O
artigo a seguir foi extraído do capítulo 10 do livro A Tragédia do
Euro.Quando a crise financeira eclodiu, os governos reagiram
com a típica receita keynesiana: aumento dos gastos e dos déficits. Com o desenrolar dos eventos, a União
Monetária Europeia foi levada ao limiar de sua desintegração. Vamos situar o início de nossa história
alguns meses após o colapso do Lehman Brothers, quando os efeitos da crise
sobre os déficits dos governos começaram a afetar as classificações de risco
dos países.
No princípio, a Grécia era o centro das atenções. Em janeiro de 2009, no mesmo dia em que o
governo grego cedeu à pressão de agricultores grevistas, prometendo a eles
subsídios adicionais de €500
milhões, a agência de classificação de risco S&P reduziu o rating da Grécia para A—. A partir daí, os problemas se agravaram e se espalharam. Ao final de abril de 2009, a Comissão da
União Europeia começou a investigar os déficits descomunais da Espanha, da
Irlanda, da Grécia e da França. Em
outubro, a agência de classificação de risco Fitch também reduziu o rating da Grécia para A—.
Ao final de 2009, vários países europeus reconheceram
terem incorrido em déficits exagerados.
As reações para corrigir estes problemas orçamentários
foram variadas. A Irlanda anunciou um
corte de gastos de 10% do PIB. Já o
governo espanhol não cortou absolutamente nada em seus gastos, assim como a
Grécia.
Ao final de 2009, o novo governo grego anunciou que
seus déficits chegariam ao histórico nível de 12,7% do PIB — mais de três
vezes o valor de 3,7% que havia sido anunciado no início de 2009. No dia 1º de dezembro, os ministros das
finanças da UME concordaram em adotar medidas mais duras com relação ao governo
grego. No dia 8 de dezembro, a Fitch
reduziu a avaliação da Grécia para BBB+.
A S&P fez o mesmo.

Gráfico 1: Déficits em porcentagem do PIB na zona do euro em 2007,
2008 e 2009
Fonte: Eurostat (2010)
A primeira reação do recém-eleito primeiro-ministro
grego, Giorgios Papandreou, foi a de não aumentar as pensões, como havia
prometido, mas sim a de aumentar impostos para reduzir o déficit. As taxas de juros que a Grécia tinha de pagar
sobre os títulos de sua dívida começaram a subir no segundo semestre de 2009, o
que gerou preocupações mais intensas nos mercados. O ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, declarou que a Grécia havia, durante anos, vivido
muito além de sua realidade financeira, e que os alemães não iriam pagar por
isso.
Gráfico 2: Taxa de juros sobre os títulos de
10 anos da Grécia (Agosto de 2009—Julho de 2010)
Fonte: Bloomberg
O mercado começou a ter dúvida sobre a capacidade da
Grécia de pagar suas dívidas. Ademais,
temia-se que o Banco Central Europeu iria parar de financiar o déficit grego
indiretamente. O governo grego, portanto,
teria de dar um calote em suas obrigações.
O BCE já havia reduzido o rating mínimo exigido para suas operações de mercado aberto de A—
para BBB— em resposta à crise financeira.
Supostamente, tal redução seria uma exceção que duraria apenas até o
final de 2010, data em que tal concessão expiraria. Em decorrência de seus problemas
orçamentários, a Grécia estava a ponto de perder o rating mínimo A—. O que aconteceria em 2011 quando o rating da Grécia não mais satisfizesse o
mínimo A—?
No dia 12 de janeiro de 2010, o BCE manifestou dúvidas
quanto aos dados fornecidos pelo governo grego sobre seu déficit. Várias irregularidades haviam tornado
questionável a exatidão das estatísticas gregas. No dia 14 de janeiro, a S&P reduziu o rating de longo prazo da Grécia para A—
e colocou Espanha, Portugal e Irlanda em perspectiva negativa por causa de seus
problemas orçamentários. No mesmo dia, a
Grécia anunciou uma redução de €10,6 bilhões
em seu déficit orçamentário. Esta
redução viria de uma combinação de aumento de impostos (€7 bilhões) e cortes de gastos (€3,6
bilhões). O déficit seria reduzido de
12,7% do PIB para 8,7%. Papandreou
também anunciou um congelamento nos salários dos funcionários públicos, quebrando
assim uma promessa que havia feito antes de sua eleição. No dia 10 de fevereiro, o sindicato dos
funcionários públicos anunciou o início de várias greves.
No dia 15 de janeiro, Jean-Claude Trichet, então
presidente do BCE, ainda mantinha uma retórica em prol de uma política
monetária austera: "Não iremos reduzir a exigência da qualidade de nossos
colaterais em benefício de nenhum país específico. A estrutura de colaterais se
aplica igualmente a todos os países envolvidos". [1] Os agentes de mercado interpretaram esta
declaração como uma promessa de que o BCE não estenderia sua atípica redução de
rating para BBB— apenas para salvar o
governo grego. Seguindo a mesma linha, o
economista-chefe do BCE, Jürgen Stark,
declarou em janeiro que os mercados estavam errados em acreditar que outras
nações-membro iriam socorrer a Grécia.
Ao final de janeiro de 2010, os mercados financeiros
começaram a vender títulos gregos a um ritmo mais rápido — após o Deutsche
Bank ter alertado que um calote de Grécia seria mais desastroso do que os
calotes da Argentina em 2001 e da Rússia em 1998. Com a pressão se intensificando, Papandreou
anunciou medidas adicionais que iriam, de acordo com uma estimativa do banco
HSBC, reduzir o déficit em mais 0,4%.[2] Adicionalmente, Papandreou declarou sua
intenção de reduzir o déficit grego para 3% já em 2012. A comissão da UE apoiou seu plano. O apoio da UE foi significativo: ajudou
Papandreou internamente. Sendo assim, politicamente,
ele agora poderia jogar a culpa na UE e nos especuladores. Ele poderia se apresentar como estando sendo
obrigado pela UE a fazer cortes impopulares no orçamento. E foi isso que ele fez. Ademais, ele declarou que foram os malvados
especuladores que impuseram esta situação sobre a Grécia: "A Grécia está no
centro de um jogo especulativo voltado para a derrubada do euro. É nosso dever patriótico acabar com as
tentativas destas pessoas de empurrar nosso país para a beira do precipício".[3] A Grécia, obviamente, faria sacrifícios para
salvar o euro.
Em fevereiro de 2010, tornou-se pública a informação
de que o banco de investimentos Goldman Sachs havia ajudado o governo grego a
mascarar o real tamanho de seu déficit por meio do uso de derivativos. O governo grego jamais havia cumprido a regra
de Maastricht que exigia que a dívida pública de um país não ultrapassasse 60%
do PIB. Tampouco havia ele cumprido o
limite de 3% para o déficit orçamentário.
Somente por meio de seguidas maquiagens em seus balanços, como deixar de
fora gastos militares ou dívidas relacionadas à saúde, é que a Grécia conseguiu
cumprir formalmente o limite do déficit.
E por apenas um ano. Os
derivativos do Goldman Sachs mascaravam empréstimos como se fossem swaps
cambiais. A Grécia emitia títulos em
moedas estrangeiras. O Goldman vendia os
swaps cambiais da Grécia a taxas de câmbio fictícias. Consequentemente, a Grécia recebia mais euros
do que o valor de mercado das moedas estrangeiras que o país havia recebido com
a venda de títulos. Assim que o título
vencia, o governo grego tinha de quitar o título com euros. O Goldman Sachs recebia uma generosa comissão
por esta negociata que camuflava a taxa de juros.[4]
No dia 16 de fevereiro, o Conselho Para as Questões
Econômicas e Financeiras (EconFin), composto por ministros das finanças da UE,
impôs um plano de ajuste ao governo grego em troca da concessão de um apoio que
não fora especificado. À medida que os
dias foram passando, o governo grego foi ficando nervoso, exigindo um apoio
concreto das outras nações da zona do euro.
Se nenhum apoio fosse oferecido, a Grécia iria ao FMI pedir empréstimos
baratos. O envolvimento do FMI seria
muito constrangedor para o grandioso projeto do euro. Será que a UME precisaria do FMI para
resolver seus problemas? A confiança no
euro reduziu-se ainda mais.
No dia 24 de fevereiro, a S&P declarou que poderia
reduzir o rating da Grécia em mais um
ou dois graus dentro de um mês. Nesta
época, somente a Moody's ainda mantinha um rating
suficiente para manter os títulos gregos na condição de aceitáveis como
colateral sob condições normais.
Ao final de fevereiro, o presidente Papandreou se
encontrou com Josef Ackermann, presidente do Deutsche Bank. Ackermann estava interessado em solucionar o
problema grego. O Deutsche Bank possuía
um volume considerável de títulos gregos em suas carteiras, e um calote poderia
derrubar todo o sistema bancário europeu, inclusive o Deutsche Bank. Após o encontro, Ackermann propôs a Jens
Weidmann, conselheiro de Angela Merkel, que a Alemanha, a França e os bancos
privados emprestassem cada um €7,5 bilhões à Grécia. A proposta foi negada. O governo alemão temia uma queixa de
inconstitucionalidade. Um pacote de
socorro violaria o artigo 125 do Tratado Sobre o Funcionamento da União
Europeia, o qual declara que as nações-membro não são responsáveis pelas
dívidas das outras nações. Ainda mais
importante, a população alemã era contra o pacote. Merkel queria postergar a promulgação de
qualquer solução para somente depois de uma importante eleição no estado da Renânia
do Norte-Vestfália, a qual estava marcada para maio.
No dia 28 de fevereiro, Merkel ainda negava
publicamente a possibilidade de um pacote de socorro alemão para a Grécia:
"Temos um tratado que descarta qualquer possibilidade de socorrer outras
nações". [5] Seus ministros, Brüderle
e Westerwelle, confirmaram este ponto de vista. Ao mesmo tempo, a UE exigia que o governo
grego reduzisse seu déficit em mais 4,8 bilhões de euros. As taxas de juros dos títulos gregos subiram
para 7%.
No dia 3 de março, Papandreou concordou com o exigido
corte extra de 4,8 bilhões no déficit, o que equivalia a 2% do PIB. Ele anunciou um aumento de impostos sobre
combustíveis, tabaco e vendas gerais, bem como um corte de 30% nas três
bonificações salariais anuais pagas a funcionários públicos. Os funcionários públicos gregos levavam uma
vida muito melhor que a de seus colegas europeus. Na Grécia, 12% do PIB foi gasto com o funcionalismo
público em 2009, um número que havia crescido dois pontos percentuais em
relação a 2000, e que também era dois pontos percentuais maior do que a média
da UE. Não obstante, os sindicatos
gregos conclamaram novas greves.
Em troca dos "cortes", Papandreou exigiu
"solidariedade europeia", isto é, dinheiro de outras nações. Os "cortes" gregos deram a Merkel um pouco do
capital político de que ela necessitava para defender o pacote de socorro
perante a população alemã. A situação se
tornava mais premente a cada dia: em maio, vinte bilhões de euro da dívida
grega venceriam, e não estava claro se os mercados iriam refinanciar esta
dívida a taxas aceitáveis.
Nos dias 5 e 7 de março, Papandreou se reuniu com
Sarkozy e Merkel para arregimentar o apoio destes. Ao mesmo tempo, aumentavam os temores de que
as receitas oriundas dos aumentos de impostos na Grécia ficariam bem abaixo das
projeções. A S&P abandonou sua
perspectiva negativa do rating da
Grécia quando se tornou mais claro que a UE finalmente iria intervir em favor
do governo grego. Para evitar pânicos
futuros no mercado, Axel Weber, membro do conselho administrativo do BCE,
passou a defender a institucionalização de ajudas de emergência a países
endividados.
No dia 15 de março, ministros das finanças da zona do
euro se reuniram para discutir um possível pacote de socorro para o governo
grego. Nada ficou decidido. Os ministros apenas reiteraram que os cortes
gregos haviam sido suficientes para cumprir as metas projetadas para 2010. Três dias depois, Merkel confirmou que
qualquer plano de socorro teria de incorporar uma cláusula de expulsão de
países que não cumprissem as regras. E
ela repetiu o mantra de que os investidores não deveriam esperar um pacto de
ajuda para a Grécia. Ao mesmo tempo,
Zapatero e Sarkozy exigiam a implementação de um governo com poderes econômicos
sobre a UE.
No dia 25 de março, o BCE e os países da UME atuaram
em conjunto pela primeira vez: Trichet, contrariando sua declaração de janeiro,
anunciou que as regras de emergência criadas para os colaterais seriam
estendidas até 2011. Os títulos gregos
readquiriram o potencial de servir como colateral. No mesmo dia, as nações da UE concordaram, em
cooperação com o FMI, em fornecer um pacote de socorro para a Grécia. A Alemanha havia exigido o envolvimento do
FMI. Nenhum detalhe sobre o pacote de
socorro foi fornecido e os mercados ficaram no escuro. Embora a população alemã fosse contrária ao pacote
de socorro, a classe política do país se limitava a dar argumentos similares
àqueles utilizados em defesa
da introdução do euro. De acordo com
Daniel Hannan, membro britânico do parlamento europeu, um político alemão
chegou a dizer que a Segunda Guerra Mundial poderia ser reiniciada caso a
Grécia não fosse socorrida.[6]
No dia 11 de abril, dois dias após a Fitch ter
reduzido o rating da Grécia para
BBB—, a taxa de juros sobre os títulos gregos subiu para 8%. Finalmente, o governo alemão concordou em
subsidiar €30 bilhões em empréstimos da UME
para a Grécia, com um adicional de €15
bilhões sendo fornecidos pelo FMI. Os
mercados despencaram. A resistência aos
cortes orçamentários na Grécia aumentou.
Funcionários públicos entraram em greve no dia 22 de
abril. No mesmo dia, a UE anunciou que o
déficit grego em 2009 havia sido ainda maior do que o até então relatado. Em vez de 12,7%, ele fora de 13,6%, com a
dívida total chegando a 115% do PIB. Em
resposta, a Moody's reduziu o rating
da Grécia em um grau, para A3. Papandreou
persistiu na afirmação de que esta revisão dos dados não afetaria seu plano de
reduzir o déficit em 2010 para 8,7%. Os
títulos da Grécia, da Espanha e de Portugal se desvalorizaram (isto é, seus
juros subiram).
No dia seguinte, o governo grego foi forçado a acionar
o pacote de socorro de €45
bilhões, cujos detalhes haviam sido acertados durante os dois dias
anteriores. O governo grego teve acesso
a €30 bilhões de nações da zona do euro
através de uma linha de crédito de três anos a 5%, e a €15
bilhões do FMI a juros mais baixos. A
Grécia não tinha escolha; ela tinha de recorrer a estes empréstimos. No dia 19 de maio, €8,5
bilhões maturaram, e os mercados financeiros provavelmente não iriam
refinanciar esta dívida.
No dia 27 de abril, o Banco Nacional da Grécia
S.A., o maior banco do país, e o EFG Eurobank Ergasias, o
terceiro maior, tiveram ambos os seus status reduzidos à classificação de lixo
pela S&P. No mesmo dia, o rating da Grécia foi também reduzido ao
status de lixo. A S&P também reduziu
o rating de Portugal de A+ para
A—. No dia seguinte, a S&P reduziu a
Espanha de AA+ para AA.
As coisas se aceleraram no começo de maio. Já estava óbvio, àquela altura, que os €45 bilhões de socorro à Grécia não seriam suficientes
para evitar seu calote. No dia 2 de
maio, os ministros da zona do euro concordaram com um novo pacote de socorro
ainda maior, com empréstimos totalizando €110
bilhões a uma taxa de juros de aproximadamente 5%. O segundo pacote de resgate supostamente
deveria sanear o país em três anos. De acordo com o capital que
cada país possui junto ao BCE, 27,92% dos empréstimos viriam da Alemanha.
País
|
Porcentagem
do socorro
|
Alemanha
|
27,92
|
França
|
20,97
|
Itália
|
18,42
|
Espanha
|
12,24
|
Holanda
|
5,88
|
Bélgica
|
3,58
|
Áustria
|
2,86
|
Portugal
|
2,58
|
Finlândia
|
1,85
|
Irlanda
|
1,64
|
Eslováquia
|
1,02
|
Eslovênia
|
0,48
|
Luxemburgo
|
0,26
|
Chipre
|
0,20
|
Malta
|
0,09
|
Tabela 1: Porcentagem do pacote de socorro
por país
Fonte: BCE 2010
Merkel concordou com o pacote, não obstante a
iminência da eleição. O governo grego,
por sua vez, concordou em cortar novamente salários e pensões do funcionalismo
público e em aumentar o imposto sobre vendas para 23%. Aumentaram os temores de que a Espanha também
iria precisar de um socorro.
Uma segunda colaboração entre os ministros da UME e o
BCE ocorreu no mesmo dia. A
independência do BCE começou a evaporar quando ele anunciou que iria abandonar
todas as exigências de rating para os
títulos governamentais da Grécia. O BCE
iria agora aceitar títulos gregos como colateral não importa o quão ruins
fossem. Ao renegar sua conduta anterior
e se tornar um executor de políticas, o BCE perdeu grande parte de sua
credibilidade. O BCE ia se transformando
cada vez mais naquela máquina inflacionista — à serviço da política — que
havia sido almejada pelos políticos franceses e dos países latinos. O índice de ações europeu, o Eurostoxx 50,
imediatamente aumentou 10%.
No dia 4 de maio, o governo grego criou um fundo para
reforçar seu trôpego sistema bancário. O
rumor era o de que a Espanha estava prestes a sofrer um rebaixamento em seu rating, mas tal rumor foi negado pelo
primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero.
Os mercados de ações da Europa despencaram. Atenas caiu 6,7%. Madri, 5,4%.
No dia seguinte, a Moody's rebaixou o rating de Portugal em dois graus, para A—. Manifestantes puseram fogo em um banco em
Atenas, provocando a morte de três pessoas.
Os mercados financeiros entraram em estado de choque.
No dia 6 de maio, Trichet ainda resistia à pressão de
comprar diretamente títulos de governos europeus problemáticos. Axel Weber também se manifestou contrário a
esta opção. O Dow Jones caiu 1.000
pontos durante alguns minutos, mas recuperou metade de suas perdas até o final
do dia. O mesmo ocorreu com o euro.
No dia seguinte, o Eurossistema estava à beira do
colapso. Os juros sobre os títulos
espanhóis, gregos e portugueses aumentaram acentuadamente. Observadores afirmam que a transação com
títulos europeus ficou praticamente paralisada naquela tarde. Nem mesmo os títulos franceses tinham liquidez.[7] Em um
relatório mensal do BCE de junho de 2010, o banco central admitiu a ameaça de
um colapso total nos dias 6 e 7 de maio.
O BCE declarou que o perigo havia sido maior do que após o colapso do
Lehman Brothers em setembro de 2008. Ele
admitiu um aumento dramático na probabilidade de falência de dois ou mais
grandes grupos bancários europeus.[8] Aparentemente, bancos que haviam investido nas
dívidas soberanas dos países do Mediterrâneo estavam tendo severos problemas de
refinanciamento. Os mercados financeiros
secaram.
De acordo com o jornal Welt am
Sonntag, banqueiros alemães receberam telefonemas
de colegas franceses em pânico absoluto pedindo-lhes para pressionar o BCE a
comprar títulos do governo grego.[9] Até mesmo o presidente
Obama ligou para Angela Merkel quando o fluxo de dinheiro dos EUA para a Europa
secou. Dia 7 de maio foi uma
sexta-feira. Políticos e banqueiros
centrais conseguiram agendar uma reunião para o fim de semana e evitar um
colapso total.
Naquele mesmo dia (porém ignorado pelos
mercados), o parlamento alemão aprovou uma lei autorizando empréstimos em prol
do governo grego. No fim de semana, o Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha rejeitou uma petição impetrada por
quatro professores alemães, os mesmos quatro
que haviam tomados medidas judiciais contra a introdução do euro (Karl Albrecht Schachtschneider, Wilhelm Hanke, Wilhelm Nölling e
Joachim Starbatty). Eles
argumentaram que o pacote de socorro violava o artigo 125 do Tratado Sobre o
Funcionamento da UE, o qual declara que nenhum país é responsável pela dívida
das outras nações-membro.
No domingo, a coalizão formada pelo governo alemão
perdeu acentuadamente a eleição no estado da Renânia do Norte-Vestfália. Merkel queria postergar o pacote de socorro à
Grécia para depois da eleição. Porém,
com a aceleração dos eventos, ela sacrificou a vitória para salvar o euro. Ela cancelou suas aparições de campanha para
ir até Bruxelas, onde os ministros das finanças do Conselho Europeu estavam
reunidos.
Sakozy e Berlusconi também acharam por bem participar
desta reunião dos ministros das finanças.
Eles defendiam a ideia de que um novo fundo de resgate para socorrer
mais países seria necessário. Merkel
considerava isto um passo rumo a uma união europeia pautada pela redistribuição
de renda. A comissão da UE iria adquirir
grandes poderes e as nações do sul da Europa iriam se beneficiar dos
empréstimos subsidiados das nações mais ricas.
No início, Merkel resistiu.
Durante um jantar na noite de sexta-feira, Trichet explicou a lúgubre
severidade da situação.
Merkel teve êxito em conseguir adiar a decisão final
até o domingo após a eleição. De maneira
reveladora, no dia 8 de maio ela estava em Moscou para celebrar os 65 anos da
derrota alemã contra a União Soviética. As
negociações foram retomadas na tarde de domingo. Trichet estava novamente presente, ainda que
ele fosse o presidente de um supostamente independente Banco Central Europeu. As autoridades alemãs o rotularam como um mero
apêndice do ministro das finanças da França.
Já o ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, não participou, pois havia sido levado para um
hospital. (A explicação oficial é que
ele teve uma reação alérgica a um remédio).
As negociações foram difíceis.
Até mesmo Obama e Bernanke intervieram e ligaram para Merkel exigindo um
maciço pacote de socorro.
Políticos da Finlândia, da Áustria e da Holanda
ficaram ao lado da Alemanha nas negociações.
Os interesses eram claros.
Governos com déficits e gastos enormes estavam se rebelando contra
nações com déficits menores e governos mais favoráveis a uma política monetária
mais rigorosa — nações estas que eram seus potenciais credores.

Gráfico 3: Dívida
em porcentagem do PIB na zona do euro, 2007, 2008 e 2009
Fonte:
Eurostat (2010)

Gráfico 4: Déficits
em porcentagem do PIB na zona do euro em 2009
Fonte:
Eurostat (2010)
Embora a Grécia fosse relativamente irrelevante
em decorrência de sua pequena economia, devedores maiores e mais relevantes começaram
a apresentar severos problemas em maio. Bancos
sediados na zona do euro haviam emprestado um total de €206 bilhões para Grécia, mas, para a Espanha, este valor
chegava a €727 bilhões. O novo pacote de socorro foi instituído com o
intuito de impedir um calote dos devedores portugueses e espanhóis, algo que
teria afetado enormemente os bancos da Alemanha e especialmente os da França. O governo francês, por isso mesmo, tinha mais
interesse nesse socorro do que o governo alemão.
A exposição direta dos bancos franceses às
dívidas dos governos de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha eram maiores do que
a exposição dos bancos alemães, como pode ser visto na tabela 2.
|
Bancos
franceses
|
Bancos
alemães
|
Espanha
|
$48 bilhões
|
$33 bilhões
|
Grécia
|
$31 bilhões
|
$23 bilhões
|
Portugal
|
$21 bilhões
|
$10 bilhões
|
Irlanda
|
$6 bilhões
|
$1 bilhões
|
Tabela 2: Exposição
dos bancos franceses e alemães à dívida governamental (em 31 de dezembro de
2009)
Fonte: Banco
de Compensações Internacionais 2010.
A dívida total, pública e privada, de
Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha que estava em posse dos bancos franceses ao
final de 2009 era de €493 bilhões. Os bancos alemães tinham quase o mesmo tanto:
€465 bilhões.
A fatia da Espanha era a maior, com €248
bilhões nos bancos franceses e €202 bilhões
nos bancos alemães. Um calote dos bancos
espanhóis ou do governo espanhol teria gerado efeitos catastróficos sobre os
bancos alemães e franceses. Um calote
dos bancos portugueses ou de seu governo poderia, por sua vez, derrubar os
bancos espanhóis, que tinham em sua posse €110
bilhões de dívida portuguesa.[10]
O acordo final, o chamado "pára-quedas de
emergência", concedeu empréstimos de até €750 bilhões para governos em apuros. A Comissão da UE forneceu €60
bilhões para o pacote. Assim que estes
fundos se esgotassem, os países poderiam pegar empréstimos garantidos pelas nações-membro
de até €440 bilhões de euros. As nações-membro
iriam garantir os empréstimos baseando-se em seu capital junto ao BCE. A Alemanha iria garantir até €123 bilhões. O FMI também forneceu empréstimos de até €250
bilhões.
Em troca destas garantias, os governos socialistas de Espanha
e Portugal aceitaram reduzir seus déficits.
O governo espanhol anunciou um corte nos salários dos funcionários públicos
e postergou um aumento nas pensões. O governo
português anunciou um corte nos salários do alto escalão da burocracia federal e
um plano de aumentar impostos. Presumivelmente
pressionados pelo governo alemão, Itália e até mesmo a França também viriam, no
final de maio, a anunciar reduções em seus déficits. A Comissão Europeia avaliou estes cortes e
declarou que eles representavam medidas na direção correta.
De acordo com o jornal espanhol El País,
Sarkozy havia ameaçado romper a aliança franco-germânica caso Merkel não cooperasse
implementando um "pára-quedas" que favorecesse aqueles bancos franceses que
detinham a maior fatia das dívidas do Mediterrâneo. Sem isso, a França sairia totalmente do
euro. A França sair da zona do euro caso
a Alemanha não aquiescesse é algo que pode ser considerado um dos maiores
blefes da história.
A própria Merkel declarou que: "Se o euro fracassar, a
ideia de integração europeia entra em colapso"[11]. Mas este argumento é um puro non sequitur. Naturalmente, é perfeitamente possível haver
fronteiras abertas, livre comércio e uma Europa integrada sem um banco central em comum. Aqui Merkel
mostrou-se ser uma defensora da versão socialista da Europa.
Com o novo "pára-quedas", a zona do euro deixou
transparecer que havia se transformado em uma zona de transferência de renda. Antes do "pára-quedas", a redistribuição era
ocultada pelos complexos mecanismos monetários do Eurossistema. Agora, o rematado e franco apoio fiscal de um
país para o outro havia sido explicitado.
Os pagadores de impostos alemães estavam repentinamente sendo obrigados
a garantir aproximadamente €148
bilhões ou mais de 60% das receitas do governo.
Como tem sido de praxe desde o fim da Primeira Guerra Mundial, os alemães
tinham a obrigação de contribuir mas não tinham o direito de opinar.[12] Ainda mais
impressionante: foi apenas em setembro de 2010 que a última dívida gerada pelas
reparações da Primeira Guerra Mundial foram quitadas.
Durante o desenrolar destes dias importantes, os
banqueiros centrais europeus cooperaram estreitamente com os políticos. Antes de os mercados abrirem na manhã da
segunda-feira, dia 10 de maio, o BCE anunciou que iria comprar títulos
governamentais no mercado, desta forma ultrapassando um limite que muitos imaginavam
que ele jamais ultrapassaria. A decisão
de comprar títulos governamentais não foi unânime. Os ex-membros do Bundesbank, Axel Weber e Jürgen Stark, opuseram-se à decisão e
receberam o apoio de Nout Wellink, presidente
do De Nederlandsche Bank (Banco Central da Holanda),
tradicional aliado do Bundesbank.
Trichet, não obstante ter negado na semana anterior que incorreria em
tal medida, continuou afirmando que o BCE não estava sendo pressionado e
continuava independente.
O BCE alegou que tal medida não seria
inflacionária, pois ele iria esterilizar todo o aumento que ocorreria na base
monetária aceitando depósitos a prazo dos bancos no BCE. O BCE iria, com isso, se comportar como um
típico banco comercial se comporta: pegando empréstimos de curto prazo e
fazendo empréstimos de longo prazo. Para
os bancos comerciais, tal comportamento é bastante arriscado, uma vez que sua
dívida de curto prazo (os depósitos dos correntistas) deve ser continuamente
rolada para sustentar os empréstimos de longo prazo. Para o BCE, tal risco consiste em não
conseguir atrair depósitos suficientes, o que resultaria em uma expansão monetária
inflacionária. É claro, o BCE poderia
tentar atrair depósitos elevando as taxas de juros pagas sobre eles; porém, estes
juros maiores iriam complicar ainda mais a situação de governos e empresas já
altamente endividados.
A revista alemã Spiegel detalhou, mais no final de maio, todas as irritações que
acometeram parte das autoridades do Bundesbank.[13] Por causa do "pára-quedas" de €750 bilhões, alguns
deles não viam qualquer motivo para a compra de títulos do governo pelo BCE (€40 bilhões até aquele
momento). Eles suspeitavam de uma
conspiração. Os bancos alemães haviam
prometido ao ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, que iriam manter os títulos gregos até
2013. Já os bancos e as seguradoras da
França, tendo entre €70 e €80 bilhões em títulos gregos em seus livros
contábeis, exploraram a ocasião para vender títulos dos governos da Grécia, da
Espanha e de Portugal, aproveitando que as compras do BCE comandado por Trichet
estavam elevando os preços destes títulos.
O resultado desta ação coordenada entre o
governo da União Monetária Europeia e o Banco Central Europeu foi um genuíno
golpe de estado. Os princípios originalmente
estabelecidos para a união econômica e monetária foram abolidos. Uma nova instituição com o nome de Fundo
Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), com sede em Luxemburgo,
adquiriu o poder de, quando necessário, criar e vender títulos próprios para
socorrer nações-membro. Esta nova
instituição poderia operar independentemente.
As nações-membro se envolveriam apenas no sentido de que seriam elas que
iriam garantir as dívidas emitidas pelo FEEF.
Tendo a sua própria burocracia, é muito provável que FEEF irá
continuamente tentar aumentar seu poder e pressionar por uma maior
centralização. O FEEF gera e fornece
incentivos para um endividamento excessivo dos países e para a criação dos
próprios pacotes de socorro que ele supostamente foi criado para minorar.
Ademais, se o FEEF quiser emitir um volume
maior de dívida do que o que foi originalmente acordado, ele necessita apenas
da aprovação dos ministros das finanças da zona do euro. Tal aumento de poder não precisa ser aprovado
em parlamento. Este decreto
plenipotenciário promulgado no dia 9 de maio alterou a estrutura institucional
da UME para sempre. Aquilo que havia
sido originalmente imaginado pelos países do norte como sendo uma união de
estabilidade foi transformada em uma união de transferências explícitas de
renda.
Como consequência de ambas estas
intervenções fiscais e monetárias em prol de governos problemáticos e endividados,
as bolsas de valores ao redor do mundo dispararam. O Eurostoxx 50 aumentou 10,4%. Títulos espanhóis, gregos, portugueses e
italianos subiram (juros caíram), ao passo que os alemães caíram (juros
subiram). O governo alemão, na prática,
havia efetivamente garantido as dívidas dos países latinos.
Nas semanas seguintes, os líderes europeus
tentaram remodelar o Pacto
de Estabilidade e Crescimento (PEC).
O PEC estipulava penalidades de até 0,5% do PIB para aqueles países que
não ajustassem seus orçamentos em conformidade com o déficit máximo permitido
de 3% do PIB. No entanto, apesar de
várias e seguidas violações, nenhum país foi penalizado durante os 11 anos de
vigência do euro. Em 2005, após três
anos de fracassadas tentativas de manterem seus orçamentos dentro deste limite,
os governos da França e da Alemanha se juntaram e trabalharam em conjunto para
diluir as regras.
Agora, porém, novas penalizações estavam
sendo discutidas: sanções e cortes nos fundos de auxílio e desenvolvimento para
o país que excedesse o marco de 3% no seu déficit. Em junho, Merkel propôs também a remoção no
direito a voto na UE destes países infratores, mas sua proposta não foi aceita. Outra iniciativa que não foi adiante foi a
proposta feita pela comissão da UE de uma maior coordenação entre os planos
orçamentários de cada país antes de eles serem votados em seus respectivos parlamentos
nacionais. Alemanha, França e Espanha se
opuseram a este plano, pois ele reduziria sua soberania.
Após a aparente tranquilização dos
mercados, a Espanha perdeu seu grau de crédito AAA na Fitch no dia 28 de
maio. Em junho, a Grécia acelerou seu
processo de privatização, vendendo participações em empresas públicas. O seguro contra o calote de dívidas soberanas
aumentou até mesmo para a Alemanha, a qual teve também de anunciar medidas
próprias para reduzir seu déficit de €80 bilhões até 2014.
Enquanto isso, os problemas do sistema
bancário só aumentavam. Os preços dos
títulos governamentais em suas carteiras estavam caindo. Os bancos se encontravam em meio a um grande
dilema. Vender os títulos do governo em
sua posse iria não apenas revelar as perdas contábeis do setor, como também tal
ato iria reduzir a confiança nos governos.
O sistema bancário e os governos estavam mais coligados do que jamais
estiveram. O calote de um iria gerar
calotes no outro. Se a Grécia desse o
calote em suas obrigações, os bancos que tivessem títulos gregos em seus livros
contábeis poderiam se tornar insolventes.
Estes bancos insolventes, por sua vez, por operarem em um sistema de
reservas fracionárias, poderiam desencadear o colapso de outros bancos, ou
forçar seus respectivos governos a lhes concederem pacotes de socorro, o que
levaria tais governos ao calote também.
Se, por outro lado, os bancos tivessem prejuízos e fossem à falência,
eles provavelmente induziriam a intervenção de seus governos para salvar o
sistema bancário nacional. Este socorro
implicaria mais dívida governamental, uma aceleração da crise da dívida
soberana, e possivelmente a dívida sendo levada para um nível além do
sustentável. Um pânico nos mercados da
dívida soberana e seguidos calotes governamentais poderiam ser as consequências.
Em junho, a Espanha ganhou a atenção do mercado. Um calote parcial da Grécia ou uma
reestruturação de sua dívida já era algo presumido e descontado pelos mercados. Já um calote espanhol, no entanto, seria um
problema muito maior. As notícias ruins
iam se avolumando. Bancos espanhóis,
principalmente o Cajas, não mais estavam conseguindo se refinanciar no mercado
interbancário, e se mantinham operantes unicamente por causa de empréstimos do
BCE. Sua dependência em relação aos
empréstimos do BCE havia aumentado para um volume recorde de €86 bilhões em maio. Difundiam-se os rumores de
que o governo espanhol estava prestes a recorrer ao fundo de socorro da
UE. Mas isso foi prontamente negado
pelas autoridades espanholas.
No dia 14 de junho, a Moody's rebaixou os
títulos do governo da Grécia para o status de lixo. Os bancos gregos estavam perdendo não apenas
suas linhas de crédito junto a outros bancos, como também estavam perdendo
vários depósitos bancários, os quais haviam encolhido 7% em um ano à medida que
os gregos iam retirando seus fundos do seu sistema bancário e transferindo-os
para bancos de outros países ou até mesmo preferindo estocar o dinheiro em
casa. [Ficou famoso o caso de um
aposentado da ilha de Creta que, em pânico com a hipótese de um calote do
governo, retirou toda a sua poupança do banco e guardou todo o dinheiro dentro
da parede de tijolos da sua casa. Os
ratos devoraram tudo, dezenas de milhares de euros.]
Os bancos gregos estavam recebendo €85 bilhões em empréstimos do BCE e
fornecendo majoritariamente títulos do governo grego como colateral.[14] Ao mesmo tempo, o BCE seguiu comprando títulos
governamentais, os quais já totalizavam €47 bilhões.
As coisas se acalmaram um pouco em julho; mas houve
também algumas notícias ruins. O governo
grego cancelou as emissões programadas de títulos de dozes meses, passando a
confiar apenas em títulos de curto prazo (vinte e seis semanas) e em fundos de
resgate. As greves no país não acabaram,
o que prejudicou a indústria do turismo.
No dia 13 de julho, a Moody's rebaixou o rating de Portugal em dois graus: para A1. Por outro lado, houve uma série de notícias
alvissareiras: o anúncio de um teste de estresse dos bancos europeus acalmou os
mercados, que estavam na expectativa de transparência e de uma solução para os
problemas dos bancos; o BCE continuou comprando títulos governamentais e expressou
preocupação quanto a 'insuficientes medidas de socorro aos países deficitários';
a Espanha conseguiu refinanciar um volume significativo de sua dívida no
mercado; o governo grego aprovou a alteração na idade de aposentadoria para 65
anos; e Eslováquia, o último país que ainda resistia ao pára-quedas de €750
bilhões, finalmente aprovou o plano.
Eis um diagrama da taxa de câmbio do euro em relação
ao dólar ao longo dessa nossa história.

Gráfico 5: taxa de
câmbio Euro/dollar
Fonte: ECB (2010)
Ao mesmo tempo, a depreciação do euro é uma boa
ilustração da importância da qualidade de uma moeda.[15] A quantidade de euro não se alterou
significativamente em relação ao dólar durantes estes meses. Mas sua qualidade se deteriorou
substancialmente.
A qualidade de uma moeda é sua capacidade de cumprir
as funções básicas do dinheiro, isto é, de servir como um bom meio de troca,
uma reserva de valor e uma unidade de conta.
Fatores importantes para a qualidade de uma moeda são o arranjo
institucional do banco central, sua equipe administrativa e seus ativos, entre
outras coisas. Os ativos de um banco
central são importantes porque são eles que lastreiam seu passivo — isto é, a
moeda — e podem ser utilizados para defender a moeda internamente,
externamente ou em uma reforma monetária.[16]
Durante a primeira metade de 2010, a capacidade do
euro de servir como reserva de valor se tornou cada vez mais duvidosa. Com efeito, não estaca claro se o euro sequer
sobreviveria à crise da dívida soberana.
A confiança na capacidade do euro de servir como reserva de valor foi
abalada. Em específico, a credibilidade
do BCE reduziu-se substancialmente. Trichet
havia negado que iria aplicar regras excepcionais para a aceitação de colaterais
de países, ou que o BCE iria comprar diretamente títulos dos governos. Para ambos os casos, ele quebrou sua
promessa. Isso alterou drasticamente a percepção
do mercado quanto à firmeza do BCE.
Na ocasião do lançamento do euro, a pergunta era se o
euro seria uma moeda de estilo germânica ou uma moeda de estilo latino. O BCE iria operar de acordo com a tradição do
Bundesbank ou com a tradição dos bancos centrais da Europa mediterrânea? Os eventos do primeiro semestre de 2010
indicavam cada vez mais claramente a segunda opção. O BCE não estava primordialmente preocupado
com a estabilidade do valor do euro e não oferecia resistência a interesses políticos;
antes, ele era um servo leal das politicagens em prol de uma união pautada pela
transferência de renda. A união monetária
havia se transformado em uma união cuja política monetária servia essencialmente
para fazer uma transferência de riqueza dentro da Europa.
Não apenas Trichet e sua quebra de promessa diminuíram
a qualidade do euro, como ele também ultrapassou os limites aos olhos de muitos
ao começar a comprar diretamente títulos governamentais (muito embora, em
termos econômicos, não haja uma diferença substancial entre comprar títulos
governamentais e aceitar títulos governamentais como colateral em operações de
empréstimos).
Outro fator que pesou na qualidade do euro foi o fato
de que ex-autoridades do Bundesbank perderam influência no conselho do
BCE. Banqueiros centrais latinos estavam
dominando a instituição. Axel Weber, da
Alemanha, protestou contra a decisão do BCE de comprar títulos governamentais,
mas foi em vão.
Além da mudança de percepção do BCE, que passou a ser
visto como um banco central mais inflacionista, outro fator afetou a qualidade
do euro negativamente: o afrouxamento qualitativo.[17] O afrouxamento qualitativo descreve uma
política monetária utilizada por bancos centrais que leva a uma redução da
qualidade média dos ativos que estão lastreando a base monetária (isto é,
lastreando o passivo do banco central).
Ao comprar títulos governamentais de países problemáticos, a qualidade
média dos ativos lastreando o euro foi reduzida.
Faz uma enorme diferença se, para €1.000 emitidos pelo
BCE (no lado dos passivos), ele mantém, no lado dos ativos, €1.000 em ouro, €1.000
em títulos do governo alemão, ou €1.000 em títulos do governo grego. Estes ativos possuem qualidade e liquidez
distintas, afetando a qualidade do euro.
No final, o balancete do BCE foi acumulando um volume
crescente de títulos de governos problemáticos, os quais o BCE havia comprado
do sistema bancário. O BCE utilizou este
afrouxamento qualitativo para dar sustento ao sistema bancário, absorvendo seus
ativos ruins. Como consequência, a
qualidade do euro foi reduzida. Um
calote da Grécia ou de outros países iria, como consequência, implicar enormes
perdas para o BCE. Estas iriam diminuir
ainda mais a confiança no euro, podendo fazer com que uma recapitalização fosse
necessária.[18]
Ao mesmo tempo, a condição econômica dos governos e a
qualidade de seus títulos utilizados como colateral para operações de
empréstimos se deterioraram. Se um banco
desse o calote em seus empréstimos contraídos junto ao BCE, o BCE ficaria com
colaterais cujo valor e qualidade estariam agora deteriorados. O euro somente se estabilizou em julho,
quando o governo espanhol viu que seria capaz de se refinanciar nos mercados, a
indústria alemã divulgou excelentes resultados, e a recuperação dos EUA se
mostrou mais lenta do que o esperado.
Uma ajuda adicional foi fornecida por um teste de
estresse do sistema bancário europeu.
Por meio de uma simulação, o teste analisou como os bancos europeus
resistiriam a um calote parcial da dívida soberana. Suposições irrealistas foram escolhidas para
gerar o resultado desejado: a maioria dos bancos foi aprovada no teste — um
importante golpe publicitário. Os testes
de estresse abordaram somente as carteiras de valores mobiliários negociáveis
dos bancos. Fez-se a suposição de que os
títulos não sofreriam calotes, e, portanto, não havia necessidade de considerar
nenhum impacto nos registros contábeis dos bancos que mantivessem tais títulos até
sua maturidade. Além do mais, os testes
supuseram perdas muito baixas, tais como uma redução de meros 23% para os
títulos gregos. Mais ainda, não se levou
em conta a interconectividade de eventos.
Se a Grécia desse o calote, isto poderia desencadear um calote de
Portugal e depois da Espanha e assim por diante. A suposição de que a redução poderia ser
contida a 23% nos títulos gregos era altamente irrealista. No que mais, o teste de estresse não levou em
consideração eventuais perdas com o calote de instituições financeiras ou
perdas sofridas em outras classes de ativos, como hipotecas. Por último mas não menos importante, o teste
foi apenas sobre solvência, e não sobre liquidez. Se alguns bancos possuem maturações
descompassadas, isto é, se eles tomaram empréstimos a curto prazo e emprestaram
a longo prazo, eles têm de refinanciar estas dívidas de curto prazo. Se não houver poupança suficiente disponível
ou se ninguém estiver disposto a refinanciá-los, o resultado será a
iliquidez. A iliquidez pode, então,
desencadear problemas de solvência. O
grau de maturação descompassada e o perigo de iliquidez não foram considerados
nos testes. Assim, as suposições foram
bastante restritas e pareciam ter sido escolhidas para que se obtivesse o
resultado desejado: todos os bancos estão sólidos, exceto aqueles que todo
mundo já sabia de antemão estarem insolúveis.
Curiosamente, todos os bancos irlandeses que alguns meses mais tarde
tiveram de ser socorridos pelo governo irlandês foram aprovados no teste. No entanto, até aquele momento, um colapso
total do sistema havia sido evitado e o euro recuperou parte de suas perdas
durante o início do segundo semestre.
Irlanda
A crise da dívida soberana voltou com força total após
as férias de verão na Europa. No dia 25
de agosto, a Irlanda foi rebaixada pela S&P para AA—, o qual era ainda um
grau melhor do que a Itália. A S&P
esperava que a dívida da Irlanda subisse para 113% do PIB em 2012. A estimativa para a recapitalização do
sistema bancário foi elevada de €35 bilhões para €59 bilhões. Em setembro, a pressão sobre os juros dos
títulos dos países periféricos continuou a se intensificar em resposta aos
problemas do Anglo Irish Bank e aos custos de sua recapitalização que recairiam
sobre o governo irlandês.
Por volta da mesma época, foram divulgados plenos do
governo alemão voltados para fortalecer as sanções do PEC. Schäuble sugeriu a retenção dos subsídios da UE
para a infraestrutura dos países que violassem o PEC e a redução dos seus
direitos de voto. O governo espanhol
protestou contra tal reforma. A luta
entre os governos mais fiscalmente responsáveis e os menos continuou.
O sistema bancário europeu voltou novamente para a
beira do precipício em meados de setembro de 2010, quando os investidores se
tornaram temerosos de que a Irlanda não conseguiria fazer a recapitalização de
seu sistema bancário. No dia 17 de
setembro, o custo de um seguro contra a dívida irlandesa atingiu níveis recordes
e a bolsa de valores do país despencou. O
pânico só foi contido quando o BCE comprou títulos irlandeses, sinalizando que
estava disposto a dar apoio ao governo irlandês da mesma maneira que havia
feito com a Grécia e com outros governos periféricos. Ao contrário do que havia ocorrido no
primeiro semestre, a crise agora havia sido contida porque os mercados sabiam que
BCE estava ali pronto para comprar todos os títulos necessários, e estava
acompanhado por um fundo de resgate de €750 bilhões.
Tendo vários títulos dos países periféricos em seu
balancete, o BCE continuou perdendo sua independência. O BCE tinha agora de se esforçar para impedir
que tais títulos percam valor, e, para fazer isso, teve de dar ainda mais suporte
a estes países. O BCE se tornou refém de
políticos irresponsáveis em decorrência de ter ajudado a pagar as contas deles. Como consequência de iminentes prejuízos resultantes
de suas compras de títulos, em dezembro de 2010 o BCE recebeu uma injeção de
capital de €5 bilhões. Tal aumento de
capital reduziu os lucros que são repassados aos governos da UME.
Após as pressões terem se reduzido em decorrência das
compras de títulos pelo BCE, uma reunião de cúpula em Bruxelas no dia 29 de
outubro demonstrou mais uma vez o poder do governo alemão resultante de suas
garantias dadas às dívidas dos governos periféricos. O fundo de resgate tinha uma duração limitada
a três anos. Ao final de outubro, a
chanceler alemã Angela Merkel deixou claro que o prazo seria ampliado somente
se houvesse uma reforma que fizesse com que todos os investidores privados detentores
de títulos governamentais também participassem dos custos de futuros pacotes de
socorro. Em outras palavras, a Alemanha ameaçou
retirar parte da explícita garantia de socorro que havia prometido aos agentes
privados que investiam em títulos da dívida dos governos. Ou seja, após 2013, os investidores poderiam
sofrer prejuízos em qualquer eventual pacote de socorro. Como consequência desta manobra, os
investidores começaram a vender títulos dos governos dos PIIGS. As taxas de juros subiram.
A atenção do mercado voltou-se para a Irlanda novamente. O governo irlandês teria, para 2010, um déficit
estimado em inacreditáveis 32,5% do PIB, e a dívida total do governo já estava
em 80% do PIB em decorrência de seguidos aumentos de gastos para sustentar seu
insolvente setor bancário.
Embora seu déficit seja gigante, os problemas
irlandeses são um tanto distintos dos problemas fiscais dos outros governos dos
PIIGS. Nestes, os altos déficits públicos
são estruturais, isto é, advêm de insustentáveis gastos assistencialistas e de um
mercado de fatores de produção (especialmente o custo da mão-de-obra) pouco
competitivo, engessado por leis trabalhistas rigorosas. Os governos, mais proeminentemente o da Grécia, utilizaram-se de
seguidos aumentos nos gastos públicos — e, consequentemente, no déficit público
— para aumentar artificialmente o padrão de vida de sua população. Os governos dos PIIGS incorreram em déficits
para financiar o seguro-desemprego, os funcionários públicos, e os
pensionistas; toda essa gastança serviu para sustentar seus inflexíveis
mercados de trabalho.
Na Irlanda, os problemas são de outra natureza. Embora a Irlanda também tivesse um estado
assistencialista grande e custoso, não é exagero dizer que, de certa forma, a
Irlanda era competitiva até demais. A Irlanda possui a menor alíquota de
imposto de renda de pessoa jurídica em toda a União Econômica e Monetária
Européia, de meros 12,5%. A carga tributária atraiu bancos de todo o
mundo para a ilha, onde eles expandiram seus negócios. Como consequência,
o setor bancário da Irlanda expandiu-se substancialmente. Durante os anos
de bonança, os bancos auferiram enormes lucros em decorrência do privilégio de
poderem expandir o crédito através de suas reservas fracionárias, além de
contarem com o implícito apoio do governo, que garantia socorro em caso de
problemas. Como resultado da expansão do crédito, uma bolha imobiliária
irlandesa foi criada. E seu subsequente estouro provocou substanciais
prejuízos e até mesmo a insolvência de vários bancos irlandeses.
Ao passo que os lucros bancários durante a bonança
eram privados, seus prejuízos foram socializados no dia 30 de setembro de 2008,
quando o governo irlandês deu garantias a todos os passivos bancários. No
final de 2010, a Irlanda injetou aproximadamente €50
bilhões de euros em seu sistema bancário. Os problemas
irlandeses foram criados não por um excessivo estado assistencialista, mas sim
pela socialização dos prejuízos de um privilegiado sistema bancário.
O socorro irlandês custou €85
bilhões de euros a uma subsidiada taxa de juros de 5,8%. Parte
disso poderia ser utilizada para criar um fundo para
o sistema bancário irlandês. O socorro fez com que o cidadão irlandês,
por meio de seus impostos, fosse o responsável por pagar por empréstimos que
serviram para cobrir os prejuízos dos bancos. A população irlandesa,
obviamente, se opôs a isso. Os irlandeses entenderam que o dinheiro do
resgate servirá principalmente para sustentar não o padrão de vida dos
funcionários públicos, dos desempregados ou dos pensionistas — como no caso da
Grécia —, mas sim para sustentar o padrão de vida dos banqueiros.
Devido à resistência, o governo
irlandês decidiu adiar as eleições gerais para somente depois que o orçamento
já tivesse sido aprovado. O orçamento incluía um aumento no imposto sobre
vendas, de 21 para 23%. Efetivamente, a população irlandesa foi obrigada
a assumir as dívidas dos bancos, tendo de quitá-las ao longo dos anos vindouros.
Nenhum voto democrático sobre a questão constou nas cédulas, pois os irlandeses
certamente iriam votar contra.
Por que os governos da Zona do Euro
pressionaram a Irlanda para pedir o socorro?
Primeiro, os juros sobre os títulos
dos PIIGS estavam aumentando. Após o anúncio dos planos de reforma da
chanceler alemã Merkel, os investidores começaram a temer que teriam prejuízos
com esses títulos. Os governos da zona do euro acreditavam que, ao
socorrerem a Irlanda e mostrarem determinação, eles retirariam a pressão sobre
Portugal. Portugal — com problemas estruturais similares ao da Grécia —
é uma peça-chave porque os bancos espanhóis investiram grandes somas em
Portugal. Se Portugal caísse, o sistema bancário espanhol cairia
junto. Se a situação chegasse a esse ponto, o fundo de resgate já estaria
exaurido e a situação, incontrolável. Com o intuito de interromper essa
reação em cadeia, a Irlanda foi pressionada a aceitar o socorro.
Segundo, era importante socorrer os
bancos irlandeses porque os bancos ingleses, franceses e alemães haviam
investido somas vultosas na Irlanda. Os prejuízos irlandeses poderiam
destruir o capital dos bancos europeus e derrubar todo o sistema bancário
europeu — e, por conseguinte, seus governos.
Porém, como o governo irlandês poderia
ser "convencido" a aceitar o socorro, mesmo sabendo que a população
irlandesa era radicalmente contra? Por que o governo irlandês iria pedir
socorro mesmo tendo anunciado ter fundos suficientes para até
meados de 2011? Havia dois instrumentos com os quais pressionar o
governo irlandês.
O primeiro é o financiamento que os
bancos irlandeses recebem do Banco Central Europeu (BCE).
Desde a crise financeira, os bancos irlandeses passaram a depender de
empréstimos feitos pelo BCE. Sem esses empréstimos, os bancos irlandeses
iriam à falência, o que implicaria tremendas perdas para o governo irlandês, o
qual sempre garantiu os empréstimos de seus bancos. Com efeito, Trichet mencionou —
durante os dias em que o governo irlandês ainda resistia a um socorro — que o
BCE não estava disposto a ficar estendendo para sempre os empréstimos
emergenciais aos bancos irlandeses.
O segundo instrumento foi a ameaça
alemã de retirar todas as suas garantias. Se a Alemanha retirar suas
garantias para governos da zona do euro excessivamente endividados, estes
governos certamente irão à bancarrota em decorrência do inevitável aumento que
haverá nos juros dos títulos de sua dívida. Desta forma, a Alemanha pode
pressionar países periféricos a fazer reformas ou aceitar pacotes de socorro.
O socorro irlandês não conseguiu
conter a reação em cadeia. Os juros dos títulos portugueses e espanhóis
continuaram subindo. Quando alguém é socorrido, um outro alguém tem de
pagar a conta. Os governos da zona do euro hoje têm de pagar juros maiores
sobre suas próprias dívidas em decorrência do fardo adicional causado pelos
empréstimos à Irlanda. Com efeito, até mesmo os juros sobre os títulos do governo
alemão aumentaram após o socorro.
O socorro irlandês fortaleceu a tendência
rumo à centralização do poder na União Européia. Os políticos europeus já
determinam, indiretamente, qual deve ser o orçamento irlandês. Por
exemplo, eles repetidamente deram ordens ao governo irlandês para aumentar
impostos, como o imposto sobre vendas. Eles também vêm colocando enorme
pressão sobre o governo irlandês para que ele abandone sua política de baixos
impostos sobre pessoa jurídica, política essa que vários políticos europeus
classificam como sendo "dumping fiscal". Nesse ponto, pelo
menos, o governo irlandês vem resistindo.
Axel
Weber
Os dois mais importantes acontecimentos do
primeiro semestre de 2011 foram a ideia de Merkel em estabelecer um Pacto pela
Competitividade em troca de uma ampliação do fundo de resgate e a renúncia de
Axel Weber como candidato à presidência do Banco Central Europeu. Em fevereiro, Axel Weber anunciou que iria
deixar a presidência do Bundesbank no dia 30 de abril, atitude esta que o
descartaria como próximo presidente do BCE.
Muitas pessoas consideravam que Weber, o conservador presidente do
Bundesbank, seria a próxima escolha para a presidência do BCE, e depositaram muita
fé nele. Por que ele renunciou? Weber havia criticado as políticas do BCE
várias vezes. Começando por sua crítica
ao afrouxamento quantitativo do BCE, ele seguidamente criticou as compras de
títulos governamentais com o intuito de ajudar governos insolventes. Weber sempre defendeu uma política monetária
mais restritiva, mas nunca encontrou ressonância em suas opiniões. Sua candidatura nunca foi defendida vigorosamente por Merkel, que queria fazer
concessões políticas a Sarkozy, forte oponente de Weber.
A mais provável explicação para a saída de
Weber é que ele temia a inflação e não queria ser o responsável por monstruosos
pacotes de socorro e a alta inflação de preços que isto iria gerar. O próprio Weber falou sobre a "falta de aceitação" para suas visões anti-inflacionárias como
motivo de sua saída. É bem possível que
Weber tenha sido pressionado a renunciar.
O Conselho Europeu (ministros) decide por meio de voto majoritário quem
será o próximo presidente do BCE. França
e Itália podem impedir com seus votos qualquer candidato. Sendo assim, é que possível que Weber tenha
sido convencido a renunciar "voluntariamente" para evitar demonstrações de
exibicionismo do Conselho.[19]
A política monetária europeia não mais
é conduzida pelo Bundesbank. Os
seguidores desta tradição são simplesmente derrotados pela maioria dos votos de
seus oponentes. Assim, o ex-ministro das
finanças da Alemanha, Peer
Steinbrück, disse que não queria se tornar presidente do BCE quando seu
nome foi sugerido como candidato. Sua
explicação foi reveladora. Ele declarou
que estaria em minoria, dado que suas visões políticas eram similares às de
Weber.
O
Pacto pela Competitividade e a ampliação do fundo de resgate
O Pacto pela Competitividade (mais
tarde renomeado de pacto euro-mais) pode se tornar simbólico em decorrência do
épico fracasso da barganha de Merkel. Os
eventos de maio de 2010 geraram um fundo de resgate de €750
bilhões, tendo a Alemanha e outros países solventes como os principais
financiadores. Ainda assim, o fundo de
resgate estava limitado a três anos, o que significa que, em 2013, a Alemanha
não mais teria de socorrer governos periféricos; uma importante carta na manga.
Merkel, no entanto, utilizou esta
carta na manga para exigir sanções automáticas dentro de um PEC alterado, a
perda de direito a voto para países que o violassem o PEC e perdas para
investidores privados em processos de reestruturação de dívidas públicas. No dia 27 de outubro de 2010, Merkel ainda
pronunciava as seguintes palavras a respeito do fundo de resgate: "Ele [o
fundo] termina em2013. Isso é o que
queríamos e foi isso que decretamos. Não
pode haver e não haverá uma simples ampliação do fundo, pois ele não serve como
instrumento de longo prazo, pois ele envia aos mercados e aos governos das
nações-membro sinais distorcidos, além de gerar expectativas perigosas. Ele gera a expectativa de que a Alemanha e
outras nações-membro — e, desta forma, os contribuintes destes países em caso
de crise — irão de alguma forma substituir e assumir os riscos dos
investidores."[20]
Curiosamente, e apesar destas
palavras, no dia
16 de dezembro, o Conselho Europeu concordou em tornar o fundo de resgate
permanente. Isto representou uma grande
derrota para a posição alemã, que sempre insistiu e sustentou que o fundo
duraria somente até 2013.
Em troca da ampliação do fundo de
resgate, Merkel insistiu em um "pacto
pela competitividade". Sua proposta
inicial incluía a harmonização fiscal (com um determinado intervalo de variação
para as alíquotas de impostos), a harmonização da idade de aposentadoria (70
anos) e de configurações salariais (eliminando a indexação de salários pela
inflação de preços), limites para os déficits e para a dívida pública, um freio
ao endividamento (similar ao alemão), um controle orçamentário de cada país
gerenciado por Bruxelas, e sanções para países que não cumprirem estas
regras. Embora algumas medidas apontem
para a direção correta, como a redução da previdência pública, salários não
indexados pela inflação e controle de déficits, o plano estabelece uma perigosa
centralização. Sarkozy deu apoio a
Merkel, uma vez que o plano dela representava um passo rumo a um governo
centralizado que os franceses sempre defenderam. Ademais, dentro do pequeno grupo do euro, em
contraposição ao EU 27, a França e seus aliados tinham mais peso contra a
Alemanha. Trichet considerava a criação
dos Estados
Unidos da Europa uma possibilidade, a qual ele considerava ser "nosso
projeto histórico".
Tais eventos representaram uma
acachapante derrota para os pagadores de impostos alemães. Não apenas eles foram obrigados a financiar
um permanente fundo de resgate, como o governo francês também obteve sua
eternamente desejada centralização governamental. Ainda que no início possa haver uma forte
influência alemã, no longo prazo tal influência será reduzida, como ocorreu com
o BCE, onde os votos da Alemanha são facilmente sobrepujados. Ao mesmo tempo, Merkel abriu mão de sua exigência
de uma participação automática de investidores privados nos pacotes de
socorro.
No curto prazo, é possível encontrar
alguns aspectos positivos na estipulação das políticas fiscais por Bruxelas ou
indiretamente pela Alemanha. Quando a
Alemanha ou Bruxelas diz à Espanha, à Grécia ou à Irlanda para reduzirem seus
déficits ou privatizarem suas previdências, o resultado para as pessoas que
vivem nestes países pode ser uma redução no tamanho do governo no curto
prazo. Porém, tal centralização de poder
na UE irá provavelmente se comprovar desastrosa para a liberdade no longo
prazo. Um fator que frequentemente
dificulta as tentativas dos governos de aumentar seus poderes via aumento de
impostos ou regulamentações é a concorrência de outros governos. Se os impostos se tornam demasiados altos em
um país, os agentes econômicos irão procurar refúgio em outros países que
tenham uma carga tributária menor (como a Irlanda e sua baixa alíquota de
imposto de pessoa jurídica). Se a
política econômica se tornar centralizada na União Europeia, esta limitação
sobre o poder estatal será eliminada. Os
políticos europeus já visam a uma harmonização das políticas fiscais e já falam
sobre referenciais para alíquotas de impostos.
Quando as políticas fiscais forem harmonizadas, haverá uma tendência
rumo a um aumento do poder de Bruxelas, e, consequentemente, rumo a um aumento
das alíquotas de impostos por toda a zona do euro. Os pacotes de socorro, o fundo de resgate
permanente, e uma centralização governamental podem salvar o euro no curto
prazo, mas ao custo de se estar construindo um estado europeu forte,
totalitário e centralizado, uma vez que as decisões políticas serão
transferidas para Bruxelas em troca de pacotes de socorro. A desordem produzida pelo euro terá então
servido como um instrumento para a criação de um estado centralizado dentro da
Europa.
No dia 11 de março, em uma reunião de
cúpula da UE, a união baseada puramente na transferência de renda foi mais
detalhadamente moldada. O fundo de
resgate foi ampliado e deu-se permissão para que ele comprasse títulos
governamentais diretamente no mercado primário.
Países como Portugal podem agora emitir títulos que serão comprados pelo
fundo de resgate. O fundo de resgate,
por sua vez, emite títulos para financiar estas compras — um procedimento que
equivale a títulos denominados em euro entrando pela porta dos fundos. Os pagadores de impostos dos países solventes
compram as dívidas de governos problemáticos.
A Alemanha poderá garantir aproximadamente €200 bilhões em vez dos €123
bilhões anteriormente acordados. O FEEF possuía
uma quantia de €440 bilhões, dos quais apenas 250 possuíam classificação AAA. O novo e permanente Mecanismo Europeu
de Estabilidade (MEE), que começará em 2013, terá uma capacidade efetiva de
€500 bilhões e poderá comprar títulos diretamente dos governos ao seu valor
nominal. O MEE terá €80 bilhões em
dinheiro vivo, €22 bilhões da Alemanha. O
pagamento em dinheiro implica um custo de €600 a €900 milhões em juros para a Alemanha
por ano. Supostamente, o capital do MEE deve
ser de €700 bilhões para garantir a emissão de pelo menos €500 bilhões em títulos
classificados como AAA. A Alemanha arcará
com 27,1% dos custos totais. Hans Werner
Sinn estimou que o fardo total dos pacotes de socorro e do fundo de resgate será
de €366 bilhões para a Alemanha.[21]
Se os governos estão insolventes — um
conceito arbitrário cujo único intuito é diferenciá-lo de ilíquido —, então
todos os investidores privados que comprarem seus títulos terão um haircut e sofrerão perdas. O resultado mais provável, portanto, é que
nenhum governo será considerado ilíquido, de modo que os investidores privados
nunca sofrerão perdas.
O que Merkel conseguiu em troca de
tudo isso? O Pacto pela Competitividade continuou
vago. Sanções para os governos infratores
não foram mencionadas. Pelo menos Merkel
manteve um veto para empréstimos futuros para nações problemáticas, uma vez que
pacotes de socorro deveriam ter aprovação unânime — algo que ela tentou vender
como sendo uma grande vitória.
A reunião de cúpula criou também uma
obscura reestruturação da dívida para a Grécia.
Concordou-se em reduzir as taxas de juros dos empréstimos para a Grécia de
5,2% para 4,2%. O período de pagamento
destes empréstimos foi ampliado de três anos para sete anos e meio. Isto implica, além de uma reestruturação parcial,
vultosas perdas de juros para os pagadores de impostos das nações solventes. Curiosamente, os empréstimos para a Irlanda a
juros de 5,8% não tiveram suas taxas reduzidas porque o novo primeiro-ministro irlandês,
Enda Kenny, não concordou em elevar o imposto de renda de pessoa jurídica em
troca deste favor.
Na reunião seguinte, ocorrida nos dias
24 e 25 de março, as alterações feitas no dia 11 de março foram finalmente
ratificadas. Embora no dia 23 de março o
presidente português José Sócrates tivesse renunciado após seu último pacote de
austeridade não ter sido aprovado pelo parlamento, Portugal ainda assim não quis
recorrer ao fundo de resgate.
Portugal
O colapso das finanças públicas portuguesas
era apenas uma questão de tempo.
No início de janeiro de 2011, à medida
que a pressão ia aumentando, um importante leilão de títulos da dívida de Portugal
ocorreu sem maiores sobressaltos. O governo
estava pagando menos de 7% por títulos de 10 anos, algo considerável insustentável
por vários parlamentares portugueses.[22] Nos dias anteriores, o BCE incorreu em uma maciça
compra de títulos portugueses, o que ajudou enormemente o leilão da dívida
portuguesa. O BCE salvou Portugal. O Barclays Capital estimou que o BCE comprou €19,5
bilhões dos €21,7 bilhões de títulos portugueses vendidos em 2010. De fevereiro de 2011 em diante, as taxas de
juros dos títulos portugueses mantiveram-se consistentemente acima de 7%,
chegando a 8,5% em
abril. A dívida pública
foi de 92% do PIB em 2010. O déficit público
em 2010 foi de 8,6% do PIB, menos do que os 10% registrados em 2009. Isto quer dizer que as medidas de
austeridade, as quais encontraram forte resistência por meio de manifestações de
rua, conseguiram reduzir o déficit em apenas 1,4 ponto percentual.
A situação de Portugal é similar à da Grécia. A economia é pouco competitiva, com seu
enorme setor público e seu mercado de trabalho inflexível. A estrutura da economia não está alinhada com
os reais desejos dos consumidores e é mantida artificialmente por volumosos gastos
governamentais.
Durante a primeira década do século XXI,
os setores público e privado aumentaram seu endividamento. As taxas de juros foram artificialmente
reduzidas em decorrência da expansão do crédito iniciada pelo Eurossistema e
pelo implícito financiamento das dívidas portuguesas pela Alemanha. O país ibérico viveu muito além de sua
realidade financeira, inchando seu setor público para 50% do PIB em 2009,
gerando uma enorme pressão fiscal. O déficit
na balança comercial, em consequência de toda essa expansão artificial, chegou
a 10% do PIB.
Um padrão de vida artificialmente
elevado foi possibilitado pela acumulação de dívidas a taxas de juros
artificialmente baixas. O necessário processo
de ajustamento de sua atrasada economia foi postergado pelo crédito artificialmente
barato. Entre 2002 e 2007, o PIB português
cresceu apenas 6%, ao passo que o espanhol cresceu 22% (bolha imobiliária), o irlandês
cresceu 37% (bolha bancária), e o grego cresceu 27% (bolha do setor público). O desemprego em Portugal dobrou, indo de 4%
para 8%, enquanto que o desemprego na Espanha, na Irlanda e na Grécia não cresceu
— em alguns casos até caiu. Ao passo
que a receita tributária aumentou 35% em Portugal, ela cresceu 50% na Grécia e
70% na Espanha e na Irlanda.[23]
Enquanto países como a Alemanha começaram
reformas estruturais, reduziram os gastos públicos com programas sociais e reduziram
os salários reais, Portugal aproveitou o estímulo fornecido pelo crédito fácil e
postergou uma extremamente necessária reforma em seu modelo de produção. Outros países periféricos utilizaram o crédito
farto para criar bolhas.
Com a taxa de juros e o endividamento
em forte ascensão, e nenhuma reforma séria no horizonte, Portugal irá dar o
calote em algum momento futuro caso não seja socorrido. A economia portuguesa deve €80 bilhões para bancos espanhóis.
Se o governo português der o calote, várias empresas que dependem do
enorme setor público farão mesmo, pois não serão capazes de pagar suas dívidas
junto aos bancos espanhóis. Isto, por
conseguinte, poderá desencadear uma crise bancária na Espanha, o que elevará as
taxas de juros dos títulos da dívida do governo espanhol.
Com tudo isso, a expectativas continuam
sinistras. A União Europeia se
transformou em uma união de redistribuição de renda. As taxas de juros que a maioria dos governos
tem de pagar sobre suas dívidas permanecem em níveis elevados. O total acumulado da dívida soberana segue
crescendo. O futuro nos dirá se toda
esta situação era sustentável.
[1] Ver Tobias Bayer, "Hilfen für
Hellas: Kehrtwende kratzt an Glaubwürdigkeit der EZB," Financial Times Deutschland (2010), http://www.ftd.de.
[2] Ver
Maria Petrakis and Meera Louis, "EU Backs Greek Deficit Plan: Papandreou Offers
Cuts," Bloomberg (February 3, 2010), http://noir.bloomberg.com.
[3] Ibid.
[4] Ver
Beat Balzli, "How Goldman Sachs Helped Greece to Mask its True Debt," Spiegel online (2010), http://www.spiegel.de.
[5] Ver
Andreas Illmer, "Merkel Rules Out German Bailout for Greece," Deutsche Welle (March 1, 2010), http://www.dw-world.de.
[6] Ver Daniel Hannan, "Germans!
Stop Being Ripped Off!" Telegraph.co.uk (March
27, 2010), http://blogs.telegraph.co.uk.
[7] Telebörse.de, "EZB öffnet Büchse
der Pandora," Dossier (May 10, 2010),
http://www.teleboerse.de.
[8] Ver Helga Einecke and Martin
Hesse, "Kurz vor der Apokalypse," Süddeutsche
Zeitung (June 16, 2010), http://www.sueddeutsche.de and ECB, Monthly Bulletin: June (2010), http://www.ecb.int, pp. 37-40.
[9] Jörg Eigendorf et al.,
"Chronologie des Scheiterns," Welt.online
(May 16, 2010), http://www.welt.de.
[10] Ver Banco de
Compensações Internacionais, "International Banking and Financial Markets
Development," BIS Quarterly Report
(June, 2010), pp. 18-22.
[11] Ver
Spiegel.online, "Deutschland weist Bericht über Sarcozy-Ausraster zurück," Spiegel.online (May 14, 2010), http://www.spiegel.de.
[12] A lista de tributos alemães é longa. Somente em setembro de 2010 é que o governo
alemão pagou as últimas dívidas remanescentes das reparações da Primeira Guerra
Mundial. Ainda antes do "pára-quedas", a
Alemanha pagou 89% mais para a União Europeia do que teria de pagar considerando
sua renda per capita. O pagamento em
excesso chegou a €70 bilhões durante a década posterior a 1999. Ver Henkel, Rettet unser Geld!, p. 139.
[13] Ver
Wolfgang Reuter, "German Central Bankers Suspect French Intrigue," Spiegel.online (May 31, 2010), http://www.spiegel.de.
[14] Ver
Ambrose Evans-Pritchard, "Axa Fears 'Fatal-Flaw' Will Destroy Eurozone," Telegraph.co.uk (June 14, 2010), http://www.telegraph.co.uk.
[15]
Philipp Bagus, "The
Fed's Dilemma," Mises.org daily (October
8, 2009), http://mises.org.
[16]
Philipp Bagus and Markus Schiml, "A Cardiograph of the Dollar's Quality:
Qualitative Easing and the Federal Reserve Balance Sheet During the Subprime
Crisis," Prague Economic Papers 19
(3, 2010): pp. 195-217.
[17] Ver Philipp
Bagus and Markus Schiml, "New Modes of Monetary Policy: Qualitative Easing by
the Fed," Economic Affairs 29 (2,
2009): pp. 46-49, para mais informações. Para estudos de caso das políticas de
alteração de balancete do Federal Reserve, ver Bagus and Schiml, "A Cardiograph
of the Dollar's Quality," e "New Modes of Monetary Policy"; e para as políticas
do BCE, Philipp Bagus and David Howden, "The Federal Reserve and Eurosystem's
Balance Sheet Policies During the Subprime Crisis: A Comparative Analysis," Romanian Economic and Business Review 4
(3, 2009): pp. 165-85 e Philipp Bagus and David Howden, "Qualitative Easing in
Support of a Tumbling Financial System: A Look at the Eurosystem's Recent
Balance Sheet Policies," Economic Affairs
21 (4, 2009): pp. 283-300.
[18] Para a
possibilidade de recapitalização e possíveis problemas, ver Bagus and Howden,
"The Federal Reserve and Eurosystem's Balance Sheet Policies," e "Qualitative
Easing in Support of a Tumbling Financial System."
[19] Ver Roland Vaubel, "Eine andere Interpretation des Weber
Rücktritts", 2011, http://wirtschaftlichefreiheit.de/
[20] Citado in Frank Schäffler, "Europäischer
Stabilitätsmechanismus (ESM)," 2011, Schriftliche
Erklärung, www.frank-schaeffler.de.
[21] Hans Werner Sinn, "Deutschland: Die Lotsen
gehen von Board," 2011, www.mmnews.de.
[22] Alexander Liddington-Cox, "THE DAILY CHART:
Portugal´s Austerity Impasse", BusinessSpectator
(March 23, 2011) http://www.businessspectator.com.au
[23] Ver Juan Ramón Rallo, "Portugal: Una decada (mal)viviendo del crédito
barato," juanramonrallo.com (March
23, 2011) http://www.juanramonrallo.com, and Juan Ramón Rallo, "España sí es
Portugal, " juanramonrallo.com (March
29, 2011), http://www.juanramonrallo.com