O que o estado não é
O estado é quase
universalmente considerado uma instituição de serviço social. Alguns teóricos veneram o estado como sendo a
apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora
muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais. Porém quase todos o consideram um meio
necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado
contra o "setor privado" e que frequentemente ganha essa disputa pelos
recursos. Com o advento da democracia, a
identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum
ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da
razão e do senso comum, tais como: "nós somos o governo" ou "nós somos o
estado".
O termo coletivo útil "nós"
permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política. Se "nós somos o estado", então qualquer coisa
que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como
também "voluntário" da parte do respectivo indivíduo. Se o estado incorre numa dívida pública que
tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício
de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que "devemos
a nós mesmos" (ou "a nossa dívida tem
de ser paga"); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião
dissidente, então ele está "fazendo isso a si mesmo" — e, como tal, não
ocorreu nada de lamentável.
Nesta mesma linha de
raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo
contrário, devem ter "cometido suicídio", uma vez que eles eram o governo (que
foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes
tenha feito foi voluntário da sua parte. Não seria necessário insistir mais neste ponto;
no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em
maior ou menor grau.
Devemos, portanto,
enfatizar a ideia de que "nós" não
somos o estado; o governo não somos
"nós". O estado não "representa" de
nenhuma forma concreta a maioria das pessoas[i].
Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70%
das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio
em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada[ii].
Não se pode permitir que nenhuma
metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato
essencial.
Se, então, o estado
não somos "nós", se ele não é a "família humana" se reunindo para decidir sobre
os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é
afinal? Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter
o monopólio do uso da força e da
violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única
organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição
voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da
coerção.
Enquanto os outros
indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens
e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo,
o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela
ameaça de prisão e pelo uso das armas[iii].
Depois de usar a força e a violência
para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as
outras ações dos seus súditos. Poderíamos
pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de
todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se
na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.
O que o estado é
O ser humano nasce indefeso
e, como tal, precisa utilizar a sua mente para aprender a obter os
recursos que a natureza lhe fornece e a transformá-los (por exemplo,
através do investimento em "capital") em objeto e em locais de modo que possam
ser utilizados para a satisfação das suas necessidades e para a melhoria do seu
padrão de vida. A única forma por meio da
qual o ser humano pode fazer isto é através do uso da sua mente e da sua energia
para transformar os recursos ("produção") e da troca destes produtos por
produtos criados pelos outros. O ser
humano descobriu que, por meio do processo de troca mútua e voluntária
(comércio), a produtividade — e, logo, o padrão de vida de todos os
participantes desta troca — pode aumentar significativamente. Portanto, o único caminho "natural" para o ser
humano sobreviver e alcançar a prosperidade é utilizando sua mente e energia
para se envolver no processo de produção-e-troca.
Ele realiza isto, primeiro, encontrando
recursos naturais, segundo, transformando-os ("misturando seu trabalho a eles",
tal como disse John Locke), fazendo deles a sua propriedade individual, e depois trocando esta propriedade pela
propriedade de outros que foi obtida de forma semelhante.
O caminho social
ditado pelas exigências da natureza humana, portanto, é o caminho dos "direitos
de propriedade" e do "livre mercado" de doações ou trocas de tais direitos. Ao longo deste caminho, o ser humano aprendeu a
evitar os métodos "selvagens" da luta pelos recursos escassos — de forma que A pudesse apenas adquiri-los à custa de B —, e, ao invés disso, aprendeu a multiplicar
imensamente esses recursos por meio do processo harmonioso e pacífico da
produção e troca.
O grande sociólogo alemão
Franz Oppenheimer apontou para o fato de que existem duas formas mutuamente
exclusivas de adquirir riqueza: a primeira, a forma referida acima, de produção
e troca, ele chamou de "meio econômico". A outra forma é mais simples, na medida em que
não requer produtividade; é a forma em que se confisca os bens e serviços do
outro através do uso da força e da violência. É o método do confisco unilateral, do roubo da
propriedade dos outros. A este método
Oppenheimer rotulou de "o meio político" de aquisição de riqueza. Deve estar claro que o uso pacífico da razão e
da energia na produção é o caminho "natural" para o homem: são os meios para a
sua sobrevivência e prosperidade nesta terra. Deve estar igualmente claro que o meio
coercivo, explorador, é contrário à lei natural; é parasítico, pois em vez de
adicionar à produção, apenas subtrai.
O "meio político" desvia
a produção para um indivíduo — ou grupo de indivíduos — parasita e
destrutivo; e este desvio não só subtrai da quantidade produzida como também
reduz o incentivo do produtor para produzir além de sua própria subsistência. No longo prazo, o ladrão destrói a sua própria
subsistência ao diminuir ou eliminar a fonte do seu próprio suprimento. Mas não só isso: mesmo no curto prazo, o
predador age contrariamente à sua natureza como ser humano.
Estamos agora em uma
posição que nos permite responder mais satisfatoriamente à questão: o que é o
estado? O estado, nas palavras de
Oppenheimer, é "a organização dos meios políticos"; é a sistematização do
processo predatório sobre um determinado território[iv].
Pois o crime é, no máximo, esporádico e
incerto; já o parasitismo é efêmero e a coerciva ligação parasítica pode ser
cortada a qualquer momento por meio da resistência das vítimas. O estado, no entanto, providencia um meio legal,
ordeiro e sistemático para a depredação da propriedade privada; ele torna
certa, segura e relativamente "pacífica" a vida da casta parasita na sociedade[v].
Dado que a produção
tem sempre de preceder qualquer depredação, conclui-se que o livre mercado é
anterior ao estado. O estado nunca foi
criado por um "contrato
social"; ele sempre nasceu da conquista e da exploração. O paradigma clássico é aquele de uma tribo
conquistadora que resolveu fazer uma pausa no seu método — testado e aprovado
pelo tempo — de pilhagem e assassinato das tribos conquistadas ao perceber que
a duração do saque seria mais longa e segura — e a situação mais agradável —
se ela permitisse que a tribo conquistada continuasse vivendo e produzindo, com
a única condição de que os conquistadores agora assumiriam a condição de governantes,
exigindo um tributo anual constante[vi].
Um dos métodos de nascimento
de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da "Ruritânia do
Sul", um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um
determinado território. Cumprida a
missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se "Rei do estado soberano e
independente da Ruritânia do Sul". E se
ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo
suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à "família das nações",
e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na
nobreza legítima do reino.
Como o estado se eterniza
Uma vez estabelecido o
estado, o problema do grupo ou "casta" dominante passa a ser o de como manter o
seu domínio[vii].
Embora o seu modus operandi seja o da força, o problema básico e de longo prazo é
ideológico. Pois para continuar no
poder, qualquer governo (não simplesmente um governo "democrático") tem de ter
o apoio da maioria dos seus súditos. E esse
apoio, vale observar, não precisa ser um entusiasmo ativo; pode bem ser uma
resignação passiva, como se se tratasse de uma lei inevitável da natureza. Mas tem de haver apoio no sentido de algum
tipo de aceitação; caso contrário, a minoria formada pelos governantes estatais
seria em última instância sobrepujada pela resistência ativa da maioria do
público.
Uma vez que a
depredação tem necessariamente de ser mantida por um excedente da produção, é um
fato necessariamente verdadeiro que a classe que constitui o estado — a
burocracia estabelecida (e a nobreza) — tem de ser uma pequena fração
minoritária no território, embora possa, claro, comprar aliados entre os grupos
importantes da população. Como tal, a
principal tarefa dos governantes é sempre a de assegurar a aceitação ativa ou
resignada da maioria dos cidadãos[viii],[ix].
Claro que um dos
métodos para assegurar o apoio é por meio da criação de interesses econômicos
legalmente garantidos. Como tal, o rei
sozinho não pode governar; ele precisa de um grupo considerável de seguidores
que desfrutem os privilégios do domínio, por exemplo, os membros do aparato
estatal, como a burocracia em tempo integral ou a nobreza estabelecida[x].
Mas ainda assim isto assegura apenas uma
minoria de apoiadores fervorosos, e até a compra essencial de apoio por meio de
subsídios e outras concessões de privilégios não é suficiente para obter o
consentimento da maioria. Para produzir
esta aceitação crucial, a maioria tem de ser persuadida por uma ideologia de que o seu governo é bom,
sábio e, pelo menos, inevitável e certamente melhor do que outras possíveis
alternativas. A promoção desta ideologia
entre o povo é a tarefa social vital dos "intelectuais". Pois as massas não criam as suas próprias
ideias, ou sequer pensam de maneira independente sobre estas ideias; elas
seguem passivamente as ideias adotadas e disseminadas pelo grupo de
intelectuais. Os intelectuais são, por
isso, os "formadores de opinião" da sociedade. E dado que é precisamente de uma modelagem da
opinião aquilo de que o estado desesperadamente precisa, a razão da milenar aliança
entre o estado e os intelectuais torna-se clara.
É evidente que o
estado precisa de intelectuais; mas não é algo tão evidente por que os
intelectuais precisam do estado. Posto
de forma simples, podemos afirmar que o sustento do intelectual no livre mercado
nunca é algo garantido, pois o intelectual tem de depender dos valores e das
escolhas das massas dos seus concidadãos, e é uma característica indelével das
massas o fato de serem geralmente desinteressadas de assuntos intelectuais. O estado, por outro lado, está disposto a
oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato
estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios. E os intelectuais serão generosamente
recompensados pela importante função que executam para os governantes do
estado, grupo ao qual eles agora pertencem[xi].
A aliança entre o
estado e os intelectuais ficou simbolizada, no século XIX, no desejo ardente
dos professores da Universidade de Berlim em formar o "apoio intelectual da
Casa de Hohenzollern". Já no século XX, podemos
observar o comentário revelador feito por um eminente acadêmico marxista sobre
o estudo crítico do antigo despotismo Oriental realizado pelo Professor
Wittfogel: "A civilização que o Professor Wittfogel ataca tão veemente foi uma
civilização que colocou poetas e eruditos no funcionalismo público"[xii].
Dentre inúmeros exemplos, podemos citar
o desenvolvimento recente da "ciência" da estratégia a serviço do principal
braço governamental no uso da violência, o aparelho militar[xiii].
Outra venerável instituição é a do
historiador oficial — ou o historiador "da corte" —, dedicada a difundir a
visão dos governantes acerca das suas ações e das dos seus predecessores[xiv].
Muitos e variados têm
sido os argumentos por meio dos quais o estado e seus intelectuais têm induzido
os seus súditos a apoiar o seu domínio. As
linhas de argumento podem ser basicamente resumidas desta forma: (a) os
governantes estatais são homens sábios e grandiosos (governam por "decreto
divino", são a "aristocracia" dos homens, são "cientistas especialistas"),
muito melhores e mais sábios do que os seus bons, porém simplórios, súditos, e
(b) a subjugação pelo governo é inevitável, absolutamente necessária e de longe
melhor do que os males indescritíveis que sucederiam à sua queda. A união entre Igreja e estado foi um dos mais
bem sucedidos e mais antigos destes mecanismos ideológicos. O governante ou era ungido por Deus ou era ele
mesmo, no caso do domínio absoluto de muitos déspotas Orientais, o próprio
Deus; como tal, qualquer resistência ao seu domínio seria blasfêmia. Os sacerdotes do estado cumpriam a função intelectual
básica de obter o apoio popular e até a adoração aos governantes[xv].
Outro mecanismo bem
sucedido foi o de instaurar o medo acerca de quaisquer sistemas alternativos de
governo ou não governo. Os governantes atuais,
alegava-se, fornecem aos cidadãos um serviço essencial pelo qual devem estar
muito gratos: a proteção contra criminosos e saqueadores esporádicos. Pois para o estado preservar seu próprio
monopólio predatório, ele realmente deve garantir que o crime privado e não sistemático
seja mantido num grau mínimo; o estado sempre zelou ciosamente pela sua própria
preservação. Nos séculos mais recentes,
o estado tem sido especialmente bem sucedido em fomentar o medo acerca de outros governantes estatais. Dado que a área territorial do globo tem sido
parcelada entre estados específicos, uma das doutrinas essenciais do estado foi
a de se identificar com o território que domina.
Uma vez que a maioria
das pessoas tende a amar a sua terra natal, a identificação dessa terra e do
seu povo com o estado foi um meio de usar o patriotismo natural para benefício do
próprio estado. Se a "Ruritânia"
estivesse sendo atacada pela "Uldávia", a primeira função do estado e dos seus
intelectuais seria convencer as pessoas da Ruritânia que o ataque era dirigido
a eles e não apenas à casta dominante.
Desta forma, uma guerra entre governantes seria transformada numa
guerra entre povos, em que a massa
dos indivíduos agiria em defesa dos seus governantes sob a falsa crença de que
os governantes estariam agindo em defesa de seus indivíduos. Este apelo ao "nacionalismo" tem sido útil, no
Ocidente, apenas em séculos mais recentes; não há muito tempo, a massa de súditos
olhava para as guerras como batalhas irrelevantes entre diversos grupos de
nobres.
São muitas e sutis as
armas ideológicas que o estado tem manejado através dos séculos. Uma destas excelentes armas tem sido a
tradição. Quanto mais tempo o domínio de
um estado tem se mantido preservado, mais poderosa é esta arma; pois desta
forma a Dinastia X ou o estado Y mantém o aparente peso da tradição dos séculos
como sustento para sua própria existência[xvi].
A adoração aos antepassados passa então
a ser uma forma não muito sutil de adoração aos antigos governantes. O maior perigo para o estado é a crítica
intelectual independente; não há melhor forma de abafar essa crítica do que
atacar qualquer voz isolada, qualquer um que levante novas dúvidas, como sendo um
profano violador da sabedoria dos seus ancestrais.
Outra potente força
ideológica é desaprovar e rebaixar o indivíduo
e exaltar a coletividade da sociedade. Pois
uma vez que qualquer tipo de domínio implica uma aceitação da maioria, qualquer
perigo ideológico para o domínio pode começar apenas a partir de um ou de poucos
indivíduos que demonstrem ter pensamento independente. A ideia nova, e principalmente a ideia nova e crítica, só pode ter início como uma
pequena opinião minoritária; como tal, o estado tem de cortar a ideia pela raiz,
ridicularizando qualquer ponto de vista que desafie a opinião das massas. "Dê ouvido apenas aos seus irmãos" ou "Aja
conforme a sociedade" tornam-se assim as armas para esmagar a dissensão
individual[xvii].
Através destes meios, as massas nunca
vão descobrir que o rei está nu[xviii].
É também muito
importante que o estado faça parecer que o seu domínio é inevitável; mesmo que
o seu reinado seja detestado, ele será assim visto com resignação passiva, tal
como atesta o dito sobre a "inevitabilidade da morte e dos impostos". Um método é o da indução do determinismo
historiográfico, em oposição ao livre arbítrio individual. Se a Dinastia X nos governa é porque as
Inexoráveis Leis da História (ou a Vontade Divina, ou o Absoluto, ou as Forças Materiais
Produtivas) assim determinaram, e nada que uns indivíduos insignificantes
possam fazer será capaz de alterar este decreto inevitável. É também importante para o estado inculcar nos
seus súditos uma aversão a qualquer "teoria da conspiração da história", pois
uma busca por conspirações significa uma busca por motivos e uma atribuição de
responsabilidade por delitos históricos. Se, contudo, qualquer tirania imposta pelo
estado, ou corrupção, ou agressão militar, foi causada não pelos governantes estatais, mas sim por "forças sociais" misteriosas
e ocultas, ou pelo arranjo imperfeito do mundo, ou, se de alguma forma, todos foram responsáveis, então não há
qualquer razão para as pessoas ficarem indignadas ou se insurgirem contra tais
delitos. Ademais, um ataque às "teorias
da conspiração" tem como objetivo fazer com que os súditos se tornem mais
crédulos em relação às razões de "bem-estar geral" que são sempre apresentadas
pelo estado como justificativa para os seus atos despóticos. Uma "teoria da conspiração" pode perturbar o
sistema ao fazer com que o público desconfie da propaganda ideológica do
estado.
Outro velho e eficaz
método para curvar os súditos à vontade do estado é a indução da culpa. Qualquer aumento do bem-estar privado pode
ser atacado como "ganância inaceitável", "materialismo" ou "riqueza excessiva";
o lucro pode ser atacado como "exploração" e "agiotagem"; as trocas mutuamente
benéficas são denunciadas como "egoístas", chegando-se sempre, de alguma forma,
à conclusão de que mais recursos devem ser retirados do setor privado e
desviados para o "setor público". A
culpa induzida torna o público mais suscetível a aceitar esta transferência. Pois ao passo que indivíduos tendem a se
entregar à "cobiça egoísta", a incapacidade dos governantes estatais em
realizar trocas voluntárias supostamente significa a sua devoção a causas mais nobres e elevadas — a depredação
parasítica seria assim uma atitude aparentemente mais elevada, estética e
moralmente, do que o trabalho pacífico e produtivo.
Na nossa atual e mais
secular época, o direito divino do estado foi suplantado pela invocação de um
novo Deus, a Ciência. O governo estatal
é agora proclamado como ultracientífico, como constituído por um painel de
especialistas. Mas mesmo com a "razão"
sendo mais invocada hoje do que em séculos passados, essa não é a verdadeira
razão do indivíduo e do exercício do seu livre arbítrio; é ainda a razão coletivista
e determinista, que implica sempre agregados holísticos e a manipulação
coerciva de súditos passivos feita pelos seus governantes.
O aumento do uso de jargões
científicos permitiu aos intelectuais do estado tecer justificativas
obscurantistas para o domínio estatal as quais teriam sido imediatamente
recebidas com zombaria e escárnio pela população de uma época mais simples. Um assaltante que justificasse o seu roubo
dizendo que na verdade ajudou as suas vítimas, pois o gasto que fez do dinheiro
trouxe um estímulo ao comércio, teria convencido pouca gente; mas quando esta
teoria se veste com equações keynesianas e referências impressivas ao "efeito
multiplicador", ela infelizmente é recebida com maior respeito. E assim prossegue o ataque ao bom senso, em
cada época realizado de maneira diferente.
Por conseguinte, sendo
o apoio ideológico indispensável para a manutenção do estado, este é
incessantemente obrigado a impressionar o público com a sua "legitimidade" de
forma a distinguir suas atividades daquelas praticadas por uma mera quadrilha de
mafiosos.
A ininterrupta determinação
dos seus ataques ao senso comum não é acidental, pois, como afirmou vividamente
Mencken:
O homem comum, quaisquer
que sejam as suas falhas, pelo menos vê claramente que o governo é algo que
existe à parte de si e à parte da maioria dos seus concidadãos — que o governo
é um poder separado, independente e hostil, apenas parcialmente sob o seu controle
e capaz de prejudicá-lo seriamente. Não
é por acaso que roubar o governo é visto em geral como um crime de menor
magnitude do que roubar um indivíduo, ou até mesmo uma empresa .. O que está
por trás desta visão, creio eu, é a profunda noção de que há um antagonismo
fundamental entre o governo e as pessoas que ele governa. O governo é tido não como um comitê de
cidadãos eleitos para resolver os problemas comuns de toda população, mas sim como
uma corporação autônoma e separada, dedicada principalmente à exploração da
população para benefício dos seus próprios membros .. Quando um cidadão é
roubado, uma pessoa digna foi privada dos frutos do seu esforço e poupança;
quando o governo é roubado, o pior que acontece é que uns patifes ociosos ficam
com menos dinheiro para brincar do que tinham antes. A noção de que mereceram ganhar esse dinheiro
não passa pela cabeça de ninguém; afina, para qualquer pessoa sensata, esta
ideia é ridícula.[xix]
Como o estado transcende seus limites
Como Bertrand de
Jouvenel sabiamente salientou, ao longo dos séculos os homens foram formando
conceitos com o intuito de refrear e limitar o domínio estatal; e o estado,
recorrendo aos seus aliados intelectuais, tem se mostrado capaz de transformar,
um a um, todos estes conceitos em carimbos de legitimidade e virtude,
anexando-os aos seus decretos e ações.
Originalmente, na Europa Ocidental, o conceito de soberania divina
afirmava que os reis podiam governar apenas de acordo com a lei divina; os
reis, entretanto, perverteram esse conceito e o transformaram em um carimbo de
aprovação divina para qualquer ato real.
O conceito de democracia parlamentar começou como uma restrição popular
ao domínio monárquico absoluto e terminou com o parlamento não apenas se
tornando parte essencial do estado, como também a manifestação da plena
soberania deste. Tal como de Jouvenel
conclui:
Muitos
escritores interessados nas teorias da soberania se debruçaram sobre estes
mecanismos restritivos. Mas, por fim,
cada uma destas teorias perdeu, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito
original e acabou por funcionar como um trampolim para o Poder, provendo-lhe a
ajuda poderosa de um soberano invisível com o qual ele podia, com o passar do
tempo, se identificar por completo.[xx]
O mesmo aconteceu com
doutrinas mais específicas: os "direitos naturais" do indivíduo, consagrados
por John Locke e pela Carta dos Direitos (Bill
of Rights), converteram-se no estatista "direito a um emprego"; o
utilitarismo abandonou seus argumentos em prol da liberdade e passou a se
concentrar em argumentos contra a resistência aos ataques do estado à liberdade
etc.
É certo que a mais
ambiciosa tentativa de impor limites ao estado foi a Carta dos Direitos e
outras partes restritivas da Constituição Americana, na qual foram escritos
limites explícitos ao governo os quais deveriam servir como lei fundamental a
ser interpretada por um sistema judicial supostamente independente dos outros
ramos do governo. Todos os americanos
estão cientes do processo ao longo do qual esta construção de limites presentes
na Constituição foi sendo alargada de modo inexorável durante o século
passado. Mas poucos foram tão perspicazes
como o Professor Charles Black em notar que, neste processo, o estado
transformou a própria revisão judicial, a qual, de um mecanismo limitador,
passou a ser cada vez mais um instrumento que provê legitimidade ideológica às
ações do governo. Pois se um decreto
judicial de "inconstitucionalidade" é um poderoso entrave ao poder do governo,
um veredicto implícito ou explícito de "constitucionalidade" é uma arma
poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental.
O Professor Black
começa a sua análise indicando a necessidade crucial da "legitimidade" para que
qualquer governo sobreviva, sendo que esta legitimidade corresponde a uma
aceitação majoritária básica do governo e de suas ações[xxi]. A aceitação da legitimidade torna-se um
problema peculiar em um país como os Estados Unidos, em foram colocadas
"limitações substanciais na teoria sobre a qual o governo se baseia". O que é preciso, acrescenta Black, é um meio
pelo qual o governo possa assegurar ao público que a expansão dos seus poderes
é, de fato, "constitucional". E isto,
conclui, tem sido a principal função histórica da revisão judicial.
Deixemos Black ilustrar o problema:
A ameaça
suprema [para o governo] é a ampla disseminação de um sentimento de ultraje e
desafeição entre a população, e a consequente perda de autoridade moral por
parte do governo, independentemente de quanto tempo ele consiga mantê-la pela
força ou pela inércia ou pela simples falta de uma alternativa atraente e
imediatamente disponível. Quase todas as
pessoas que vivem sob um governo com poderes limitados serão, cedo ou tarde,
sujeitados a alguma ação governamental que, em sua opinião, consideram estar
além do poder do governo ou mesmo totalmente proibida ao governo. Um homem pode ser conscrito embora não
encontre nada na Constituição autorizando o recrutamento para o serviço militar
obrigatório .... A um agricultor é dito
o quanto ele pode produzir de trigo; ele acredita, e descobre que alguns
advogados respeitáveis partilham desta crença de que o governo tem o direito
tanto de lhe dizer o quanto de trigo ele pode produzir como de lhe dizer com
quem é que a sua filha se pode casar. Um
homem vai para a cadeia por dizer o que quer e entra em sua cela proferindo
.... "o Congresso não passará quaisquer leis que limitem a liberdade de
expressão" .... A um comerciante é dito o quanto pode cobrar, e quanto tem de
cobrar, por leite desnatado.
Existe uma
ameaça real que cada uma destas pessoas (e quem não se encontra entre elas?)
chegue a um momento em que irá confrontar o conceito de limite do poder
governamental com a realidade (tal como a vê) da flagrante transgressão dos
limites efetivos, e que tire a conclusão óbvia acerca do status do governo em
relação à legitimidade.[xxii]
Esta ameaça é afastada
pelo estado por meio da propaganda doutrinal de que uma agência terá de ter a decisão final no que diz respeito à
constitucionalidade, e que esta agência, em última análise, terá de fazer parte do estado.[xxiii]
Pois, embora a aparente independência do poder judicial tenha desempenhado um
papel vital em fazer com que as suas ações pareçam sagradas para o grosso da
população, é também — e cada vez mais — verdade que o poder judicial é uma
parte essencial do aparato governamental e é designado pelos ramos legislativo
e executivo. Black admite que isto
significa que o estado se colocou no papel de juiz de sua própria causa,
violando assim o princípio jurídico básico de se procurar chegar a decisões
justas. Ele nega peremptoriamente a
possibilidade de qualquer alternativa.[xxiv]
Black acrescenta:
O problema,
então, é criar meios de decisão governamental que possam [esperamos] reduzir a
um mínimo tolerável a intensidade da objeção ao governo ser juiz de sua própria
causa. Tendo feito isto, podemos apenas
ter a esperança de que esta objeção, embora
ainda teoricamente sustentável, perca força efetiva até o ponto em que o
trabalho de legitimação das instituições de decisão possa ganhar aceitação.[xxv]
Em sua última análise,
Black considera que, dado o fato de que o estado perpetuamente julga em sua
própria defesa, ele conseguir desta forma chegar a decisões justas e legítimas
seria "algo milagroso".[xxvi]
Aplicando a sua tese
ao famoso conflito entre a Corte Suprema e o New Deal, o Professor Black repreende de forma ríspida os seus
companheiros pró-New Deal, pela sua falta de visão, que denunciaram a obstrução
judicial:
A versão padrão
da história entre o New Deal e a Suprema Corte, embora de certa maneira
acurada, enfatiza a questão errada .... Concentra-se nas dificuldades e quase
se esquece do resultado que acabou por ser produzido. A consequência desta história foi que [e isto
é o que eu gosto de enfatizar], após cerca de vinte meses a opor-se .... a
Suprema Corte, sem uma única alteração na lei de sua autoria, ou sequer em seus
membros, colocou o selo afirmativo de legitimidade no New Deal, chancelando uma
concepção completamente nova de governo nos EUA.[xxvii]
Desta forma, a Suprema
Corte foi capaz de silenciar a grande massa de americanos que vinha
demonstrando fortes objeções constitucionais ao New Deal:
Claro que nem
todos ficaram satisfeitos. O mito do laissez-faire constitucionalmente
ordenado ainda acalenta o coração de alguns sonhadores na terra da irrealidade
raivosa. Mas já não há qualquer dúvida
no público, perigosa ou significativa, quanto ao poder constitucional do
Congresso para lidar como lida com a economia nacional....
Não havia
qualquer outro meio, senão a Suprema Corte, para conceder legitimidade ao New Deal.[xxviii]
Como Black reconhece, um dos maiores teóricos políticos que constatou —
e muito antes que outros — a brecha flagrante em fazer com que um limite
constitucional ao governo esteja sob o poder de interpretação final da Suprema
Corte foi John C. Calhoun. Calhoun não
se contentou com o "milagre", e prosseguiu com uma profunda análise do problema
constitucional. No seu trabalho
intitulado Disquisition, Calhoun
demonstrou a tendência inerente do estado a ultrapassar os limites de uma
constituição:
Uma constituição escrita certamente possui muitas vantagens importantes,
mas é um erro crasso supor que a mera inserção de provisões para restringir e
limitar o poder do governo, sem dotar
aqueles para quem as provisões são inseridas com os meios para impor o seu
cumprimento, [itálicos meus] será suficiente para prevenir que os partidos
maiores e dominantes abusem dos seus poderes.
Uma vez na posse do governo, os partidos, pela mesma natureza humana que
justifica a necessidade de um governo para proteger a sociedade, serão a favor
dos poderes concedidos pela constituição e opor-se às restrições que visam
limitá-los. ... Os partidos mais fracos ou minoritários, pelo contrário, irão
tomar a posição oposta e considerá-las [as restrições] como essenciais para a
proteção contra a atuação do partido dominante. ... Mas visto não haver meios
pelos quais eles possam levar o partido maior a obedecer às restrições, o único
recurso que sobra será o de manter uma interpretação estrita da constituição.
... A isto o partido dominante irá opor-se com uma visão permissiva da
constituição. ... Será um jogo de interpretação contra interpretação — uma
para contrair e a outra para alargar ao máximo o domínio do governo. Mas qual o benefício da visão rigorosa do
partido minoritário face à visão permissiva do partido majoritário quando este
tem todo o poder do governo para colocar em prática a sua visão ao passo que o
primeiro se encontra privado de qualquer meio para concretizar a sua
visão? Em uma disputa tão desigual, o
resultado não será difícil de prever. O
partido a favor das restrições será derrotado. ... O final da disputa será a
subversão da constituição. ... as restrições serão por fim anuladas e o governo
será convertido em um governo com poderes ilimitados.[xxix]
Um dos poucos
cientistas políticos que valorizou a análise de Calhoun foi o Professor J.
Allen Smith. Smith notou que a
Constituição foi concebida com um sistema de pesos e contrapesos para limitar
qualquer poder governamental; contudo, foi criada uma Suprema Corte com o
monopólio sobre o poder final de interpretação.
Se o Governo Federal foi criado para limitar as invasões da liberdade
individual por parte de cada estado, quem é que limita o poder Federal? Smith sustenta que, implícita na ideia de um
sistema de pesos e contrapesos da Constituição, está a concomitante visão de
que não se pode conceder a nenhum ramo do governo o poder final de
interpretação: "O povo assumiu que ao novo governo não seria permitido
determinar os limites da sua própria autoridade, uma vez que isto tornaria o
próprio governo, e não Constituição, supremo.[xxx]
A solução proposta por
Calhoun (e apoiada, no século XX, por escritores como Smith) foi, claro, a
famosa doutrina da "maioria concomitante".
Se qualquer interesse minoritário substancial, especificamente um
governo estadual, acreditasse que o Governo Federal estivesse excedendo seus
poderes e sobrepondo-se a esta minoria, a minoria teria o direito de veto deste
exercício de poder baseando-se na sua inconstitucionalidade. Aplicado aos governos estaduais, esta teoria
implicava o direito à "anulação" da lei ou decisão federal dentro da jurisdição
de um determinado estado.
Teoricamente, o
sistema constitucional resultante assegurava que o governo federal colocasse
entraves a qualquer invasão dos estados aos direitos individuais, ao passo que
os estados restringiriam o poder federal excessivo sobre o indivíduo. No entanto, embora as limitações fossem
naquela época mais eficazes do que são atualmente, há muitas dificuldades e
problemas na solução de Calhoun. Se, de
fato, um interesse subordinado deve legitimamente ter o poder de veto sobre um
assunto que lhe diz respeito, por que parar nos estados? Por que não colocar o poder de veto nos
municípios, nas cidades, nos bairros?
Além do mais, os interesses não são apenas regionais, mas também
profissionais, sociais etc. E quanto aos
padeiros ou os taxistas ou qualquer outra profissão? Não deveriam eles poder vetar qualquer legislação que afete suas próprias
vidas?
Isto nos leva a um
ponto crucial: a teoria da anulação confina suas restrições às próprias agências do governo. Não esqueçamos que os governos federal e
estaduais, e os seus respectivos ramos, são ainda estados, e, como tal, são
ainda guiados pelo seu interesse estatal próprio e não pelos interesses dos
cidadãos civis. O que impede que o
sistema de Calhoun funcione de forma contrária, com os estados tiranizando os
seus cidadãos e vetando o governo federal sempre que este tente intervir no
sentido de restringir essa tirania? Ou
de os estados estaduais se alinharem à tirania federal? O que impede os governos estaduais e o
governo federal de formarem alianças mutuamente lucrativas para explorarem em
conjunto os cidadãos? E mesmo que as
associações profissionais privadas ganhassem algum tipo de representação
"funcional" no governo, o que impediria que elas utilizassem o estado para
obter subsídios e outros privilégios para si mesmas ou para se imporem
compulsivamente aos seus próprios membros?
Em resumo, Calhoun não
leva a sua inovadora teoria da concordância suficientemente longe: ele não a
leva até ao próprio indivíduo. Se, afinal, são os direitos do indivíduo que
devem ser protegidos, então uma teoria da concordância implicaria que o poder
de veto pertencesse a cada indivíduo; ou seja, uma forma de "princípio da
unanimidade". Quando Calhoun escreveu
que seria "impossível instituir ou manter [um governo] sem o consentimento de
todos", ele estava implicitamente, ainda que não intencionalmente, sugerindo
justamente esta conclusão.[xxxi] Mas tal especulação começa a nos levar para
longe do assunto em questão, pois indo por este caminho encontramos sistemas
políticos que dificilmente poderiam ser chamados "estatais".[xxxii] Para começar, assim como o direito de
anulação de um estado implica logicamente o seu direito à secessão, também o direito de anulação individual implicaria o
direito de qualquer indivíduo se "separar" do estado sob o qual vive.[xxxiii]
Portanto, o estado tem
invariavelmente demonstrado um talento exímio para a expansão dos seus poderes
para além de quaisquer limites que possam lhe ser impostos. Uma vez que o estado sobrevive
necessariamente do confisco compulsório do capital privado, e uma vez que a sua
expansão envolve necessariamente uma incursão cada vez maior sobre indivíduos e
empresas privadas, é imperativo afirmar que o estado é uma instituição profunda
e inerentemente anticapitalista. Em certo sentido, a nossa posição é o inverso
da máxima marxista que diz que o estado é atualmente o "comitê executivo" da
classe dominante, supostamente os capitalistas.
Ao contrário, o estado — a organização dos meios políticos — é
constituído pela — e é a fonte da — "classe dominante" (ou melhor, casta dominante) e está em permanente
oposição ao capital genuinamente
privado. Podemos, portanto, concordar com Jouvenel:
Apenas aqueles
que nada sabem sobre outras épocas senão a sua, que estão completamente às
escuras quanto ao modo de funcionamento do Poder desde há milhares de anos,
verão estes procedimentos [estatização, imposto de renda etc.] como o fruto de
um conjunto particular de doutrinas.
Estas são, na realidade, as manifestações normais do Poder, e em nada
diferem na sua natureza em relação aos confiscos dos mosteiros realizados por
Henrique VIII. É o mesmo princípio em operação; o apetite por autoridade, a
sede por recursos; e em todas estas operações estão presentes as mesmas
características, inclusive o rápido crescimento daqueles que dividem os
espólios. Seja Socialista ou não, o
Poder tem sempre de estar em guerra com as autoridades capitalistas e despojar
os capitalistas da sua riqueza acumulada; ao fazê-lo, obedece às leis da sua
própria natureza.[xxxiv]
O que o estado teme
O que o estado teme
acima de tudo, claro, é qualquer ameaça fundamental ao seu próprio poder e à
sua existência. A morte do estado pode
ocorrer de duas formas: (a) por meio da sua conquista por outro estado, ou (b)
por meio de um golpe revolucionário feito pelos seus próprios súditos — ou
seja, por meio da guerra ou da revolução.
Guerra e revolução, sendo as duas ameaças essenciais, invariavelmente
suscitam nos governantes estatais esforços máximos e a máxima propaganda
possível direcionada à população. Como
dito anteriormente, qualquer meio deve sempre ser utilizado para mobilizar as
pessoas a defender o estado na crença de que estão defendendo a si mesmas. A fraude subjacente a esta ideia torna-se
evidente quando o recrutamento compulsório é utilizado contra aqueles que se
recusam a "defender-se" e que são, como tal, forçados a juntar-se ao aparato
militar do estado: desnecessário dizer que não lhes é permitida qualquer
"defesa" contra este ato cometido pelo "seu próprio" estado.
Em uma guerra, o poder
do estado é levado ao extremo, e sob os slogans da "defesa" e da "emergência",
ele pode impor uma tirania ao público que, em tempos de paz, enfrentaria franca
e aberta resistência. Desta forma, a
guerra provê muitos benefícios a um estado e, de fato, todas as guerras
modernas trouxeram aos povos envolvidos um permanente legado de maiores
encargos estatais sobre a sociedade. A
guerra, além disso, provê ao estado oportunidades tentadoras de conquistar
territórios sobre os quais pode exercer o seu monopólio da força. Definitivamente, Randolph Bourne estava
correto quando disse que "a guerra é a saúde do estado"; porém, para qualquer
estado em particular, uma guerra pode significar tanto sua saúde quanto
estragos irreparáveis.[xxxv]
Podemos colocar à prova a hipótese de que o estado está majoritariamente
interessado em proteger a si mesmo, e não os seus súditos, levantando a
seguinte questão: qual a categoria de crimes que o estado persegue e pune mais
intensamente — aqueles cometidos contra os cidadãos ou aqueles cometidos
contra ele próprio? No vocabulário do estado, os crimes mais
graves são quase invariavelmente não-agressões contra indivíduos ou contra a
propriedade privada, mas sim ataques contra o próprio bem-estar do estado: por
exemplo, traição, deserção de um soldado para o lado inimigo, fugir do
alistamento militar compulsório, subversão e conspiração subversiva,
assassinato de governantes, e crimes econômicos contra o estado, como falsificação
da sua moeda ou evasão fiscal.
Ou compare a intensidade dedicada à perseguição de um homem que tenha
atacado um policial com a atenção que o estado concede ao ataque a um cidadão
comum. Curiosamente, no entanto, esta
explícita prioridade do estado à sua
própria contra o público não parece suscitar nas pessoas nenhum sentimento
de incoerência e inconsistência em relação à sua pretensa raison d'etre.[xxxvi]
Como os estados se relacionam entre si
Uma vez que a área territorial do planeta se encontra dividida entre
diferentes estados, as relações interestatais ocupam uma grande parte do tempo
e da energia do estado. A tendência
natural de um estado é expandir o seu poder e, externamente, essa expansão
dá-se através da conquista de territórios.
A não ser que o território não pertença a outro estado ou que seja
inabitado, qualquer expansão envolve um conflito inerente de interesses entre
dois grupos distintos de governantes estatais.
Apenas um dos grupos de governantes pode obter o monopólio da coerção sobre
um dado território em um determinado momento: o poder completo sobre uma área
territorial pelo estado X pode apenas ser ganho pela expulsão do estado Y. A guerra, embora com riscos, será uma
tendência perene entre os estados, com períodos pontuais de paz e de alterações
de alianças e coalizões entre estados.
As tentativas "internas" ou "domésticas" para limitar o estado, entre o
século XVII e o século XIX, alcançaram a sua forma mais notável no
constitucionalismo. A sua contrapartida
"externa", ou das "relações internacionais", foi o desenvolvimento do "direito
internacional", especialmente nas suas formas de "leis de guerra" e
"neutralidade em guerra".[xxxvii] Algumas partes do direito internacional eram,
na sua origem, puramente privadas, tendo sido desenvolvidas pela necessidade
dos mercadores e comerciantes de proteger a sua propriedade e deliberar
contendas. Temos como exemplos a lei do
almirantado (direito marítimo) e a lex
mercatoria.
Mas até as regras governamentais surgiram voluntariamente sem nunca
terem sido impostas por qualquer super estado.
O objetivo das "leis de guerra" era limitar a destruição interestatal ao
próprio aparato do estado,
preservando assim o público "civil" inocente da matança e devastação da
guerra. O objetivo do desenvolvimento do
direito à neutralidade era o de preservar o comércio internacional civil
privado, mesmo entre países "inimigos", do ataque por parte de um dos lados em guerra.
O objetivo mais abrangente, portanto, era limitar a
âmbito de qualquer guerra e, especificamente, o de limitar o seu impacto
destrutivo sobre os cidadãos dos países neutros e até dos países em guerra.
O jurista F.J.P. Veale descreve graciosamente uma dessas "guerras
civilizadas" que floresceram por um breve período na Itália durante o século
XV:
... os burgueses ricos e os mercadores da Itália medieval estavam
demasiado ocupados ganhando dinheiro e aproveitando a vida para se
comprometerem pessoalmente com as durezas e os perigos da guerra. Por isso adotaram a prática de contratar
mercenários para lutar suas guerras por eles e, sendo frugais, pessoas de
negócio, dispensavam os seus mercenários assim que os seus serviços se tornavam
desnecessários. As guerras eram,
portanto, lutadas por exércitos contratados para cada empreitada .... Pela
primeira vez, ser soldado tornou-se uma profissão razoável e relativamente
segura. Os generais desse período
manobravam uns contra os outros, frequentemente com grande perícia, mas quando
um obtinha uma posição de vantagem, o seu oponente batia em retirada ou
rendia-se. Era uma regra aceita e
reconhecida que uma cidade só podia ser saqueada se oferecesse resistência: a
imunidade podendo sempre ser adquirida por meio do pagamento de um resgate. ...
Uma das consequências naturais era que nunca nenhuma cidade oferecia
resistência, sendo óbvio que um governo demasiado fraco para defender os seus
cidadãos não merecia a sua lealdade. Os
civis tinham pouco a temer dos perigos da guerra, que dizia respeito apenas aos
soldados profissionais.[xxxviii]
A quase absoluta separação entre o indivíduo
civil e as guerras do estado na Europa do século XVIII é realçada por Nef:
Nem as comunicações postais eram devidamente cortadas por muito tempo em
períodos de guerra. As cartas circulavam
sem censura, com uma liberdade surpreendente para a mentalidade do século
XX. ... Os cidadãos de duas nações em
guerra conversavam entre si quando se encontravam e, quando não se encontravam,
correspondiam-se, não como inimigos mas como amigos. A noção moderna de que os súditos de um país
inimigo são parcialmente responsáveis pelos atos beligerantes dos seus
governantes era praticamente inexistente.
Nem os governantes em conflito tinham qualquer intenção real de cortar
as comunicações com os súditos do inimigo.
As antigas práticas inquisitoriais de espionagem relacionadas ao culto
religioso e à fé estavam desaparecendo, e não se imaginava sequer qualquer
prática comparável de inquisição em relação a comunicações políticas ou econômicas. O passaporte foi originalmente criado para
prover uma imunidade oficial em tempo de guerra. Durante a maior parte do século XVIII,
raramente um Europeu desistia das suas viagens a um país estrangeiro contra o
qual o seu próprio estava em guerra.[xxxix]
E sendo o comércio crescentemente reconhecido como benéfico para ambas
as partes, os períodos de guerra no século XVIII incluíam também uma
considerável quantidade de "comércio com o inimigo".[xl]
Não é preciso nem entrar nos detalhes de quanto
os estados transcenderam as regras da guerra civilizada no século XX. Na era moderna da guerra total, combinada com
a tecnologia de destruição total, a própria ideia de manter a guerra limitada
ao aparato estatal parece ainda mais antiquada e obsoleta do que a Constituição
original dos Estados Unidos.
Quando os estados não estão em guerra, acordos
são frequentemente necessários para manter as desavenças ao mínimo. Uma doutrina que curiosamente ganhou uma
grande aceitação é a suposta "santidade dos tratados". Este conceito é visto como a contrapartida da
"santidade do contrato". Mas um tratado
nada tem em comum com um contrato genuíno.
Um contrato transfere, de forma definida, títulos sobre a propriedade
privada. Uma vez que um governo não "é o proprietário", em nenhum sentido legítimo, da sua área
territorial, nenhum acordo que ele possa fazer irá conferir títulos de
propriedade.
Se, por exemplo, João vender ou doar a sua
terra a José, o herdeiro de João não pode legitimamente ir até o herdeiro de
José e dizer que a terra é sua. O título
de propriedade já foi transferido. O
contrato do velho João está automaticamente vinculado ao herdeiro de João, pois
o velho João já havia transferido a propriedade; o herdeiro de João pode apenas
reivindicar aquilo que ele herdou do velho João, e o velho João pode apenas
legar a propriedade que ainda lhe pertence.
Mas se, em uma determinada data, o governo da, digamos, Ruritânia é
coagido ou até mesmo subornado pelo governo da Ualdávia para ceder parte do seu
território, é absurdo afirmar que os governos ou os habitantes dos dois países
estão para sempre impedidos de exigir a reunificação da Ruritânia por causa da
santidade do tratado. Nem as pessoas nem
a terra do noroeste da Ruritânia pertencem a qualquer um dos dois
governos.
Como corolário, um governo definitivamente não
pode vincular, baseando-se em propriedades consideradas "inalienáveis", um
governo seguinte por meio de um tratado.
Similarmente, um governo revolucionário que tenha derrubado o rei da
Ruritânia não pode ser responsabilizado pelas ações e dívidas do rei, pois um
governo não é, como o é uma criança, um verdadeiro "herdeiro" da propriedade do
seu predecessor.
A história como uma batalha entre o poder
estatal e o poder social
Assim como as duas interrelações humanas
básicas e mutuamente exclusivas são a cooperação pacífica ou a exploração
coerciva — produção ou depredação —, a história da humanidade, em particular
a sua história econômica, também pode ser considerada uma disputa entre estes
dois princípios. De um lado, existe a
produtividade criativa, as trocas pacíficas e a cooperação; de outro, o
despotismo coercivo e a depredação das relações sociais.
Albert Jay Nock apelidou estas duas forças
concorrentes com os termos "poder social" e "poder estatal".[xli] O poder social é o poder do homem sobre a natureza — sua transformação cooperativa
dos recursos naturais e a compreensão racional das leis da natureza — para o
benefício de todos os indivíduos participantes.
O poder social é o poder sobre a natureza, o alcançar de um melhor
padrão de vida por meio da troca mútua entre os homens. Já o poder estatal, como vimos, é a
apropriação coerciva e parasítica desta produção — uma drenagem dos frutos da
sociedade para benefício de indivíduos não produtivos (na verdade,
antiprodutivos), os quais se impõem como governantes.
Ao passo que o poder social é exercido sobre a
natureza, o poder estatal é o poder
exercido sobre o homem. Ao longo da história, as forças criativas e
produtivas do homem têm, repetidamente, aberto caminho a novas formas de
transformar a natureza para seu benefício.
Isto ocorreu nos momentos em que o poder social conseguiu se manter à
frente do poder estatal, momentos em que a invasão do estado sobre a sociedade
foi consideravelmente diminuída. Porém,
sem exceção, após intervalos às vezes mais curtos, outras vezes mais longos, o
estado sempre se move em direção a essas novas áreas, para mais uma vez
confiscar e debilitar o poder social.[xlii]
S e o período entre o século XVII e o século XIX foi, para muitos dos países
ocidentais, uma época de crescimento do poder social com um consequente aumento
da liberdade, da paz e do bem-estar material, o século XX foi principalmente
uma era em que o poder estatal foi recuperando o poder que havia perdido — com
uma consequente reversão rumo à escravidão, à guerra e à destruição.[xliii]
Neste século, a espécie humana enfrenta,
novamente, o reinado virulento do estado — do estado agora armado com os
frutos dos poderes criativos da humanidade, confiscados e adulterados para os
seus próprios fins. Os últimos séculos
foram tempos em que os homens tentaram colocar limites constitucionais ao
estado, apenas para concluírem, mais tarde, que tais limites, como todas as
outras tentativas, fracassaram.
Dentre todas as numerosas formas que os
governos assumiram ao longo dos séculos, dentre todos os conceitos e
instituições que foram experimentados, nenhum conseguiu manter o estado sob
controle. O problema do estado evidentemente
nunca esteve tão longe de ser resolvido como está atualmente. Talvez novos caminhos devam ser explorados em
busca de soluções se realmente quisermos algum dia resolver de uma vez por
todas a questão do estado.[xliv]
Traduzido por Tiago Chabert
[i] Não é o objetivo deste trabalho
desenvolver os inúmeros problemas e enganos da "democracia". É o suficiente dizer
que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou "representante", está sempre
sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e
não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente,
o "representante" numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de
agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.
[ii] Os sociais-democratas respondem
muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica
logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria,
pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria. Aparte de outras falhas, este argumento
obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por
exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da
maioria.
[iii] Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, Socialismo e Democracia)
(New York: Harper and Bros., 1942), p. 198.
A fricção e o antagonismo entre a
esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que
o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com
propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da
força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de
um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida
se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.
Ver também
Murray N. Rothbard, "The Fallacy of the 'Public Sector'", New Individualist
Review (Summer, 1961): 3ff.
[iv] Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press,
1926) p. 24-27:
Existem duas formas fundamentalmente
opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios
necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto,
o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho,
na discussão que se segue, chamar
ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos
outros, de "meio econômico" para a satisfação das necessidades enquanto a
apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de "meio político".
O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode
existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos
para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou
apropriados por roubo bélico.
[v] Albert Jay Nock escreve de forma
clara que:
o estado reivindica e exercita o
monopólio do crime. Ele proíbe o homicídio privado mas ele mesmo organiza o
assassínio numa escala colossal. Ele pune o roubo privado mas ele próprio deita
as suas mãos sem escrúpulos a tudo o que ele quer, seja propriedade dos seus
cidadãos seja de estrangeiros.
Nock, On Doing the Right Thing, and Other
Essays (New York: Harper and Bros., 1929), p.143
[vi] Oppenheimer, The State, p.15:
O que é, então, o estado como
conceito sociológico? O estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição
social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o
propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os
venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos.
Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da
exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.
E de Jouvenel escreveu: "o estado é na sua essência o resultado dos
sucessos alcançados por um grupo de bandidos que se impôs a uma sociedade
gentil e pacífica". Bertrand de Jouvenel, On
Power (New York: Viking Press, 1949) p.100-101.
[vii] A respeito da distinção crucial entre
"casta", um grupo com privilégios ou opressões transmitidos coercivamente ou
impostas pelo estado, e o conceito marxista de "classe" na sociedade, ver
Ludwig von Mises, Theory and History
(New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1957), p. 112ff.
[viii] É claro que tal aceitação não implica
que o domínio do estado tenha se tornado "voluntário"; pois mesmo que a maioria
o apoie de forma ávida e ativa, esse apoio não é unânime.
[ix] Que todo governo, independentemente
do grau de imposição "ditatorial", tem que assegurar tal apoio tem sido
demonstrado por profundos teóricos políticos tais como Étienne de la Boétie, David Hume, e
Ludwig von Mises. Cf. David Hume, "Of the
First Principles of Government", in
Essays, Literary, Moral and Political (London: Ward, Locke, and Taylor, n.d.), p.
23; Étienne de la Boétie, Anti-Dictator (New York: Columbia University Press, 1942), p. 8-9; Ludwig von Mises, Human Action (Auburn, Alabama: Mises Institute, 1998), p. 188ff. Para mais acerca da contribuição para
a análise do estado por la
Boétie, ver Oscar Jaszi e John D. Lewis, Against the Tyrant (Glencoe, Illinois: The Free Press, 1957), p.
55-57.
[x] La
Boétie, Anti-Dictator,
p. 43-44.
Sempre que um governante se faz
ditador todos aqueles que se deixam corromper pela ambição desmedida ou por
uma avareza extraordinária, reúnem-se em torno dele e apoiam-no para que possam
ficar com uma porção do espólio e para se instalarem como pequenos chefes
abaixo do grande tirano.
[xi] Isto de maneira nenhuma implica que
todos os intelectuais se aliam ao estado. Acerca dos aspectos da aliança entre
intelectuais e o estado, ver Bertrand de Jouvenel, "The Attitude of the Intellectuals to the Market Society", The Owl
(Janeiro, 1951): 19-27; idem, "The
Treatment of Capitalism by Continental Intellectuals," in F.A. Hayek, ed., Capitalism and the Historians (Chicago:
University of Chicago Press, 1954), p. 93-123; reimpresso em George B. de Huszar, The Intellectuals (Glencoe, Illinois:
The Free Press, 1960), p. 385-99; e Schumpeter, Imperialism and Social Classes (New York: Meridian Books, 1975), p.
143-55.
[xii] Joseph Needham, "Revisão
de Karl A. Wittfogel, Despotismo Oriental", Science and Society (1958):
65. Needham também escreve que "os
sucessivos imperadores [Chineses] foram servidos em todas as épocas por uma
grande companhia de eruditos profundamente humanos e desinteressados",
p.61. Wittfogel nota que, na doutrina
Confucionista, a glória da classe governante repousa nos seus oficiais
erudito-burocratas cavalheirescos, destinados a serem governantes profissionais
que ditam para a grande massa da população. Karl A. Wittfogel, Oriental
Despotism (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1957), p. 320-21 e passim.
Para
uma atitude que contrasta com a de Needham, ver John Lukacs, "Intellectual Class or Intellectual
Profession?" in de Huszar, The
Intellectuals, p. 521-22.
[xiii] Jeanne Ribs, "The War
Plotters," Liberation (August, 1961): 13, "os estrategistas insistem que
a sua ocupação merece a 'dignidade da contraparte acadêmica da profissão
militar'". Ver também Marcus Raskin, "The Megadeath Intellectuals", New York
Review of Books (November 14, 1963): 6-7.
[xiv] Por isso o historiador Conyers Read, no
seu discurso presidencial, argumentou a favor da supressão de fatos históricos
como sendo um serviço aos valores "democráticos" e nacionais. Read proclamou
que "a guerra total, seja quente ou fria,
alista toda a gente e apela a que todos cumpram o seu papel. O historiador não
é mais livre desta obrigação do que o físico". Read, "The Social
Responsibilities of the Historian," American Historical Review (1951):
283ff. Para uma crítica de Read e outros aspectos de historia oficial, ver
Howard K. Beale, "The Professional Historian: His Theory and Practice," The
Pacific Historical Review (August, 1953): 227-55. Também cf. Herbert
Butterfield, "Official History: Its Pitfalls and Criteria," History and
Human Relations (New York: Macmillan, 1952), p. 182-224; e Harry Elmer
Barnes, The Court Historians Versus Revisionism (n.d.), p. 2ff.
[xv] Cf. Wittfogel, Oriental
Despotism, p87-100. Acerca dos papéis contrastantes da religião
vis-à-vis o estado na China antiga e Japão, ver Norman Jacobs, The Origin of
Modern Capitalism and Eastern Asia (Hong Kong: Hong Kong University Press,
1958), p. 161-94.
[xvi] De
Jouvenel, On Power, p. 22:
A razão
essencial para a obediência é que esta se tornou um hábito da espécie. O poder
é para nós um fato da natureza. Desde os primórdios da história que sempre
presidiu aos destinos humanos. as autoridades que dominavam [as sociedades] em
tempos anteriores não desapareciam sem deixar o legado de privilégio aos seus
sucessores nem sem deixar na mente dos homens impressões que são cumulativas no
seu efeito. A sucessão de governos que, num curso de séculos, dominou a mesma
sociedade pode ser vista como um único governo subjacente em contínuo
crescente.
[xvii] Acerca da utilização da religião na
China para tais efeitos, ver Norman Jacobs, passim.
[xviii] H.L. Mencken, A
Mencken Chrestomathy (New York: Knopf, 1949), p. 145:
Tudo o que o
governo consegue ver numa ideia original é o potencial para a mudança, e dessa
forma uma invasão das suas prerrogativas. O homem mais perigoso, para qualquer
governo, é o homem que é capaz de pensar por si mesmo acerca dos assuntos, sem
ter em conta as superstições e os tabus prevalecentes. Quase inevitavelmente,
ele chega à conclusão que o governo sob o qual vive é desonesto, louco e
intolerável, e por isso, se for um aventuroso, ele tenta mudá-lo. E mesmo que
ele próprio não seja aventuroso, ele é muito capaz de espalhar o
descontentamento entre aqueles que o são.
[xix] Ibid.,
p. 146-47.
[xx] De
Jouvenel, On Power, p. 27ff.
[xxi] Charles
L. Black. Jr., The People and the Court (New York: Macmillan, 1960), p.
35ff.
[xxii] Ibid.,
p. 42-43.
[xxiii] Ibid.,
p. 52:
A mais nobre e necessária
função da Suprema Corte tem sido a de validação, não de invalidação. O que um
governo com poderes limitados precisa, no início e sempre, é algum meio que
convença as pessoas que tenha feito tudo o que é humanamente possível para se
manter dentro dos seus limites. Esta é a condição para a sua legitimidade, e a
sua legitimidade, a longo prazo, é a condição para a sua sobrevivência. E o
Tribunal, através da sua história, tem sido o que dá legitimidade ao governo.
[xxiv] Embora
completamente paradoxal, para Black esta solução é alegre e despreocupadamente
evidente:
O poder final do estado. deve parar onde a lei pára. E
quem fixará o limite, e quem aplicará uma trava, face ao poder mais possante?
Ora, o próprio estado, claro, através dos seus juízes e das suas leis. Quem é
que controla o moderado? Quem é que ensina o sábio? (Ibid., p. 32-33)
E ainda:
Quando as questões dizem respeito ao poder
governamental numa nação soberana, não é possível selecionar um árbitro que
esteja fora do governo. Qualquer governo nacional, enquanto for um governo, tem
que ter a palavra última acerca do seu próprio poder. (Ibid., p. 48-49)
[xxv] Ibid.,
p.49.
[xxvi] A
atribuição do milagroso ao governo é reminiscente da justificação do governo de
James Burnham através do misticismo e da irracionalidade:
Em tempos antigos, antes das ilusões da ciência terem
corrompido a sabedoria tradicional, os fundadores de cidades eram tidos como
deuses ou semideuses. Nem a raiz nem a justificação para o governo podem ser
postas em termos totalmente racionais. porque é que eu devo aceitar a
hereditariedade ou a democracia ou qualquer outro princípio de legitimidade?
Porque é que um princípio pode justificar o domínio desse homem sobre mim? . Eu
aceito o princípio porque. bem, porque sim, porque é assim que é e que tem
sido.
James Burnham, Congress and the American Tradition
(Chicago: Regnery, 1959), p. 3-8. Mas e se uma pessoa não aceitar o princípio? Qual será "o
caminho", então?
[xxvii] Black, The People and the Court, p. 64.
[xxviii] Ibid., p. 65.
[xxix] John C. Calhoun, A Disquisition on Government (New York: Liberal Arts Press, 1953),
p. 25-27. Também cf. Murray N.
Rothbard, "Conservatism and
Freedom: A Libertarian Comment", Modern Age (Spring, 1961): 219.
[xxx] J.
Allen Smith, The Growth and Decadence of Constitutional Government (New
York: Henry Holt, 1930), p. 88. Smith acrescenta:
Era óbvio que uma provisão
na Constituição, embora desenhada para limitar os poderes de um órgão
governamental, pudesse ser efetivamente anulada caso a sua interpretação e
aplicação fossem deixadas às autoridades que ela visava deter. O senso comum
exigia, claramente, que nenhum órgão do governo pudesse ser capaz de determinar
o seu próprio poder.
Fica claro que o senso
comum dita uma visão muito diferente da de "milagres" no que tange ao governo.
(p. 87)
[xxxi] Calhoun, A Disquisition on Government, p.
20-21.
[xxxii] Recentemente, o princípio da unanimidade tem
sido restaurado de forma altamente diluída, particularmente nos escritos do
Professor James Buchanan. Cf. James Buchanan and
Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of
Michigan Press, 1962), passim.
[xxxiii] Cf.
Herbert Spencer, "The Right to Ignore the State", in Social Statics (New
York: D. Appleton, 1890), p. 229-39.
[xxxiv] De
Jouvenel, On Power, p. 171.
[xxxv] Vimos que o apoio por
parte dos intelectuais é fundamental ao estado, e isto inclui o apoio contra as
suas duas ameaças essenciais. Assim, acerca do papel dos intelectuais
americanos no envolvimento dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, ver Randolph Bourne,
"The War and the Intellectuals," em The History of a Literary Radical and
Other Papers (New York: S.A. Russell, 1956), p. 205-22.
Tal como Bourne evidencia, um dos métodos
comuns dos intelectuais para ganhar o apoio do público para as ações do estado
é o de desviar qualquer discussão para os limites da política do estado e de
desencorajar qualquer crítica total ou fundamental deste enquadramento básico.
[xxxvi] Tal como
Mencken o descreve, à sua maneira inconfundível:
Esta gangue ("os exploradores que formam o governo") é
praticamente imune ao castigo. As suas extorsões mais graves, mesmo quando são
claramente para proveito privado, não acarretam qualquer pena certa sob as
nossas leis. Desde os primeiros dias da República que não mais que algumas
dúzias dos seus membros foram impugnados dos seus mandatos, e apenas alguns
subordinados obscuros foram encarcerados. A quantidade de homens postos na
prisão por se revoltarem contra as extorsões do governo é sempre dez vezes
maior do que a quantidade de representantes do governo que são condenados por
oprimir os pagadores de impostos para seu ganho próprio. (Mencken, A Mencken Chrestomathy, p. 147-48)
Para uma vívida e divertida descrição da falta
de proteção ao indivíduo contra as incursões à sua liberdade feitas pelos seus
"protetores", ver H.L. Mencken, "The Nature
of Liberty," in Prejudices: A Selection (New York: Vintage Books, 1958),
p. 138-43.
[xxxvii] Isto deve ser distinguido do
direito internacional moderno e da sua ênfase em maximizar a extensão da guerra
através de conceitos como o de "segurança coletiva".
[xxxviii] F.J.P. Veale, Advance
to Barbarism (Appleton, Wis.: C.C. Nelson, 1953), p. 63. De forma
semelhante, o Professor Nef escreve acerca da Guerra de Don Carlos que ocorreu
na Itália, no século XVIII, entre a França, a Espanha e a Sardenha contra a
Áustria:
No cerco dos aliados a Milão e, várias semanas
depois, em Parma os exércitos rivais defrontaram-se numa batalha feroz fora da
cidade. Em ambos os locais os habitantes nunca se mostraram muito simpatizantes
com qualquer um dos lados. O seu único medo era que qualquer um dos exércitos
passasse os portões e fizesse uma pilhagem. O seu medo provou-se infundado. Em
Parma os cidadãos corriam para os muros da cidade para ver a batalha que se
dava adiante, em campo aberto. (John U. Nef, War
and Human Progress [Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1950],
p. 158)
Também
cf. Hoffman Nickerson, Can We Limit War? (New York: Frederick A. Stoke,
1934).
[xxxix] Nef, War
and Human Progress, p. 162.
[xl] Ibid.,
p. 161. Sobre a defesa do comércio com o inimigo por líderes da Revolução
Americana, ver Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization (New
York: Viking Press, 1946), vol. 1, p. 210-11.
[xli] Sobre
os conceitos de poder estatal e poder social, ver Albert J. Nock, Our Enemy
the State (Caldwell, Idaho: Caxton Printers, 1946). Ver também Nock, Memoirs of a Superfluous Man (New York: Harpers,
1943), e Frank Chodorov, The Rise and Fall of Society (New York:
Devin-Adair, 1959).
[xlii] Entre o
fluxo de expansão ou contração, o estado assegura-se sempre de que captura e
retém certas "posições de comando" cruciais da economia e da sociedade. Entre
essas posições de comando encontram-se o monopólio da violência, o monopólio do
poder judicial final, os canais de comunicação e transporte (correios,
estradas, rios, rotas aéreas), água de irrigação no caso do despotismo
Oriental, e a educação - de forma a moldar as opiniões dos seus futuros
cidadãos. Na economia moderna, o dinheiro é o posto de comando crucial.
[xliii] Este
processo parasítico de "recuperação" foi quase abertamente proclamado por Karl
Marx, que admitiu que o socialismo deve ser estabelecido através do confisco do
capital previamente acumulado sob o
capitalismo.
[xliv] É certo que um dos
ingredientes indispensáveis de tal solução será a ruptura da aliança entre os
intelectuais e o estado, por meio da criação de centros de pesquisa intelectual
e educação, que serão independentes do estado. Christopher Dawson aponta que os
grandes movimentos intelectuais da Renascença e do Iluminismo foram alcançados
por meio de um trabalho à margem das — e por vezes contra as — universidades
estabelecidas. Estes acadêmicos das novas ideias estabeleceram-se com a colaboração
de patronos independentes. Ver Christopher Dawson, The
Crisis of Western Education (New York: Sheed and Ward, 1961).