Poucos conceitos são tão distorcidos e mal
compreendidos quanto a chamada Lei de Say. Em parte, isso foi obra de John
Maynard Keynes, que precisava acabar com ela para abrir espaço para suas políticas
intervencionistas. Keynes precisava mostrar que a Lei de Say era falsa porque
todo o seu tratado econômico foi construído tendo por base este pilar (o de que
Say estava errado).
E como você refuta uma "lei" que sempre havia sido
central para os economistas entenderem e explicarem a economia de mercado nos últimos
150 anos? Simples. Você a distorce, cria um espantalho e então bate com gosto
neste espantalho. Afinal, bater em espantalhos é muito mais fácil do que
refutar a tese verdadeira.
Consequentemente, a "Lei da Say" passou a ser
conhecida, segundo os próprios termos criados por Keynes, como uma teoria que
diz que "a oferta cria sua própria demanda", o que obviamente é uma descaracterização.
A
verdadeira Lei de Say
Originalmente, o significado era outro. Até mesmo o
nome era outro. Economistas anteriores a Keynes se referiam a ela como a 'Lei
dos Mercados', pois ela descrevia em termos muito simples os fundamentos de
como um mercado funciona. Jean-Baptiste Say foi aquele que expressou e explicou
a lei da maneira mais simples e direta, o que pode explicar por que ela passou
a ter o seu nome.
Say observou que o valor dos bens e serviços que
qualquer indivíduo pode comprar é igual ao valor de mercado daquilo que esse indivíduo
pode ofertar. Segundo
o próprio: "Dado que cada um de nós só pode comprar a produção de terceiros
com nossa própria produção, e dado que o valor do que podemos comprar é igual
ao valor do que podemos produzir, então quanto mais o homem pode produzir mais
ele pode comprar".
Em outras palavras, a produção precede o consumo, e a demanda
de um indivíduo só pode ser satisfeita se este indivíduo também ofertar algo a
alguém.
A Lei dos Mercados, portanto, diz que o valor dos
bens e serviços que qualquer indivíduo pode comprar é igual ao valor de mercado
daquilo que ele pode ofertar. Ou, em um sentido macroeconômico agregado, o
valor dos bens e serviços que qualquer grupo de pessoas pode comprar no
agregado é igual ao valor de mercado daquilo que eles podem ofertar no agregado.
Say, em suma, simplesmente expressou a realidade de
que nós produzimos (trabalhamos) para poder consumir.
Como
o mercado gera a abundância
Desta maneira, a Lei dos Mercados sintetiza a
natureza das ações de mercado, em que a divisão do trabalho faz com que a produção
se torne mais especializada. Especificamente, nós produzimos para vender, com a
intenção de então usar as receitas da venda para comprar aquilo que realmente queremos.
Isso significa que a produção que ocorre no mercado
é indireta, e não é incorrida de modo
a satisfazer diretamente as necessidades de cada produtor. Nós produzimos para
satisfazer os desejos de outras
pessoas. Como consequência, isso nos fornece os meios para comprar a produção de
terceiros e, assim, satisfazermos nossos próprios desejos.
O benefício deste arranjo é que há uma separação entre
aquilo que quero consumir e aquilo que quero produzir, o que significa que cada
um de nós pode se especializar na produção daquilo em que somos comparativamente
competentes, e não daquilo que queremos consumir mas não sabemos como produzir.
Também significa que podemos nos especializar em produzir apenas um bem ou serviço,
e não uma variedade deles, desta maneira cortando custos desnecessários,
desenvolvendo habilidades e especialidades, e consequentemente aumentando nossa
produção.
Se eu quero um smartphone, posso obtê-lo por meio da
minha produção de aulas e trabalhos acadêmicos (que é aquilo que faço melhor), não
sendo necessário que eu próprio tenha de um montar um smartphone do nada (o que
seria uma tragédia).
Porém, se, de um lado, a especialização universal
sob este arranjo de divisão do trabalho significa que a produção geral será
significativamente aumentada, de outro também significa que nos tornamos
dependentes uns dos outros. Não somente temos de vender aquilo que produzimos
para obter os meios necessário para consumirmos, como também temos de
transacionar com aqueles que produzem aquilo que desejamos para satisfazer
nossas necessidades.
Assim, nós nos tornamos interdependentes. Foi por
isso que Mises disse que "Sociedade é divisão de trabalho e
combinação de esforços. Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o
homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela
existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal
social."
Este "animal social" se beneficia da (inter)ação do
mercado, pratica essa interação e ascende por meio dela. Dado que só podemos
nos beneficiar se soubermos como corretamente direcionar nossos esforços
produtivos para satisfazer os desejos de outras pessoas, temos de entender
essas outras pessoas. Ao fazermos isso, podemos antecipar melhor quais são seus
desejos e necessidades, e então nos ocuparmos em tentar satisfazer esses
desejos e necessidades.
E dado que a produção é algo que leva tempo, a produção
tem necessariamente de preceder a
demanda.
O
que gera o crescimento econômico
Pelo fato de a demanda ser incerta, toda produção é
necessariamente especulativa e empreendedorial. A demanda real só será
descoberta quando os bens forem apresentados aos compradores em potencial. Consequentemente,
empreendedores são prognosticadores, avaliadores de projetos, tomadores de
risco. Em uma economia avançada, eles direcionam fundos para a mão-de-obra, para
os proprietários de terra, e para os fabricantes de bens de capital, e só conseguirão
recuperar este investimento se forem bem-sucedidos nesta antecipação das
demandas dos consumidores e, consequentemente, conseguirem vender seus produtos
a preços que viabilizem todo o seu investimento.
Ao mesmo tempo, os consumidores só poderão comprar esses
bens e serviços se tiverem eles próprios praticado uma produção que tenha
atendido aos desejos e demandas de terceiros — caso contrário, eles terão
apenas o desejo de comprar, mas não a capacidade (e isso não é demanda).
Isso não é um argumento circular, mas sim a própria explicação
de como ocorre o crescimento econômico. A capacidade de vender bens no mercado,
e consequentemente de incorrer em uma produção especializada, requer
investimentos anteriores. Por isso, para se especializar em algo, foi necessário
que esta pessoa produzisse bens e vendesse em uma quantidade que excedesse a própria
necessidade de consumo (para assim acumular poupança). Esta poupança será
utilizada para financiar o desenvolvimento de um novo bem. Isso caracteriza um
investimento. E esse investimento será especulativo porque a verdadeira demanda
só será conhecida quando o produto chegar ao mercado.
A implicação deste raciocínio é que nunca é possível
haver uma "superprodução" ou um "excesso de oferta" na economia. Consequentemente,
não é possível haver uma "deficiência na demanda agregada", sendo este o cerne
de toda a teoria keynesiana. É certamente possível haver um excesso de oferta
ou uma escassez de uma mercadoria específica, algo que ocorre regularmente em decorrência
de empreendedores não terem sido bem-sucedidos em antecipar corretamente a
demanda de mercado por seu produto.
Mas isso só pode ocorrer no curto prazo.
Quando
os erros ocorrem
Dado que toda produção é feita com o intuito de
vender os bens produzidos para então comprar os bens e serviços que irão satisfazer
os desejos do produtor, sua eventual incapacidade de vender irá se tornar sua
incapacidade de consumir. Não
é possível demandar sem antes ter produzido.
Consequentemente, quando uma pessoa não consegue
vender o que produziu, isso não caracteriza uma "deficiência da demanda". Ao contrário,
caracteriza uma falha na produção. É uma falha na produção o que causa uma redução
na demanda efetiva — uma falha empreendedorial.
Para tornar seus bens atrativos ao consumidor e,
assim, conseguir vendê-los, este produtor terá de reduzir seus preços. Houve um
erro empreendedorial de sua parte. Ou ele estimou erroneamente seus custos de produção
ou ele estimou erroneamente seu preço de venda. Um dos dois, ou ambos, terá de
ser corrigido. Caso contrário, ele não conseguirá vender. E consequentemente não
conseguirá demandar.
O que houve, portanto, foi um erro na precificação,
o qual deve ser corrigido. Empreendedores — por vários motivos — imaginaram
que os consumidores atribuiriam a seus bens e serviços valores maiores do que
aquele que de fato foi atribuído. Não houve um 'excesso de produção'; houve,
isso sim, um erro de cálculo quanto ao futuro valor de mercado dessa
produção.
Esse tipo de erro empreendedorial coletivo ocorre
tipicamente quando o governo embarca em uma política de crédito farto e barato,
o qual gera um aumento temporário da renda disponível das pessoas, que então
passam a consumir mais. Ludibriados por esse consumo maior — o qual foi
causado pelo mero endividamento barato e não por um aumento genuíno da produção
e da renda —, empreendedores passam a crer que haverá maior renda disponível
no futuro, de modo que seus bens e serviços serão mais demandados, o que
significa que poderão cobrar preços maiores. Mas tão logo essa expansão do
crédito é interrompida, todo o cenário de aumento da renda se revela fictício e
artificial, mostrando que nunca houve realmente um aumento da renda da
população. Houve apenas endividamento. Consequentemente, seus bens e serviços
não poderão ser vendidos pelo maior preço antecipado pelos empreendedores.
Logo, se empreendedores erraram em sua estimativa e
em sua produção — por qualquer motivo —, então a correção deve necessariamente
passar pelo rearranjo dos esforços produtivos, de modo a estimar mais
corretamente os desejos dos consumidores e a mais bem servi-los.
Esse diagnóstico da recessão é bastante diferente do
diagnóstico keynesiano, que enfatiza que houve uma redução da demanda em
decorrência de misteriosas flutuações no "espírito animal" dos empresários,
o qual deve ser retificado por meio de mais expansão do crédito, mais
endividamento e mais gastos governamentais.
No diagnóstico de Say, o governo deve remover ao
máximo os obstáculos burocráticos e regulatórios para que os empreendedores
possam rapidamente corrigir seus erros e descobrir quais bens e serviços os
consumidores realmente querem (e podem comprar). Dado que o mecanismo de preços
é a principal fonte de informação dos empreendedores, uma flexibilidade nos
preços de mercado é essencial para uma rápida recuperação.
Se o governo, no entanto, impedir essa correção por
meio de política que estimulem a demanda, isso irá apenas subsidiar estes bens
que foram produzidos a um custo muito alto. Consequentemente, os erros
empresariais serão protegidos e blindados das preferências do consumidor. Os consumidores
perderão e os empreendedores ineficientes são premiados. E a economia
continuará desalinhada, com a oferta não sendo aquela demandada pelos
consumidores.
Ao final, a produção estará em descompasso com a
demanda, os empreendedores ruins continuarão no mercado consumindo recursos
escassos (e, com isso, prejudicando os mais competentes), os consumidores terão
menos poder, e a economia será menos eficiente.
Conclusão
Por isso, é fácil entender por que os defensores do
intervencionismo querem abolir a Lei dos Mercados. Se a demanda for separada da
oferta e passar a operar independentemente desta, então os mercados jamais serão
eficientes, jamais tenderão ao equilíbrio e o governo sempre terá de intervir
para nos salvar de nós mesmos.
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