A história aponta que a primeira legislação antitruste do mundo foi editada no Canadá, em
1889. Tratava-se do
Act for the prevention and
supression of combinations formed in restraint of trade. Nesse sentido:
O pioneirismo do direito da concorrência é
creditado ao Canadá que, em 1889, editou o Act for the prevention and
supression of combinations formed in restraint of trade, cuja finalidade era
atacar arranjos ou combinações voltados a restringir o comércio mediante a
fixação de preços ou a restrição da produção (cartéis), o que foi incorporado
três anos depois ao primeiro Código Penal do Canadá. Nessa legislação
explicitou-se que a fixação de preços e outros acordos entre competidores eram
espécies de condutas abusivas.[1]
No entanto, pode-se dizer que a
origem das leis antitruste hoje vigentes, inclusive a brasileira, é o Sherman
Act, a lei antitruste americana, de 2 de julho de 1890, complementada
posteriormente pelo Clayton Act, de 1914, e pela lei que criou, no mesmo
ano, a Federal Trade Comission, a agência antitruste americana, na qual
o nosso CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) se inspirou.
Mas
por que os Estados Unidos editaram o Sherman
Act e por que outros países seguiram o seu exemplo? Afinal, o que
fundamenta a edição de uma lei antitruste, a criação de um órgão antitruste e a
adoção de uma política antitruste? Por que seriam necessários?
A visão predominante.
Boa
parte da doutrina, ao comentar os fatos históricos que deram origem ao Sherman Act, costuma afirmar que os
Estados Unidos, no final do século XIX, assistiam ao surgimento de grandes
monopólios e cartéis em vários setores da economia, os quais estariam abusando
de seu poder de mercado e, consequentemente, prejudicando consumidores.
De
fato, é comum encontrar, nas principais obras brasileiras sobre direito
antitruste (aqui também chamado de direito concorrencial ou direito econômico)[2], a
afirmação de que o Sherman Act foi editado numa época em que a economia
americana assistia à formação de grandes grupos monopolistas, que lucravam às
custas dos consumidores praticando preços abusivos.
Para
muitos autores, pois, a edição da lei antitruste americana teve por escopo a
proteção do consumidor. Confiram-se, a propósito, as seguintes passagens de
conhecida obra de Calixto Salomão Filho:
A exposição dos fatores político-econômicos
relevantes para aprovação do Sherman
Act permite focalizar corretamente a questão. Em primeiro lugar, fica
bastante evidente que a maior preocupação relativamente aos monopólios naquela
época eram os efeitos econômicos negativos sobre o consumidor.
(...)
A preocupação principal é, portanto, com o
poder dos monopolistas sobre os consumidores. Não só o poder econômico, também
o poder político.
(...)
O Sherman Act é uma lei promulgada em um
contexto político-econômico de proteção do consumidor contra o "excessivo poder
econômico no mercado". É essa sua única preocupação.[3]
Em
outra linha de raciocínio, certos autores afirmam que o Sherman Act teria
sido editado para proteger o próprio mercado, que se estaria autodestruindo em
razão do excesso de liberdade econômica[4].
Chega-se a afirmar que a lei antitruste americana representou uma suposta
salvação do liberalismo, o qual, sem regulação, estaria dando ensejo à
ocorrência de concentrações monopolísticas que distorciam as regras naturais de
competição.
É
o que afirma, por exemplo, Paula Forgioni, em outra respeitada obra sobre o
direito antitruste:
O Sherman
Act de 1890 representa, para muitos, o ponto de partida para o estudo
dos problemas jurídicos relacionados à disciplina do poder econômico. Com
efeito, essa legislação deve ser entendida como o mais significativo diploma
legal que corporificou a reação contra a concentração de poder em mãos de
alguns agentes econômicos, procurando discipliná-la. Não se deve dizer que o Sherman Act constitui uma reação ao
liberalismo econômico, pois visava, justamente, a corrigir distorções que eram
trazidas pela excessiva acumulação de capital, ou seja, corrigir as distorções
criadas pelo próprio sistema liberal. Não obstante a opinião contrária de parte
da doutrina norte-americana, o Sherman
Act tratou, em um primeiro momento, de tutelar o mercado (ou o sistema
de produção) contra seus efeitos autodestrutíveis.[5]
Em
mais uma obra respeitada sobre o direito antitruste, de autoria de João
Grandino Rodas e Gesner Oliveira, ex-presidentes do CADE, afirma-se que os
Estados Unidos, no período da edição do Sherman
Act, viviam uma era de "império dos trustes, onde algumas famílias
controlavam a produção de certos bens, ao ponto de poder fixar os respectivos
preços como lhes aprouvesse".
Tais
autores ainda afirmam que "tal estado de coisas [era] de per si atentatório contra a democracia e o igualitarismo da cultura
norte-americana". Afirmam também que empresas de certos setores estavam se
cartelizando com o intuito de não competirem entre si e, consequentemente, não
baixarem os preços de seus produtos ou serviços — citam especificamente o caso
das ferrovias. E complementam:
À era da total da total liberação econômica
dos anos 1870-90, sucedeu, nos três lustros seguintes, a temporada da
regulamentação e da contenção. Foi em tal cenário [de trustes, monopólios e
cartéis, segundo eles], que se desenrolava nos quadrantes de maior progresso
econômico do Novo Mundo, que o direito da concorrência encontraria os
nutrientes mais adequados para se desenvolver.[6]
Vê-se,
portanto, que é comum encontrar, na doutrina brasileira, uma visão bastante
positiva quanto à origem do Sherman Act,
vendo-o como uma lei benéfica, seja do ponto de vista da proteção do
consumidor, seja do ponto de vista da defesa do próprio mercado contra os
supostos riscos de autodestruição decorrentes da liberdade econômica
desregulada. Segundo essa visão, leis e órgãos antitruste visariam sempre ao
interesse público, gerando benefícios para a sociedade.
Na
opinião de Fábio Ulhoa Coelho:
A rigor, a legislação antitruste visa
tutelar a própria estruturação do mercado. No sistema capitalista, a liberdade
de iniciativa e a de competição se relacionam com aspectos fundamentais da
estrutura econômica. O direito, no contexto, deve coibir as infrações contra a
ordem econômica com vistas a garantir o funcionamento do livre mercado. Claro
que, ao zelar pelas estruturas fundamentais do sistema econômico de liberdade
de mercado, o direito de concorrência acaba refletindo não apenas sobre os
interesses dos empresários vitimados pelas práticas lesivas à constituição
econômica, como também sobre os dos consumidores, trabalhadores e, através da
geração de riquezas e aumento dos tributos, os interesses da própria sociedade
em geral.[7]
Nesse
sentido, aliás, pode-se citar o caput do
art. 1º da Lei Antitruste brasileira (Lei nº 12.529/2011), bem como seu
parágrafo único, que assim dispõem:
Art. 1º. Esta Lei estrutura o Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC e dispõe sobre a prevenção e a
repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames
constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social
da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder
econômico.
Parágrafo único. A coletividade é a
titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei.
Na
doutrina americana, porém, a situação é um pouco diferente. Há, de fato, uma
corrente majoritária que vê o Sherman Act
com bons olhos, isto é, como uma lei editada para coibir abusos de poder
econômico praticados por monopólios privados. Nesse sentido, pode-se citar
Frederic M. Scherer, que, em sua conhecida obra, escreveu:
Nos Estados Unidos (...), o fortalecimento
das leis antitruste é a principal arma utilizada pelo governo em seu esforço
para harmonizar o interesse na busca pelo lucro das empresas privadas com o
interesse público.[8]
No
entanto, embora a opinião do professor possa representar o pensamento mainstream sobre o tema, há inúmeros
outros autores que questionam essa visão otimista sobre a legislação
antitruste, como veremos a seguir.
Uma visão diferente.
Como
dito acima, há quem sustente, com base em evidências históricas robustas, que a
concentração empresarial percebida na economia americana no final dos anos 1800
era fruto do desenvolvimento natural de uma sociedade que tem como pilar
fundamental o livre mercado. E mais: tal fato era extremamente benéfico para a
sociedade.
Esses
autores não negam que na segunda metade do século XIX os Estados Unidos estavam
passando por um período de concentração empresarial, no qual diversas empresas,
em variados setores do mercado, formaram parcerias e constituíram grandes
grupos econômicos, com largo alcance nacional e até mesmo internacional.
Mas
isso, segundo tais autores, não estava ensejando a prática de abusos em
detrimento dos consumidores — aumento de preços e restrição da produção. Tais
conglomerados empresariais, na verdade, conseguiram racionalizar custos,
integrar recursos logísticos e obter consideráveis ganhos de escala, investindo
pesadamente em inovação tecnológica e em marketing publicitário.
Tudo
isso se refletia no oposto do que nos conta a versão mainstream da história: preços mais baixos, maior qualidade dos
produtos e serviços e incremento constante da produção. Nesse sentido:
De 1865 a 1897, a queda de preços ano após
ano dificultou para o empresário fazer planos para o futuro. Em muitas áreas as
novas ligações ferroviárias resultaram em nacionalização do mercado ao leste do
Mississipi e mesmo pequenos negócios em pequenas cidades foram forçadas a
competir com outras empresas geralmente maiores e localizadas longe dali. Ao
mesmo tempo, houve avanços notáveis em tecnologia e produtividade. Em resumo,
foi uma época maravilhosa para o consumidor, mas um período assustador para os
produtores, especialmente porque a concorrência ficou ainda mais acirrada.[9]
Muitos
autores têm uma visão bem particular sobre as origens do direito antitruste.
Para eles, as leis antitruste, na verdade, têm raízes protecionistas muito
claras: sua origem e seu desenvolvimento não guardam nenhuma relação com a
defesa da economia de livre mercado genuíno — livre concorrência, livre
iniciativa, propriedade privada e soberania do consumidor —, mas com a defesa
de grupos empresariais bem relacionados, os quais estavam perdendo espaço para
empresas mais eficientes e inovadoras.
Dominick
Armentano, professor emérito da Universidade de Hartford e talvez o mais
especializado estudioso do direito antitruste ligado à moderna Escola Austríaca
de economia, afirma que as leis antitruste foram editadas para serem usadas pelos concorrentes menos eficientes
com o objetivo de arrasar concorrentes mais eficientes.
Para ele, portanto, a política antitruste
nada tem de progressista, mas representa um traço característico do
conservadorismo, que busca manter o status quo da sociedade e da
economia, em detrimento das mudanças sociais e econômicas decorrentes do
processo concorrencial inerente ao livre mercado. Nas suas palavras:
Presumivelmente , o Sherman Act e as demais
leis antitruste foram editadas ??a fim de impedir a propagação de monopólios
comerciais e restabelecer a efetiva competição no mercado.
A perspectiva convencional sobre as origens
da regulação antitruste é que as leis foram promulgadas para conter a crescente
onda de "poder monopolista". No entanto, análises revisionistas do
Clayton Act, do Federal Trade Comission Act e do Robinson-Patman Act abalaram
seriamente este ponto de vista.
Vários estudiosos têm demonstrado que essas
regras "antitruste" foram geralmente apoiadas e empregadas por
empresas estabelecidas no intuito de restringir e limitar o processo
concorrencial.
Incapazes de competir com organizações
empresariais mais eficientes, certas empresas procuram criar restrições
políticas e legislativas a concorrentes, na tentativa de proteger ou melhorar
suas posições de mercado já existentes.
De acordo com essa visão, portanto, grande
parte do movimento antitruste deve ser visto mais precisamente como
conservador, e não como progressista. O movimento antitruste deve ser visto
como uma parte importante do "triunfo do conservadorismo" na política
americana.[10]
Fica
claro que, no excerto acima transcrito, ao mencionar entre aspas a expressão
"triunfo do conservadorismo", o professor Armentano se refere ao título de
conhecida obra do historiador socialista Gabriel Kolko, o qual, ironicamente,
também refutou a tese falaciosa de que as leis e os órgãos antitruste foram
criados em prol do consumidor para impedir a formação de monopólios.
Como
bem destacou David Friedman:
Um dos argumentos mais efetivos contra
laissez-faire não-regulado tem sido que ele invariavelmente leva ao surgimento
de monopólios. Como disse George Orwell, "o problema com competições é que
alguém as vence". Assim, argumenta-se que o governo deve intervir para impedir
a formação de monopólios ou, uma vez formados, para controlá-los. Essa é a
justificativa comum para as leis antitruste e agências regulatórias como a
Interstate Commerce Comission (ICC) e a Civil Aeronautics Board (CAB).
A melhor refutação histórica dessa tese está
em dois livros do historiador socialista Gabriel Kolko: The Triumph of
Conservatism ("O Triunfo do Conservadorismo") e Railroads and
Regulation ("Ferrovias e Regulação")[11].
Segundo Kolko, no final do século passado, os empresários acreditavam que o
futuro residia na grandeza, com conglomerados e cartéis, mas que estavam
errados. As organizações que formaram para controlar os mercados e reduzir
custos quase sempre fracassavam, pois obtinham lucros menores do que os
concorrentes menores, eram incapazes de fixar os preços e perdiam participação
de mercado gradualmente.
As comissões regulatórias supostamente foram
formadas para restringir os empresários monopolistas. Na verdade, diz Kolko,
elas foram formadas por pedido dos monopolistas malsucedidos para impedir a
concorrência que havia frustrado seus esforços. Os interessados em investigar a
questão histórica devem ler os livros de Kolko, que tratam sobre a Era
Progressista (...).[12]
Outro
estudioso ligado à Escola Austríaca que compartilha da opinião de que as leis
antitruste não foram editadas para proteger consumidores de supostos efeitos
nocivos da concentração empresarial é o professor da Loyola University Thomas
DiLorenzo, para quem a história do
antitruste tem sido uma história de "caça às bruxas" lançada contra as empresas
mais inovadoras e empreendedoras da América, caça essa normalmente instigada
por concorrentes insatisfeitos por estarem perdendo mercado[13].
Ninos
P. Malek, PhD em Economia pela George Mason University, compartilha da mesma
opinião, sendo ainda mais enfático em sua crítica à legislação antitruste:
As empresas às vezes
exortam o governo a intervir quando os seus concorrentes constituem uma ameaça
para elas. Esta é a força motriz por trás da legislação antitruste. O suposto
objetivo do antitruste é garantir a concorrência necessária à prosperidade de
uma economia de mercado. Mas, na realidade, o antitruste é um porrete usado
pelas empresas contra seus concorrentes com melhor desempenho. (...)
Uma rápida olhada nos casos julgados pelo
FTC é suficiente para demonstrar esse ponto. Escolha qualquer caso dentre os
inúmeros existentes e você vai encontrar uma força oculta por trás dele: uma
empresa que procurou o estado para elaborar uma queixa contra um concorrente.[14]
Finalmente,
pode-se citar também a opinião de Robert H. Bork, o qual, embora não seja
representante da Escola Austríaca nem defenda, como os seguidores dessa escola
de pensamento, o fim do antitruste, pelo menos reconhece que a aplicação das
leis antitruste, historicamente, acaba resultando em decisões com efeitos
nitidamente prejudiciais aos consumidores.[15]
Portanto,
basta estudar a História com um pouco de cuidado para identificar os verdadeiros
motivos que originaram a construção de todo o arcabouço normativo que
fundamenta o direito antitruste. É o que faremos nos tópicos seguintes.
A economia americana no final do século
XIX.
Analisando
a economia americana no período das discussões sobre o Sherman Act e no
início de sua vigência, Thomas DiLorenzo verificou que as empresas acusadas de
monopolização dos mercados estavam aumentando sua produção e reduzindo seus
preços num ritmo muito maior do que o resto da economia como um todo.
Nas
suas palavras:
Num estudo[16]
publicado em junho de 1985 na International Review of Law and Economics, eu
mostrei que as indústrias acusadas de 'monopolização' pelo senador Sherman e
seus colegas estavam expandindo sua produção quatro vezes mais rápido do que a
economia como um todo, em média (algumas até dez vezes mais rápido), na década
anterior à edição da lei antitruste.
Eles também estavam baixando seus preços
mais rápido do que o nível geral de preços estava caindo durante aquele período
deflacionário. Os "trustes" foram submetidos a ataque político precisamente
porque estavam fazendo produtos cada vez mais baratos, para o desespero de seus
rivais menos eficientes, mas politicamente bem relacionados. O antitruste foi
uma arma protecionista desde a sua mais remota origem.[17]
No
mencionado estudo, DiLorenzo cita dados comprovando que entre os anos 1880 e
1890 a produção americana estava crescendo a uma média de 24%, enquanto os
setores industriais em que atuavam as empresas acusadas de monopolização
estavam crescendo a um média de 175%, isto é, aproximadamente sete vezes mais.
E
alguns setores industriais específicos estavam verificando uma expansão da
produção até dez vezes maior do que a média de crescimento da economia
americana. Por exemplo: aço (258%), zinco (156%), carvão (153%), aço para
trilhos ferroviários (142%), petróleo (79%) e açúcar (75%).
Quanto
aos preços, os dados colecionados por DiLorenzo também são impressionantes. No
período de 1880 a 1890, ou seja, nos dez anos anteriores à edição do Sherman Act, os preços nos setores
industriais em que as empresas acusadas de monopolização atuavam sempre caíram,
alguns sensivelmente.
Por
exemplo: aço para trilhos ferroviários (de 68 para 32 dólares: -53%), açúcar
refinado (de 9 para 7 centavos de dólar: -22%), chumbo (de 5,04 para 4,41
dólares: -12%) e zinco (de 5,51 para 4,40 dólares: -20%).[18]
Enfim,
DiLorenzo demonstra haver evidências claras de que o Sherman Act nunca teve a intenção de promover a concorrência para
proteger o consumidor, como muitos acreditam, sendo na verdade uma lei editada
para atender a pressões protecionistas do final do século XIX, notadamente em
favor das pequenas empresas.
Nas
suas palavras:
Assim, o Congresso reconheceu que os trustes
eram na verdade responsáveis por trazer melhoras para o consumidor, baixando
preços imensamente[19].
Os congressistas faziam objeção, porém, ao fato de que empresários ("homens
honestos") menos eficientes (menores) estavam sendo retirados do mercado.
[Um dos propósitos do Sherman Act era]
isolar certos grupos, especialmente pequenas empresas, dos rigores da
concorrência. Se os trustes estivessem restringindo a produção (ou diminuindo
sua expansão) e aumentando preços, pequenas empresas não reclamariam, pois elas
se beneficiariam desse fato. Esse ponto é de considerável importância. É
sabidamente reconhecido que pequenas empresas sempre iniciaram os processos
antitruste contra seus concorrentes maiores (e geralmente mais eficientes).
Como Armentano, Demsetz e outros têm demonstrado, esses processos servem tipicamente
para proteger pequenas empresas da concorrência e inevitavelmente acarretam
aumentos de preços.[20]
DiLorenzo
também destaca que, além da pressão protecionista em defesa das pequenas
empresas, houve outro fator relevante para a aprovação do Sherman Act pelo Congresso americano:
Um segundo propósito do Sherman Act era
satisfazer eleitores que tinham cada vez mais inveja do sucesso obtido por
empresários do século XIX e que também ficaram chateados com a rápida mudança
relativa de preços e salários. (...) A alteração relativa dos preços é muitas
vezes uma característica da economia de mercado, dinâmica e competitiva. Mas
grupos cujos salários e rendimentos caem relativamente (pelo menos
temporariamente), muitas vezes protestam contra o governo, fazendo lobby em
favor de medidas protecionistas de vários tipos, incluindo leis antitruste.[21]
Quem
corrobora a opinião do professor DiLorenzo é Thomas W. Hazlett, que, num estudo
minucioso sobre a história do processo legislativo que deu origem ao Sherman Act, assim se manifesta sobre a
situação da economia americana naquele período:
A principal anomalia da legislação
antitruste norte-americana é que, se eliminar as distorções monopolísticas era
o seu objetivo, o final dos anos 1800 e início do século 20 parece ser um
momento estranho para tal preocupação surgir. A economia americana estava
justamente experimentando expansões vigorosas da produção, as empresas estavam
reduzindo agressivamente os preços, aumentando realmente os salários,
introduzindo novos produtos e técnicas industriais e baixando drasticamente
seus custos. Além disso, as tecnologias recém-descobertas estavam causando
mudanças estruturais dramáticas na paisagem econômica dos EUA, de tal forma que
as oportunidades de exploração de monopólios locais estavam evaporando por toda
parte.[22]
Assim, a afirmação de que a lei antitruste
americana foi criada para combater efeitos nocivos de supostos monopólios
privados é, portanto, uma falácia cuidadosamente forjada ao longo dos anos. A
real história americana do final do século XIX mostra grandes empresas
aumentando a produção, reduzindo preços, inovando em tecnologia, criando novos
produtos e serviços e impulsionando o desenvolvimento econômico e social dos
EUA.
Os
economistas que acreditam que houve uma "idade de ouro do antitruste"
nunca produziram qualquer evidência disso. O Sherman Act, como
demonstrado, foi um instrumento usado para regular algumas das indústrias mais
competitivas da América, que foram expandindo rapidamente sua produção e
reduzindo os seus preços, para o desespero de seus menos eficientes (mas
politicamente influentes) concorrentes.
O
Sherman Act, além disso, foi usado como um despiste para esconder a
verdadeira causa do monopólio no final dos anos 1880: protecionismo. O
principal patrocinador do projeto de lei tarifária de 1890, que passou apenas
três meses após o Sherman Act, não era outro senão o próprio senador
Sherman.[23]
Vale
ressaltar que essa situação de queda de preços e expansão da produção
industrial era fruto da intensa competição que havia nos mais diversos setores
da economia americana no final do século XIX. Thomas Woods, historiador
americano formado em Harvard e com PhD na Universidade de Columbia, afirma que
o fim dos anos 1800, apesar de ser a era dos trustes e das grandes corporações,
foi um período de extrema concorrência empresarial.
Na
realidade, era muito difícil para as grandes empresas manterem sua posição
dominante em várias áreas industriais dos EUA do final do século XIX.
Isso era válido para ramos industriais tão diversos quanto petróleo, aço,
ferro, automóveis, maquinaria agrícola, cobre, acondicionamento de carne e
serviços de telefonia. A concorrência era extremamente vigorosa.[24]
Essa
mesma opinião é compartilhada, conforme já destacamos no tópico anterior, pelo
historiador socialista Gabriel Kolko, que assim resumiu sua pesquisa sobre o
período histórico da edição do Sherman
Act:
Houve durante esse período uma tendência
dominante para o crescimento da concorrência. A concorrência era inaceitável
para muitos dos principais líderes empresariais e financeiros, e o movimento de
fusão foi em larga medida uma repercussão dos efeitos de negócios voluntários
mal-sucedidos de colocar sob controle tendências irresistíveis. (...) Como
surgiram novos concorrentes e como o poder econômico foi difundido por toda uma
nação em expansão, tornou-se evidente para muitos empresários importantes que
só o governo nacional poderia (controlar e estabilizar) a economia (...).
Ironicamente, ao contrário do consenso entre os historiadores, não foi a
existência do monopólio que provocou o governo a intervir na economia, mas a
sua ausência.[25]
No
mesmo sentido opina o professor Hans-Hermann Hoppe, o qual, antes de citar o
excerto do próprio Kolko transcrito acima, assim afirma:
No que diz respeito à evidência histórica,
se a tese dos críticos do capitalismo fosse verdadeira, seria preciso então
esperar uma tendência mais nítida rumo a uma monopolização sob um capitalismo
laissez-faire mais livre, sem entraves e desregulado do que sob um sistema relativamente
e mais pesadamente regulado de capitalismo de "bem estar" ou de
capitalismo "social". No entanto, a história fornece evidência de
resultados precisamente opostos.
Há um consenso em relação à avaliação do
período entre 1867 e a Primeira Guerra Mundial como sendo o período
relativamente mais capitalista na história dos Estados Unidos e o período
seguinte como sendo, comparativamente, o de aumento da regulação do mercado e
da legislação do estado de bem-estar social. Porém, analisando a questão, se verifica
que não houve somente menos desenvolvimento rumo à monopolização e a
concentração de empresas no primeiro período em relação ao segundo, mas também
que durante o primeiro período era possível observar uma tendência constante
para uma concorrência mais séria com os preços de quase todos os bens caindo
continuamente.
E essa tendência só foi interrompida e
revertida quando no decorrer do tempo o sistema de mercado foi muito mais
obstruído e destruído pela intervenção do estado. O crescimento da monopolização
só se estabeleceu quando os principais empresários conseguiram persuadir o
governo a interferir no sistema de concorrência feroz e aprovar uma legislação
reguladora, impondo um sistema de concorrência "ordeira" para
proteger as grandes empresas da chamada concorrência cruel que nascia
continuamente em torno delas.[26]
Portanto,
o que motivou a criação da lei antitruste americana — e o que sustenta todas
as leis antitruste até os dias atuais — foi o protecionismo[27] e o
intervencionismo. É interessante para o governo ter, como moeda de troca, a
possibilidade de fustigar empresas que estejam incomodando os "amigos do rei".
E muitas empresas, principalmente aquelas menos eficientes, também gostam de
saber que podem contar com a ajuda do governo na hora de atacar concorrentes
mais eficientes.
O artigo acima é um trecho do livro Os fundamentos contra o
antitruste
[1] GABAN, Eduardo
Molan e DOMINGUES Juliana Oliveira. Direito
antitruste: o combate a cartéis. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 93. No
mesmo sentido: OLIVEIRA, Gesner e RODAS, João Grandino. Direito e economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004,
p. 4.
[2] Confira-se, a
propósito, artigo pioneiro sobre o tema: COMPARATO, Fábio Konder. "O
indispensável direito econômico". In: Ensaios
e pareceres de direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp.
453/472. Nesse texto, o autor deixa clara sua visão intervencionista sobre o
que deveria ser tal direito econômico: "O novo direito econômico surge como o
conjunto das técnicas jurídicas de que lança mão o estado contemporâneo na
realização de sua política econômica. Ele constitui assim a disciplina
normativa da ação estatal sobre as estruturas do sistema econômico, seja este
centralizado ou descentralizado" (p. 465). Vê-se, desde logo, que a visão do
autor, focada no intervencionismo estatal, é diametralmente oposta à visão que
será defendida nesta tese, focada na defesa do liberalismo econômico.
[3] SALOMÃO FILHO,
Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 3ª Ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 71.
[4] Essa falácia de
que o liberalismo se autodestrói sempre foi questionada por Mises, que assim
escreveu em sua autobiografia: "o fato é que demonstrei ser insustentável a
teoria de que o socialismo e o intervencionismo são inevitáveis. O
capitalismo não se destrói a si próprio. As pessoas querem aboli-lo porque
é no socialismo ou no intervencionismo que julgam estar sua salvação": MISES,
Ludwig von. Memoirs. Auburn: Ludwig
von Mises Institute, 2009, p. 98 (tradução livre).
[5] FORGIONI, Paula.
Os fundamentos do antitruste. 5ª Ed. São Paulo: RT, 2012, pp. 65/66. A
opinião contrária mencionada nessa passagem é de Thomas DiLorenzo, que é citado
pela professora Paula Forgioni em algumas notas de rodapé, numa das quais ela o
associa à Escola de Chicago. Sabe-se, porém, que DiLorenzo é um destacado
representante da Escola Austríaca, sendo atualmente um senior fellow do Ludwig von
Mises Institute, no Alabama.
[6] OLIVEIRA, Gesner
e RODAS, João Grandino. Direito e
economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 3-4.
[7] COELHO, Fábio
Ulhoa. Direito antitruste brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 1995, p. 5.
[8] SCHERER, Frederic M. Industrial market structure and economic
performance. 2ª ed. Chicago:
Rand McNally College Publish Company, 1980, p. 435 (tradução livre). No mesmo sentido,
afirmando que o Sherman Act é a
"Carta Magna do livre mercado": HOWARD, Marshall. Antitrust and
trade regulation.
Prentice Hall, 1983.
[9] McGUIRE, Joseph William. Business and society. New York: McGraw-Hill, 1963, pp. 38-39.
[10] ARMENTANO, Dominick. Antitrust and monopoly: anatomy of a policy
failure. 2ª ed. Oakland:
The Independent Institute, 1999, pp. 5-6 (tradução livre).
[11] KOLKO, Gabriel. The triumph of conservatism: a
re-interpretation of american history. New York: Free Press of Glencoe, 1963; e
KOLKO, Gabriel. Railroads and regulation.
Princeton:
Princeton University Press, 1965. Ao comentar essas obras, David Friedman
afirma que "Kolko é um historiador socialista que diz, com amplas evidências,
que no final do século XIX e início do XX, o capitalismo estava indo bem para
todos, exceto para os capitalistas, que pensavam que poderiam ganhar mais
dinheiro fazendo o governo intervir a favor deles".
[12] FRIEDMAN, David.
As engrenagens da liberdade.
Tradução colaborativa não oficial do Portal Libertarianismo. 2ª ed., p. 32 da
versão em PDF.
Disponível em http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/32-david-d-friedman/63-as-engrenagens-da-liberdade.
Acesso em 08 de outubro de 2013. O autor também disponibiliza a versão original
da obra em inglês, "The machinery of
freedom", no seu blog pessoal: http://www.daviddfriedman.com/The_Machinery_of_Freedom_.pdf.
[13] DiLORENZO, Thomas. "Anti-trust, anti-truth". In: Organized crime: the unvarnished truth
about government. Auburn:
Ludwig von Mises Institute, 2012, pp. 21-23 (tradução livre).
[14] MALEK, Ninos P. "Anti-trust is anti-competitive". Disponível em http://mises.org/daily/1555. Acesso em 7 de
outubro de 2013 (tradução livre).
[15] Bork entende que
o escopo da lei antitruste deve ser a maximização do bem-estar do consumidor,
mas afirma que, paradoxalmente, seus dispositivos são muitas vezes mal
interpretados pelos tribunais, que acabam proferindo decisões anti-consumidor:
BORK, Robert H. The antitrust paradox: a
policy at war with himself. New York: The Free Press, 1978.
[16] DiLORENZO, Thomas. "The
origins of antitrust: an interest-group perspective". In: International Review of Law and Economics, nº 5, junho de 1985, pp.
73-90. Disponível em http://www.ucis.gmu.edu/~trustici/LAW108/The%20Origins%20of%20Antitrust-%20An%20Interest%20Group%20Perspective.pdf.
[17] DiLORENZO, Thomas. "Anti-trust, anti-truth". In: Organized crime: the unvarnished truth
about government. Auburn:
Ludwig von Mises Institute, 2012, p. 21 (tradução livre).
[18] A fonte dos dados colhidos
pelo professor DiLorenzo é o próprio governo americano: US Bureau of the Census, Statistical
Abstract of the U.S., US Government Printing Office.
[19] Quanto a esse
fato, DiLorenzo transcreve falas de congressistas, durante o debate sobre o Sherman Act, nas quais eles reconhecem
que as indústrias de açúcar e petróleo, duas das mais acusadas de monopolização
por trustes, estavam realmente baixando seus preços de modo considerável. No
mesmo sentido, mostrando que "o debate no Senado sobre o Sherman Act teve vários momentos anticonsumidor", confira-se:
HAZLETT, Thomas W. "The legislative history of the Sherman Act re-examined". In: Economic
Inquiry, Vol. 30, nº 2, abril de 1992, p. 263 (tradução livre).
[20] DiLORENZO, Thomas. "The
origins of antitrust: an interest-group perspective". In: International Review of Law and Economics, nº 5, junho de 1985, p.
81 (tradução livre).
[21] DiLORENZO, Thomas. "The
origins of antitrust: an interest-group perspective". In: International Review of Law and Economics, nº 5, junho de 1985, p.
81 (tradução livre).
[22] HAZLETT, Thomas W. "The
legislative history of the Sherman Act re-examined".
In: Economic Inquiry, Vol. 30, nº 2, abril
de 1992, p. 263 (tradução livre). No mesmo sentido: BAXTER, William. The political economy of antitrust. Lexington: Lexington Books, 1980. Baxter,
que foi diretor da divisão antitruste do Departamento de Justiça dos EUA,
afirmou: "as leis antitruste consistentemente produzem resultados que são
contrários ao objetivo de eficiência econômica" (p. 4, tradução livre).
[23] DiLORENZO, Thomas. "The truth about Sherman". Disponível em https://mises.org/daily/331. Acesso em 8 de outubro de 2013
(tradução livre).
[24] WOODS, Thomas. "Monopólio e livre mercado: uma antítese".
Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque. Disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=366. Acesso em 9 de outubro de
2013.
[25] KOLKO, Gabriel. The triumph of conservatism: a
re-interpretation of american history. New York: Free Press of Glencoe, 1963, pp.
4-5.
[26] HOPPE,
Hans-Hermann. Uma teoria do socialismo e
do capitalismo. Tradução de Bruno Garschagen. São Paulo: Instituto Ludwig
von Mises Brasil, 2013, p. 172.
[27] Para uma visão
alternativa à do mainstream
acadêmico, sugerindo que "o Sherman Act foi
editado principalmente não para defender o bem-estar do consumidor, mas para
atender a interesses especiais de grupos políticos", confira-se: HAZLETT,
Thomas W. "The legislative history of the Sherman
Act re-examined". In: Economic
Inquiry, Vol. 30, nº 2, abril de 1992, p. 263 (tradução livre).