Ou seja, há uma
política pública de defesa da saúde expressa na própria Constituição Federal,
que parece, também, de difícil conciliação com esse tipo de indústria, de
comércio e de consumo tabagista.
Em
última análise, quero dizer que o voto do Ministro Cezar Peluso me parece
homenagear, servir melhor à Constituição na sua axiologia. E Sua Excelência não
se furtou de encarar o tema à luz de outros princípios constitucionais: o da
livre iniciativa e o da livre concorrência. Aqui, quem atua nessa faixa de
mercado tem a obrigação de se circunscrever, de se manter nos rigorosos marcos
da tributação, porque ela cumpre uma função obrigatoriamente extrafiscal. Por
isso que o IPI é marcado pela seletividade em função da essencialidade do
tributo.
No julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 1.950, que tratava da constitucionalidade de lei que
assegura meia-entrada a estudantes em eventos culturais, esportivos etc., o STF
decidiu assim:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.
7.844/92, DO ESTADO DE SÃO PAULO. MEIA ENTRADA ASSEGURADA AOS ESTUDANTES
REGULARMENTE MATRICULADOS EM ESTABELECIMENTOS DE
ENSINO. INGRESSO EM CASAS DE DIVERSÃO,
ESPORTE, CULTURA E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO,
ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO ECONÔMICO.
CONSTITUCIONALIDADE. LIVRE INICIATIVA E ORDEM ECONÔMICA. MERCADO. INTERVENÇÃO
DO ESTADO NA ECONOMIA. ARTIGOS 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3º, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. É certo que a ordem econômica na Constituição
de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre
iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o
Estado só intervirá na economia em situações excepcionais.
2. Mais do que simples instrumento de
governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem
realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global
normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos
veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170.
3. A livre iniciativa é expressão de
liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso
a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do
Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.
4. Se de um lado a Constituição assegura a
livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as
providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à
cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da
Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser
preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.
5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte
e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes.
6. Ação direta
de inconstitucionalidade julgada improcedente.
No voto que conduziu a decisão acima transcrita,
o Ministro Eros Grau -- ele, mais uma vez! -- afirmou o seguinte:
É
necessário considerarmos, de outra banda, como anota Avelãs Nunes, que a
intervenção do Estado na vida econômica consubstancia um redutor de riscos
tanto para os indivíduos quanto para as empresas, identificando-se, em termos
econômicos, com um princípio de segurança: "A intervenção do Estado não poderá entender-se,
com efeito, como uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objectivos das
empresas (particularmente das grandes empresas), mas antes como uma diminuição
de riscos e uma garantia de segurança maior na prossecução dos fins últimos da
acumulação capitalista". Vale dizer: a chamada intervenção do Estado no domínio
econômico é não apenas adequada, mas indispensável à consolidação e preservação
do sistema capitalista de mercado. Não é adversa à lógica do sistema, que em
verdade não a dispensa como elemento da sua própria essência.
Assim
é porque o mercado é uma instituição jurídica. Dizendo-o de modo mais
preciso: os mercados são instituições jurídicas. A exposição de Natalino
Irti é incisiva: o mercado não é uma instituição espontânea, natural -- não é
um locus naturalis -- mas uma instituição que nasce graças a
determinadas reformas institucionais, operando com fundamento em normas
jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam; é um locus artificialis. O
fato é que, a deixarmos a economia de mercado desenvolver-se de acordo com as
suas próprias leis, ela criaria grandes e permanentes males. "Por mais
paradoxal que pareça -- dizia Karl Polanyi -- não eram apenas os seres humanos
e os recursos naturais que tinham que ser protegidos contra os efeitos devastadores
de um mercado auto-regulável, mas também a própria organização da produção
capitalista". O mercado, anota ainda Irti, é uma ordem, no sentido de regularidade
e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência,
pelos agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa uniformidade de
condutas permite a cada um desses agentes desenvolver cálculos que irão
informar as decisões a serem assumidas, de parte deles, no dinamismo do
mercado. Ora, como o mercado é movido por interesses egoísticos ? a busca do
maior lucro possível ? e a sua relação típica é a relação de intercâmbio, a expectativa
daquela regularidade de comportamentos é que o constitui como uma ordem. E essa
regularidade, que se pode assegurar somente na medida em que critérios
subjetivos sejam substituídos por padrões objetivos de conduta -- padrões
definidos no direito posto pelo Estado -- implica sempre a superação do
individualismo próprio ao atuar dos agentes do mercado.
[...]
Vê-se
para logo, destarte, que se não pode reduzir a livre iniciativa, qual
consagrada no artigo 1º, IV, do texto constitucional, meramente à feição que
assume como liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica.
Dir-se-á,
contudo, que o princípio, enquanto fundamento da ordem econômica, a tanto se
reduz. Aqui também, no entanto, isso não ocorre. Ou ? dizendo-o de modo preciso
?: livre iniciativa não se resume, aí, a "princípio básico do liberalismo
econômico" ou a "liberdade de desenvolvimento da empresa" apenas ? à liberdade
única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio
tão-somente uma afirmação do capitalismo.
O
conteúdo da livre iniciativa é bem mais amplo do que esse cujo perfil acabo de
debuxar.
Ela
é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo
trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da
"iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas
à empresa.
Daí
porque, de um lado, o artigo 1º, IV, do texto constitucional enuncia como
fundamento da República Federativa do Brasil o valor social e não as
virtualidades individuais da livre iniciativa; de outro, o seu art. 170, caput,
coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa, curando porém no sentido
de que o primeiro seja valorizado.
[...]
No
caso, se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro
determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o
efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23,
inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Ora, na composição entre
esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade,
interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios de lucro
e de acumulação de riqueza da empresa e o direito ao acesso à cultura, ao
esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes, não
apresenta maiores dificuldades.
O mesmo raciocínio foi usado para justificar outra
decisão do STF -- Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.512 --, a qual
considerou constitucional lei que garantia meia-entrada a doadores de sangue.
No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada[8]
171-2, o STF chancelou medida estatal que proibiu a importação de pneus usados,
alegando que o princípio da livre iniciativa não pode se sobrepor ao direito de
todos a um meio ambiente equilibrado, o qual configura, segundo a doutrina
dominante na atualidade, um "direito
fundamental de terceira geração"[9].
No julgamento do Recurso Extraordinário 349.686,
sob o fundamento de que "o exercício de qualquer atividade
econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações
impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia", e de que "o princípio da livre
iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do
mercado e de defesa do consumidor", o STF chancelou medida estatal que proibiu
o comércio de GLP, gasolina e álcool por parte dos chamados
transportadores-revendedores-retalhistas, garantindo, assim, um mercado cativo
às grandes distribuidoras (Petrobras, inclusive).
Pode-se citar, também, o julgamento
do Recurso Extraordinário 603.583, no qual o STF chancelou a lei que proíbe
pessoas não filiadas à OAB de exercerem livremente a profissão de advogado.
Conclusão
Alguns excertos de votos transcritos acima são
realmente preocupantes para qualquer pessoa que acredita no livre mercado e nos
seus princípios basilares. Os Ministros do STF provavelmente não conhecem a
obra dos grandes autores liberais, notadamente os membros da Escola Austríaca
de Economia.
Os argumentos usados nos votos não passam, na
maioria das vezes, de clichês impregnados daquilo que Ludwig von Mises
classificou de "mentalidade anticapitalista". Há passagens que, como visto acima,
chegam ao absurdo execrar o lucro! Por outro lado, o endeusamento do estado é
assustador! Enfim, tratando-se de uma Corte Suprema, era de se esperar pelo
menos um pouco mais de erudição na exposição dos argumentos.
Para o STF, livre iniciativa e livre
concorrência não existem. Há, na verdade, a iniciativa regulada e a
concorrência regulada, que são absolutamente contrárias ao livre mercado genuíno.
E o pior é que, quanto menos livre mercado temos, mais ele é culpado pelos
estatistas por todos os males que nos assolam.
[1] Em artigo recente, intitulado "Como o STF chancelou o monopólio
estatal dos Correios", tentei mostrar como alguns de nossos juízes supremos
-- notadamente Joaquim Barbosa, o endeusado relator do mensalão -- desconhecem lições elementares da boa ciência
econômica. Em outro artigo, intitulado "A nova lei antitruste
brasileira: uma agressão à livre concorrência", eu tentei mostrar como a
idéia de regulação estatal da concorrência é absurda e claramente antimercado.
[2] Se alguém se arriscar a fazer um estudo
como este na jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho), o resultado
será ainda pior.
[3] É preciso registrar que em quase todos
os casos que listarei o Ministro Marco Aurélio foi voto vencido, a exemplo do
que ocorreu também no caso em que o STF julgou o monopólio dos Correios. Em
muitos de seus votos ele adota postura crítica ao estado intervencionista e
demonstra apreço pelo livre mercado.
[4] ALEXY, Robert. Conceito e validade do
direito. Tradução de Gercelia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
[6] SARMENTO, Daniel. A ponderação de
interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1989.
[7] Os tributos são extrafiscais quando não
se limitam à sua função arrecadatória, servindo também para o estado atingir
outros fins, como estimular ou inibir certas atividades. No caso do cigarro,
usa-se uma alíquota altíssima de IPI para inibir o seu consumo, sob os aplausos
dos entusiastas do estado-babá.
[8] No Brasil, o estado possui uma posição
mais do que privilegiada no direito processual. Além de ter prazos mais longos
do que os particulares, o estado tem um mecanismo "político" para rever
decisões judiciais contrárias ao seu interesse: são os famosos "pedidos de
suspensão". Enquanto um particular só consegue combater uma decisão que lhe foi
desfavorável por meio dos recursos cabíveis, nos quais tem que se ater ao
debate jurídico da questão, o estado pode se valer desses absurdos "pedidos de
suspensão", alegando questões "políticas" genéricas como violação da ordem
pública, da saúde pública, da segurança pública, da economia pública etc. Não
raro esses pedidos são bem sucedidos. Afinal, como bem alerta sempre o
professor Hans-Hermann
Hoppe, é o estado quem julga o estado...
[9] Para um verdadeiro liberal, os únicos
direitos fundamentais legítimos são os de primeira geração, como liberdade,
vida e propriedade. São direitos negativos, que não exigem um fazer de ninguém
para serem assegurados. Os direitos fundamentais de segunda geração (direito à
saúde, direito ao emprego, direito à educação, direito à moradia etc.),
consagrados pelo estado de bem-estar social (Welfare State), e os direitos fundamentais de terceira geração
(direito ao meio ambiente equilibrado etc.), por sua vez, são direitos
positivos, representando, em si mesmos, a negação dos direitos de primeira
geração, por exigirem que o estado viole o direito de propriedade das pessoas
para assegurá-los. Eles são, pois, a perversão da Lei, como disse Bastiat em
sua magnifica obra: "a Lei perverteu-se por influência de duas causas bem
diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia". Esses supostos direitos
de segunda e terceira gerações não caem do céu. Por isso Bastiat dizia que "a
ilusão dos dias de hoje [e olhem que ele viveu de 1801 a 1850] é tentar
enriquecer todas as classes, à custa uma das outras. Isto significa generalizar
a espoliação sob o pretexto de organizá-la": BASTIAT, Frédéric. A Lei. 3ª ed. São Paulo: Instituto
Mises Brasil, 2010. Será que nossos Ministros já leram Bastiat?