Um dos grandes problemas humanos sempre foi o de conviver
com outros humanos. Existem conflitos de todos os tipos, seja seja pela não
compreensão dos outros enquanto humanos, seja pelo alto número de conceitos
prévios, e seja também pela incompatibilidade ideológica — religiosa, política,
filosófica, econômica e moral.
A partir deste ambiente, surgem diversas críticas ao tipo
de homem que o ideal da liberdade pode fazer surgir. Fala-se dos humanos fechados em suas bolhas,
favorecidos pela individualidade e auto-aprisionamento proporcionado pela
tecnologia. Há também a ideia do caos
total, de ausência de senso para as ações, possibilitando tudo de ruim que a
mente humana pode imaginar.
Tais críticas são elaboradas para demonstrar que uma
sociedade baseada no princípio da não-agressão deixa diversas brechas para
ações, as quais estes críticos gostariam que houvesse punição.
Para exemplificar o que se critica: se numa sociedade
baseada na propriedade privada e no princípio da não-agressão, um indivíduo usar
a sua propriedade para torturar cães e gatos, que pertencem a ele, o que a
sociedade pode fazer, se moralmente condena a agressão a animais?
É de se pensar que o apoio a entidades coercitivas, como o estado, se dê pelo fato de as leis desenvolverem um senso de civilidade (aquela
liberdade da qual Platão versava). Assim, debaixo da lei dos homens, poderiam
ser criadas atitudes virtuosas pela punição da má conduta que fere o Bem e o
Belo social.
Porém, numa sociedade genuinamente livre, alguns poderiam
pensar em aplicar a devida punição ao agressor dos indefesos animais. Mas esta índole justiceira apenas colaboraria
para com a iniciação de agressão contra o indivíduo que agrediu os animais. É, sim,iniciação de agressão, pois consiste no
ferimento da liberdade e dos direitos de propriedade do zoófobo. Entre as coerções exercidas, existe a invasão
de sua propriedade, seja para prendê-lo ou simplesmente para espancá-lo. Há também a desculpa de ver as ações contra
o agressor como apenas uma reação, pois foi ele quem iniciou a agressão,
violando o princípio da não-agressão contra os animais.
Este último ponto merece um pouco mais de atenção, afastando-nos um pouco do exemplo do agressor de animais. É bastante estranho um humano responder por
alguém que não lhe diz respeito. Não faz
sentido eu ser chamado para testemunhar sobre um conflito que ocorreu há
milhares de km. Tal assunto não me diz
respeito para que eu participe como testemunha, seja de acusação ou de defesa
de ambas as partes. Se o caso me
interessar, eu posso, no máximo, analisar o conflito e emitir meu julgamento
sobre o caso. Obviamente que meu
julgamento só terá validade se eu houver sido escolhido para ser o mediador do
conflito. Um juiz não é aquele que participa ativamente para comprovar uma
tese, mas o que coloca na balança as teses apresentadas para emitir seu juízo,
previamente acatado por ambas as partes que concordaram em chamá-lo para
julgar.
Tudo transcorre normalmente se os envolvidos são seres
humanos. Seria um ótimo julgamento,
levando em conta o princípio de proporcionalidade, quando A rouba de B e A é
condenado a ressarcir B pelo dano causado. Há problemas, entretanto, quando um dos lados
não está presente — o caso do assassinato, por exemplo. Como a vítima iria ao julgamento e quem
abriria um pedido de julgamento por conta do assassinato? Rothbard pensou neste
assunto escrevendo que "um problema pode surgir no caso de assassinatos — já que
os herdeiros de uma vítima podem se mostrar pouco interessados em perseguir o
assassino" (2010, p. 146). A solução
apresentada é que as pessoas deixem em testamento o tipo de punição que desejam
caso sejam vítimas de assassinato. Ele pensa desta forma, pois
na sociedade libertária, existem, como
dissemos, apenas duas partes em uma disputa ou ação judicial: a vítima, ou o
reclamante, e o suposto criminoso, ou o réu. É o reclamante quem presta queixa
nos tribunais contra o transgressor. Em
um mundo libertário, não existiriam crimes contra uma mal definida
"sociedade", e, consequentemente, nem a figura do "promotor de
justiça criminal", que é quem decide sobre uma acusação e então presta
queixa contra o suposto criminoso (Ibidem. p. 145).
Dito isto, quem pode ser o reclamante dos animais que
sofreram agressão? Se ninguém é o dono
legítimo dos animais agredidos, não há uma pessoa qualificada a promover a
justiça em nome da sociedade que considera maus tratos um crime. Se uma pessoa pegasse o animal de outra e o
maltratasse, isto obviamente se enquadraria em lesar a propriedade de
terceiros, um crime quando os direitos de propriedade são assegurados.
Se ninguém pode falar em nome de todos os animais, há quem
conclame os direitos dos animais. É bem
estranho este tipo de abordagem, pois os "direitos dos animais" deveriam se aplicar a
todas as espécies, de modo que matar baratas, moscas, ratos, bactérias e vírus
também seria uma agressão seguida de morte. O fato é que os animais não possuem a mesma natureza humana
e, entre outras coisas, não podem reclamar seus direitos, e é por isto que
Rothbard concluiu que eles não possuem os mesmos direitos de um ser humano.[1].
Com esta impossibilidade de agir contra aquilo que se
considera um ato repudiável, muitos se afastam do direito libertário e passam a
defender a existência de um governo que seja responsável pela justiça. No fundo, querem a garantia de punição com o
aval para invadir propriedades e violar liberdades, efetivando assim a
aplicabilidade da "justiça".
Há, entretanto, uma outra forma de criar civilidade. Outra maneira de demonstrar que uma atitude é
condenável sem que, para isso, exista iniciação de agressão ou supressão de
liberdade. Esta maneira já foi, de certo
modo, previamente utilizada por sociedades do passado. Falo do boicote social.
Boicote Social
Este boicote social é bem diferente do ato de enviar
pessoas para o exílio, como alguns estados fazem. As pessoas que eram jogadas
para fora das muralhas das cidades estavam sendo expulsas pela administração
governamental. O exílio e a expulsão não
são o que chamo de boicote social, apesar de serem um tipo de boicote social,
acrescido do adjetivo coercitivo.
O boicote social que defendo é a prática de não realizar
transações comerciais ou ter relações sociais com o indivíduo boicotado. Se numa sociedade há a garantia do direito à
propriedade, a melhor forma de condenar uma pessoa é através de um pacífico
boicote por conta dos estabelecimentos comerciais. O custo de não vender pães, carne, cigarro,
bebida ou de realizar serviços de mecânica, assistência etc. pode ser
subjetivamente positivo para os moradores e comerciantes da região, que podem
passar a boicotar estabelecimentos que aceitem a entrada do sujeito que as
pessoas não desejam.
Os mais atentos podem indagar que grupos étnicos e algumas
minorias poderiam ser boicotados apenas pelo fato de pertencerem a estes grupos
e não por alguma ação que seja condenável. Certamente que numa sociedade livre um dono de
um estabelecimento poderia praticar tal ato. Porém, levando-se em conta que a maioria das
pessoas sensatas acharia a existência de um estabelecimento que se negasse a
realizar uma troca com determinado grupo étnico ou grupo minoritário um
absurdo, novamente o boicote social entraria em ação. Desta vez, o boicote
aconteceria contra os donos do estabelecimento e seus frequentadores. É muito custoso para o dono de um
estabelecimento o fato de seu estabelecimento ser boicotado, o que geraria
quedas nos lucros — além do fato de que ele passaria a ser visto como uma pessoa
indigna do convívio social. O boicote
por pura discriminação não é vantajoso economicamente e socialmente, bem diferente
do boicote social apresentado anteriormente. Boicotar por capricho é um risco, enquanto
boicotar como reação a atitudes condenáveis resulta em prestígio.
Se em determinadas questões a justiça libertária, baseada
na propriedade privada e no princípio de não agressão, impede que pessoas sejam
condenadas por práticas que não violem a propriedade e liberdade de terceiros,
mas que violem uma moralidade e uma determinada visão de mundo, o boicote
social é uma penalidade mais efetiva do que a prisão, o linchamento ou a morte.
No caso do agressor de animais que agride os seus próprios
animais, não há uma impossibilidade de ação diante dos fatos. De acordo com a ética que envolve a liberdade,
agredir o agressor de animais é iniciar agressão, por mais que se tente
justificar o ato. Não podemos obrigar
pessoas a deixarem de ser idiotas. Muitas
realmente são. Mas há algo que pode ser
feito, sem violar liberdades, para que o idiota perceba o quanto sua ação é
repudiada. O boicote social pode fazer
uma pessoa perceber que perdeu algo realmente de valor, não o valor econômico,
mas o valor de ser merecedor do convívio social que o pertencimento à
humanidade possibilita.
Referências:
ROTHBARD, Murray. A Ética da Liberdade.
São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010.
[1]
Ver o capítulo XXI "Os
direitos dos animais" em A ética da
liberdade de Murray Rothbard.