Pela primeira vez em décadas — muitas e muitas delas! —, a área
econômica de um governo no Brasil ficará sob a responsabilidade de um
economista verdadeiramente liberal: Paulo Roberto
Nunes Guedes, conhecido como um dos mais radicais monetaristas de carteirinha.
Graduado em Economia na Universidade Federal de Minas Gerais, de onde
saiu, obviamente, como
um keynesiano, Guedes fez o
mestrado na Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas do
Rio de Janeiro, então sob a tutela de seu fundador Mario Henrique Simonsen, e
lá solidificou seu conhecimento técnico.
Embarcou depois para os Estados Unidos e obteve o grau de Ph.D. na Universidade
de Chicago, em um tempo em que o Departamento de Economia daquela instituição
fervilhava de economistas do porte de George Stigler, Arnold Harberger,
Harry Johnson,
Gary Becker, Robert Lucas Jr. e Milton Friedman.
Ao regressar ao Brasil, era um monetarista com sólido
equipamento teórico e forte influência desses professores, porém já estava também
na fronteira da chamada revolução das expectativas
racionais (conceito formulado pela primeira vez por John Muth em 1961) ou economia dos novos clássicos, desencadeada no início dos anos 1970 e
que se popularizou após a publicação de artigo assinado por Robert Lucas e
Leonard Rapping, em 1969, sobre salário real, emprego e inflação[1],
ao qual se
seguiram diversos trabalhos de, entre outros, Robert Barro, Finn Kydland, Edward Prescott, Thomas Sargent e Neil Wallace.
Não só por esse currículo, mas também por ter convivido com ele durante
anos, tenho certeza de que sabe que a saída para o Brasil não é o Galeão, nem
Guarulhos e muito menos a social-democracia que vem
destruindo nosso país desde a chamada redemocratização, mas a economia de
mercado, enfeixada em instituições que garantam os direitos fundamentais à
vida, às liberdades individuais e à propriedade, respeitem as escolhas de todos
os cidadãos, os tratem como adultos conscientes e não como criancinhas
dependentes de babás, coloquem o estado voltado para servi-los e compreendam
que pessoas não podem ser consideradas
meras engrenagens da sociedade, semelhantes às dos relógios.
Adicionalmente, o novo ministro conhece e admira Mises, Hayek, Rothbard e
a Escola Austríaca, mas difere de nós porque, sendo um Chicago boy
padrão, não enxerga a metodologia da Escola Austríaca como uma teoria
econômica rival, mas como tema a ser tratado em disciplinas de Ciências
Sociais.
O apoio não é
incondicional
O momento importantíssimo por que passa o Brasil,
em que chega um novo governo com grande apoio popular e com um programa
econômico liberal (ao menos na plataforma), não é apropriado para acentuar divergências,
mas sim reforçar convergências entre a Viena de 1900 do início da década de 30
e a Escola de Chicago dos anos 60 e 70.
E é evidente que ambas confluem no que efetivamente importa fora do mundo
acadêmico, que é a vida dos 210 milhões de habitantes do Brasil.
Em outras palavras, o que devemos levar em conta nestes tempos
promissores para o movimento liberal não é a economics, a teoria da economia, mas a economy, a economia do dia a dia das pessoas. Como ambas as escolas
teóricas levam a programas de governo que em muitos aspectos se assemelham, não há
motivo para nós, os austríacos,
fazermos birra e não apoiarmos os pontos positivos da política econômica
anunciada por Guedes apenas porque ele é monetarista.
Como sempre ensinaram Murray Rothbard e Joseph Salerno, temos de ser oportunistas.
Poderão arguir alguns leitores, talvez: "Mas como? O professor Iorio, um
economista da Escola Austríaca e que há bastante tempo vem se empenhando para
divulgá-la, tendo, inclusive, por isso, sacrificado várias oportunidades
profissionais em que seria mais bem remunerado, está defendendo o programa de
um Chicago boy"?
Minha resposta é: sim, estou e com muita alegria e esperança. Vou resumir
por quê, enfatizando: (a) as semelhanças na prática e (b) a necessidade do
pragmatismo.
Esse apoio é dever patriótico, pois se trata de um programa de fato
liberal, mas é evidente que não é incondicional. Não é questão de se bater
palmas para tudo o que for feito na área econômica, mas de aplaudir quando for feito o que julgarmos bom e criticarmos caso o programa venha a afastar-se, por
qualquer motivo, da agenda liberal. Desaprová-lo a priori, sem que nada ainda tenha sido implantado, seria uma
vaidade fútil; seria juntar-se à oposição e, sem dúvida, contribuir para a
recomposição da social-democracia,
que é justamente a visão de mundo que temos que combater.
(a) Reforçando
convergências e esquecendo (ou adiando) as divergências
No que diz respeito às recomendações de política econômica, são muitas as
semelhanças entre os austríacos e os monetaristas. Vou citar apenas algumas.[2]
Austríacos e monetaristas concordam que:
* A propriedade
privada é uma das bases do progresso, assim como o livre comércio, a mobilidade de trabalho e
capital, e a globalização;
* É preciso haver harmonia entre economia de mercado, liberdade e ordem social;
* É preciso privatizar,
desestatizar, desregulamentar e desburocratizar;
* Há que se respeitar o princípio da subsidiariedade e o
federalismo (descentralização política, econômica e administrativa), que são
muito superiores à centralização (mais Brasil e menos Brasília, mais Mises e
menos Keynes);
* As desigualdades
naturais são inevitáveis;
* As soluções de mercado para educação e saúde são superiores às
"soluções" do estado;
* A inflação é um fenômeno
monetário;
* As teorias da exploração
marxista e do intervencionismo
keynesiano são completamente equivocadas, bem como o patrimonialismo, o
corporativismo, o welfare state, o nanny state, a concessão de todo e
qualquer privilégio, o rent seeking e o privilege seeking;
* Déficits
públicos, endividamento do estado e tributação progressiva
são males e são desnecessários;
* O planejamento
central socialista e o totalitarismo são
inaceitáveis;
* Quaisquer controles
de preços, seja de bens e serviços, seja da taxa de câmbio, salários,
lucros, aluguéis e de toda a legislação sobre o salário
mínimo desorganizam a economia e trancam o progresso.
Há outros elementos comuns às duas escolas, mas o importante é frisar,
como fez o Prof. Israel
M. Kirzner, o mais proeminente economista vivo que segue a tradição de Carl
Menger[3]:
É importante não exagerar as diferenças entre as
duas correntes. [...] Existe uma quase surpreendente coincidência entre suas
visões sobre muitas questões importantes de política econômica. ... mas ambas
possuem basicamente o mesmo entendimento correto de como funciona um mercado, e
isso é responsável pelo saudável respeito que as duas abordagens dividem em
comum por suas realizações.
Como se sabe, há divergências entre austríacos e monetaristas, porém
praticamente todas são de caráter teórico e, portanto, de pouca relevância para
a situação que o Brasil vive hoje.[4]
(b) Nas condições
atuais, pragmatismo é sinônimo de prudência e sabedoria
Como já escrevi no início, o Brasil está na linha de largada de uma nova
era, depois de muitos anos de estagnação provocada pela mesmice esquerdista da
social-democracia, em um verdadeiro minueto dançado nos salões da velha
política por um refinado PSDB e um tosco PT, apoiados na orquestra mercenária
do atual MDB.
A boa nova é que o lulopetismo perdeu, o PSDB desmilinguiu-se,
o MDB
levou um direto no queixo e venceu o candidato que nos surpreendeu com uma
proposta realmente liberal
para a economia, reformadora na política e conservadora — como é quase
toda a população brasileira — em termos morais e de costumes. É tempo de coisas
novas na economia, na política e nos valores morais.
O que é importante é que estamos diante da possibilidade efetiva de nos libertamos
da semiescravidão que o ancien regime nos impôs. Ora, esse é um objetivo
preconizado por economistas como Friedman e Hayek, Gary Becker e Mises, George
Stigler e o próprio Rothbard — todos, aliás, membros da Mont
Pelerin Society.
(Esse é também meu recado — que espero seja bastante claro — para certos
radicais de Facebook, muitos deles leftlibs (alguns ainda imberbes) que nunca
escreveram mais do que "textões" nas redes sociais e youtubers em busca de seguidores e cliques em seus sininhos,
defendendo valores que os identificam com várias pautas da esquerda, principalmente
no que se refere aos valores morais.)
Ademais, no nosso atual contexto,
que importância tem, em termos pragmáticos e considerando a enorme crise e a
possibilidade de sairmos dela, por exemplo, se o melhor método para estudar a
economia é a Praxiologia de Mises ou
o Positivismo de Friedman, ou se
imposto é ou não roubo, ou se o processo de mercado austríaco é superior ou não
à análise neoclássica de equilíbrio? Por ora, praticamente nenhuma. Não vamos
enfraquecer nossas forças com divisões teóricas.
No futuro, depois que a casa do
mundo real estiver razoavelmente arrumada, aí sim, podemos convidar os
monetaristas para uma sala e brigar com eles, tendo uma lousa e carteiras como
cenário.
Conclusão
Apenas para deixar bem claro: devemos, inflexivelmente, manter uma
postura de radical intransigência em relação a qualquer eventual recaída intervencionista
— como, por exemplo, atacar sem piedade qualquer ideia da volta da CPMF, de
aumentos de impostos, de criação de IVA e de restrições ao livre comércio com a China. Qualquer erro deste tipo deverá ser impiedosamente criticado. Mas não vejo
sentido, por ora, em já sair fazendo oposição
estridente apenas porque não há "austríacos-raiz" na equipe econômica, ou
porque o ministro é de Chicago, ou porque o corte de gastos não será como o
desejado, ou porque nem todas as agências reguladoras serão abolidas, ou porque a Receita Federal não será fechada.
A primeira vitória — afastar os radicais keynesianos do poder — foi
conseguida. Vamos agora nos concentrar na segunda vitória: aumentar as liberdades
econômicas.
Para encerrar, e em uma nota mais leve, esta é a primeira vez, desde que
me entendo como analista econômico (lá no início dos anos 1980), que talvez
terei algo de bom a falar de um governo. Isso não tem preço e preciso ver como
se faz.
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Leia também:
Os economistas austríacos contra o mainstream econômico no Brasil de Temer
[1]
Lucas, R. e Rapping, L., Real
Wages, Employment, and Inflation, in: Journal of Political Economy,
1969, vol. 77, issue 5, 721-54.
[2] Mark Skousen publicou um livro
que discute de maneira muito interessante as convergências e divergências entre
as duas escolas: Vienna
& Chicago: Friends or Foes? A Tale of Two
Schools of Free-Market Economics.
Washington. Regniring. 2005.
[3] Kirzner, Israel M., Divergent
Approaches in Libertarian Economic Thought.Intercollegiate Review
(January-February), p.102.
[4] As
principais são a questão metodológica
(uma divergência teórica importantíssima); o contraste (também teoricamente
importante) entre a visão monetarista de mercados em equilíbrio e a abordagem
austríaca do processo de mercado; a questão das "falhas de mercado" (cuja
existência os austríacos negam); o melhor meio que o governo deve usar para que
a moeda seja "sólida": se deve regra x
de Friedman para a política monetária com banco central "independente" ou o
padrão-ouro ou o free banking, a
necessidade ou não da existência de bancos centrais e das reservas
fracionárias; e, por fim, as questões relativas à chamada "macroeconomia" e às
teorias do capital, da moeda, dos juros e dos ciclos econômicos.