segunda-feira, 25 jan 2021
Se
há algo de que nunca me canso e do qual não abro mão é olhar por horas a fio da
janela de um avião. Por toda a história
da humanidade até praticamente anteontem, nenhum ser humano podia ver o mundo
desta perspectiva. As pessoas podiam, no
máximo, subir ao topo das montanhas e ver alguns vales logo abaixo. Mas ver toda aquela diversidade de cenários
se alternando logo abaixo de si era um privilégio exclusivo dos pássaros e de
Deus.
E então, aproximadamente 100 anos
atrás, esta realidade mudou e passamos a poder vivenciar aquilo que nunca
havíamos realmente experimentado diretamente.
Mas
não é a visão da natureza em estado puro o que me fascina. São as metrópoles. São as pequenas cidades. São as luzes. São aquelas vastas terras cultivadas pela agricultura. É ver aquela aparente regularidade e ordem gerada
pela civilização humana, algo que não foi planejado por nenhum comitê superior,
mas que foi surgindo espontaneamente, aos poucos, por meio da criação da mente
humana. Tudo o que vemos concretizado
hoje foi apenas uma ideia ontem, e passou a existir por meio da ação de
indivíduos.
Não
obstante toda a pretensão dos governos, toda a arrogância de seus funcionários
e toda a mentalidade centralizadora e planejadora de seus burocratas, tudo
aquilo que você vê da janela de um avião é, em sua pura essência, resultado de
uma anarquia ordeira, a evidência do que milhões de unidades de explosiva
criatividade (também conhecidas como 'pessoas') são capazes de construir quando
passam a interagir e cooperar entre si em busca da realização de seu interesse
próprio.
É
igualmente intrigante observar, ao se fazer um voo continental — seja nos EUA,
seja no Brasil ou seja na Europa —, a imensa quantidade de terras desabitadas
que ainda existe no mundo, o que deixaria qualquer um estupefato ao ouvir a
conversa de que o mundo está 'excessivamente povoado' ou de que estamos 'ficando
sem espaço'.
Sob as condições adequadas,
a população mundial poderia mais do que decuplicar, ocupar todo este espaço e
ainda assim sobraria muito ar respirável. Ah, sim, lembra-se daquela conversa, muito recorrente alguns anos atrás,
de que estávamos ficando sem lugar para fazer aterros sanitários? Quanta besteira.
Mas
isso não é tudo que podemos constatar quando passamos a usufruir a mesma visão
dos pássaros. Há uma cena no filme O Terceiro Homem, de 1949,
rodado em Viena após a Segunda Guerra Mundial, em que o criminoso Harry Lime, interpretado por Orson Welles, e o escritor Holly Martins,
interpretado por Joseph Cotten, estão no topo de uma roda-gigante. Eles olham para baixo e Holly pergunta a
Harry se ele já havia visto pelo menos uma de suas vítimas. Harry responde:
Vítimas? Não seja
melodramático. Olhe para baixo. Veja todas aquelas pessoas. Agora diga-me: você realmente sentiria
qualquer tipo de compaixão caso um daqueles pontos parasse de se mover para
sempre? Se eu oferecesse a você 20 mil
libras para cada ponto que parasse de se mover, será que você, meu velho,
realmente iria me mandar ficar com o dinheiro? Ou você apenas calcularia quantos pontos você se daria ao luxo de
poupar?
A
alusão a como os pilotos de aviões de combate veem o mundo certamente era algo
impossível de não ser imaginado naqueles dias após a guerra. As pessoas eram apenas pontos vistos lá de
cima, coisas tão valiosas quanto as formigas que rotineiramente esmagamos com
nossos pés quando andamos sobre um gramado qualquer.
E
é exatamente assim que o estado nos enxerga. O estado é uma ave predadora constantemente olhando para baixo, e o que
ele vê não são vidas prósperas e preciosas, mas apenas pontos que podem ser
controlados, manipulados, devorados ou liberados para se moverem estritamente
da maneira que ele aprova.
O estado se
imagina o senhor e mestre de todas as coisas abaixo dele; porém, por não possuir
a capacidade de realmente fazer com que coisas bonitas sejam criadas, ele
apenas se concentra em seu poder de destruir, sem nenhuma demonstração de
clemência.
O
grande desafio da liberdade é saber olhar o mundo lá de cima, não como uma ave
predatória, mas sim com a reverência e estupefação que sentimos como
passageiros quando olhamos da janela de um avião. Devemos ver e apreciar a impressionante e
valiosa complexidade do nosso mundo, uma ordem que pode ser observada mas que
jamais pode ser controlada desde o topo.
É
assim que imagino como F.A. Hayek via o mundo quando ele escreveu seu famoso
artigo "O Uso do Conhecimento na
Sociedade", o qual foi publicado durante a guerra, em 1945. Em sua visão, a ciência econômica havia sido
radicalmente mal interpretada e mal explicada. A economia não era algo que servia para explicar como melhor empregar
recursos sociais.
Ao contrário, disse
ele, o problema da economia era descobrir um sistema que fizesse o melhor uso
possível das várias formas de conhecimento que existem na mente de cada
indivíduo. O conhecimento detido por
cada indivíduo, conhecimento acerca do tempo e do espaço que o cerca, escreveu
ele, é totalmente inacessível para os planejadores centrais:
O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica
racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das
circunstâncias nas quais precisamos agir nunca existe de forma concentrada e
integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente
contraditório, distribuído por diversos indivíduos independentes.
O problema econômico da sociedade, portanto,
não é meramente um problema de como alocar "dados" recursos — se por "dados"
entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa
deliberadamente resolver o problema com base nessas informações.
Em vez disso, o problema é como garantir que
qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para
fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, para dizê-lo sucintamente, o problema é o
da utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua
totalidade.
Olhando
de cima, portanto, podemos apenas ver e apreciar as coisas, mas não podemos
realmente apreender e dominar todos os dados que fazem com que a ordem social
se desenvolva da maneira como vemos. Se
não podemos saber completamente o que impulsiona e conduz cada escolha
individual, cada ação humana, então certamente não podemos substituir a vontade
e os planos de cada indivíduo pela vontade de agentes planejadores e esperar
resultados melhores. Isto seria de uma
presunção indescritível.
Tenho
de admitir que demorei anos para ser capaz de compreender totalmente e
valorizar adequadamente esta magistral constatação de Hayek. Mesmo após ler seu artigo mais de 100 vezes,
a essência desta descoberta de Hayek ainda me escapava em alguns detalhes.
Mas
tudo mudou quando fui a São Paulo, Brasil. Lá, vivenciei uma extraordinária experiência que me ajudou a finalmente
cristalizar o raciocínio de Hayek. Fui
ao topo de um prédio alto encravado no meio da cidade. Lá em cima havia um bar muito elegante
chamado Skye, de onde era possível vislumbrar a cidade de todas as direções. Para onde quer que você olhasse, havia prédios por todos os lados. Você podia girar em
círculos e tudo o que você iria ver era a mais pura evidência do trabalho humano em seu constante esforço para criar e sustentar vidas.
Existem
aproximadamente 20 milhões de pessoas em São Paulo. Mas, olhando tudo de cima,
a impressão que se tem é que cinco Nova Yorks foram comprimidas e jogadas
ali. Não parece haver um centro
específico na cidade. As construções se
espalham em um contínuo de tal forma que é impossível para a mente humana
compreender como tudo aquilo pode funcionar. A única coisa que você pode realmente fazer é apenas ficar parado,
admirando em total estupefação toda aquela visão. Foi exatamente isso que eu e meus amigos do
Mises Brasil fizemos.
O
Brasil possui um estado socialista, mas, assim como todos os atuais estados
socialistas, o governo brasileiro pode apenas fingir que está fazendo o que
alega estar fazendo. Em vez de inspirar
coisas novas e permitir a criação de mais coisas maravilhosas, o estado apenas
se intromete e fica no meio do caminho, impedindo ou dificultando
empreendimentos por meio de suas intrusivas regulamentações e sua espoliativa
tributação. Como todos os estados, o
governo brasileiro é apenas um sumidouro de produtividade e de riqueza da
sociedade. Sua contribuição para a
geração de riqueza é nula, para não dizer negativa.
De
alguma maneira, tudo isto se tornou translúcido para mim, como nunca antes, no
momento em que tive esta visão de São Paulo do alto do Skye. É o supra-sumo da arrogância que um grupo de
burocratas queira se pretender capaz de controlar um lugar como este. Os mercados negro e cinza prosperam à luz do
dia. Bens cuja venda não é autorizada
pelo governo são transacionados abertamente, definindo sua própria vida. A espontaneidade prevalece. Toda a cidade é gloriosamente rebelde aos
ditames do estado, e é exatamente isto o que a torna tão sensacional.
Sim,
existe planejamento. Muito
planejamento. Indivíduos planejam suas
vidas. Empresas planejam sua
produção. Consumidores planejam suas
compras. Mas o governo não planeja nada. Ele apenas interfere, vive às expensas da
riqueza alheia e arruma desculpas para justificar tal comportamento parasítico.
É
exatamente como disse Hayek: "Não está em discussão se se deve planejar ou não,
mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma
autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido
entre vários indivíduos."
Enquanto
eu estava no topo daquele prédio, mesmerizado pela visão e tentando imaginar e
compreender toda aquela vastidão de São Paulo, um casal começou a se beijar na
minha frente, bloqueando minha visão. Eles se abraçavam afetuosamente. E demoradamente. Quem eram
aquelas pessoas? Há quanto tempo elas se
conheciam? Quem entre os dois sentia uma
maior afeição pelo outro? A que esta
demonstração pública de afeto levaria? Isso seria algo de apenas uma noite ou geraria laços para toda uma vida?
Eu
não tinha nenhuma ideia das respostas, e jamais sequer sonharia em interferir
naquela relação. Somente aquelas duas
pessoas podem e sabem como moldar suas vidas, aprender com seus erros e tudo
mais. E elas eram apenas duas pessoas
entre os 20 milhões que vivem na cidade. E estes 20 milhões são apenas 10% da população do Brasil. E o Brasil possui apenas 3% de toda a
população do mundo. E cada indivíduo
deste mundo possui uma mente própria e exclusiva. Graças a Deus por isto. E, de alguma forma, tudo funciona.
Ninguém
jamais será capaz de controlar este mundo.