O artigo a seguir é um excerto do livro A Short History of Man: Progress and Decline
É
razoável começar uma análise da história humana 5 milhões de anos atrás, quando
a linhagem humana evolucionária se separou da linhagem de nosso parente não-humano mais
próximo, o chimpanzé. Também é razoável
começar 2,5 milhões de anos atrás, com a primeira aparição do homo habilis; ou 200.000 anos atrás,
quando surgiu o primeiro representante do "homem anatomicamente moderno"; ou
100.000 atrás, quando o homem anatomicamente moderno adquiriu a forma humana
padrão. Entretanto, quero começar apenas
50.000 anos atrás.
Esta
é uma data eminentemente razoável também.
Nessa época, os humanos já haviam desenvolvido uma linguagem completa, o
que permitiu um radical aperfeiçoamento em sua capacidade de aprender e inovar,
fazendo com que o "homem anatomicamente moderno" evoluísse e se transformasse
no "homem de comportamento moderno".
Isto é, o homem havia adotado o estilo de vida do caçador-coletor,
estilo esse que ainda existe até hoje em alguns pontos do mundo.
Há
aproximadamente 50.000 anos, o número de "humanos modernos" provavelmente não
era superior a 5.000, todos confinados ao nordeste da África. Eles viviam em sociedades formadas por um
pequeno número de pessoas (de 10 a 30), as quais ocasionalmente se encontravam
e formavam um ajuntamento genético comum de aproximadamente 150 a 500 pessoas
(tamanho esse que os geneticistas descobriram ser o necessário para se evitar
efeitos disgênicos). A divisão do
trabalho era limitada, com a principal separação sendo aquela entre mulheres,
que atuavam principalmente como coletoras, e homens, que atuavam principalmente
como caçadores.
Apesar de tudo, a vida a
princípio parecia ter sido boa para nossos ancestrais. Apenas algumas horas de trabalho regular
permitiam uma vida confortável, com boa nutrição (alta proteína) e tempo de
lazer abundante.
Entretanto,
a vida dos caçadores e coletores teve de enfrentar um desafio excepcional. Sociedades baseadas na caça e na coleta
viviam de maneira essencialmente parasítica. Isto é, eles nada acrescentavam à oferta de bens fornecida pela
natureza. Eles apenas exauriam a oferta
de bens. Eles não produziam (exceto
algumas poucas ferramentas); apenas consumiam. Eles não cultivavam e nem criavam; simplesmente esperavam que a natureza
regenerasse e repusesse o estoque de bens consumidos.
O que essa forma de parasitismo gerava,
portanto, era o inescapável problema do crescimento populacional. Para manter uma vida confortável, a densidade
populacional tinha de permanecer extremamente baixa. Estima-se que 2,6 quilômetros quadrados de
território era o mínimo necessário para sustentar confortavelmente uma ou duas
pessoas; e em regiões menos férteis, eram necessários territórios ainda
maiores.
As
pessoas podiam, é claro, tentar impedir que tal pressão populacional surgisse,
e de fato as sociedades de caça e coleta fizeram o possível nesse sentido. As pessoas praticavam abortos, recorriam a
infanticídios — principalmente infanticídio feminino —, e reduziam o número
de gravidezes ao incorrerem em longos períodos de amamentação (o que, em
combinação com a baixa gordura corporal típica de mulheres que estavam sempre
em contínuo movimento, reduz a fertilidade feminina). Entretanto, embora isso aliviasse o problema,
não o resolvia. E a população continuou
aumentando.
Dado
que o tamanho da população não podia ser mantido em um nível estacionário,
restavam apenas três alternativas para o crescente problema do "excesso"
populacional. Podia-se abrir mão da vida
de caça e coleta e encontrar uma nova forma de organização social; podia-se entrar em conflito mortal para se
apossar da oferta limitada de alimentos; ou podia-se migrar.
Embora a migração de
modo algum fosse algo sem custos — afinal, tinha-se que trocar um território
conhecido por territórios completamente desconhecidos —, ela se transformou na
opção menos custosa. E foi assim que,
partindo da África Oriental, sua terra natal, todo o globo foi sendo sucessivamente
conquistado por grupos de pessoas que se separaram de seus familiares e foram
formar novas sociedades em áreas até então nunca ocupadas por humanos.
Essencialmente,
esse processo era sempre o mesmo: um grupo invadia um território qualquer, a
pressão populacional começava a incomodar, algumas pessoas permaneciam ali, e
outras se mudavam para outros lugares — geração após geração. Uma vez separadas, praticamente não mais
havia contato entre as várias sociedades de caça e coleta. Consequentemente, embora de início estivessem
intimamente relacionadas umas às outras através de relações de parentesco
direto, essas sociedades formaram concentrações genéticas separadas, e, ao
longo de tempo, confrontadas com ambientes naturais diferentes e como resultado
de mutações e derivações genéticas interagindo com a seleção natural, elas
assumiram aparências claramente distintas.
Tudo
indica que esse processo também começou há aproximadamente 50.000 anos, pouco
tempo depois do surgimento do "homem de comportamento moderno" e sua aquisição
da habilidade de construir barcos. Dessa
época até por volta de 12.000 a 11.000 anos atrás, as temperaturas globais
caíram gradualmente (desde então estamos em um período de aquecimento interglacial) e os níveis
dos oceanos também caíram correspondentemente.[*]
As
pessoas cruzaram o Mar Vermelho no Portão das Lágrimas —
que, na época, era apenas um curto espaço de água salpicada de ilhas —, e
chegaram à ponta sul da península Arábica (que apresentava um período
comparativamente úmido àquela época). Dali em diante, preferindo se manter em climas tropicais, para os quais
o organismo havia sido adaptado, a migração continuou voltada para o
leste. As viagens eram feitas na maioria
das vezes em barcos, pois, até há aproximadamente 6.000 anos, quando o homem
aprendeu a domar os cavalos, essa forma de transporte era muito mais rápida e
mais conveniente do que viajar à pé.
Assim,
primeiramente a migração ocorreu ao longo do litoral — e prosseguia dali até o
interior por meio de vales fluviais — até a Índia. Na Índia, aparentemente o movimento
populacional se dividiu em duas direções. De um lado, ele prosseguiu contornando a península índica até o sudeste
asiático e a Indonésia (que, na época, era conectada ao continente asiático),
finalmente chegando ao hoje "alagado" continente de Sahul (Austrália, Nova
Guiné e Tasmânia, países esses que, até 8.000 anos atrás, eram interligados por
terra). Esse continente, na época, era separado do continente asiático
apenas por um largo canal de água salpicado de ilhas que permitiam jornadas
curtas entre si. Outra parte desse mesmo
movimento contornou a Índia e tomou o rumo norte até a costa da China e,
finalmente, até o Japão.
O
segundo movimento populacional, assim como o relatado acima, também se
subdividiu. Uma corrente saiu da Índia e
tomou a direção noroeste, passando por Afeganistão, Irã e Turquia, até
finalmente chegar à Europa. A outra
corrente seguiu a direção nordeste até o sul da Sibéria.
Migrações
posteriores, muito provavelmente ocorridas em três ondas, com a primeira
ocorrendo entre 14.000 e 12.000 anos atrás, saíram da Sibéria, passaram pelo
Estreito de Bering — na época (aproximadamente 11.000 anos atrás) uma ponte de
terra — e chegaram ao continente americano. Apenas 1.000 anos depois, aparentemente chegaram à Patagônia. A última rota de migração partiu de Taiwan, que
5.000 anos atrás já estava ocupada, navegou pelo Pacífico e chegou às ilhas da
Polinésia. E, finalmente, apenas 800
anos atrás, chegaram à Nova Zelândia.
Independentemente
de todos os detalhes complicados, o fato é que, a partir de um determinado
momento, a massa de terra disponível para ajudar a satisfazer as necessidades
humanas não mais podia ser aumentada. Para utilizar um jargão econômico, a oferta do fator de produção "terra"
se tornou fixa, o que significa que todo e qualquer aumento no tamanho da
população humana tinha de ser sustentado pela mesma e imutável quantidade de
terra.
Baseando-se na lei econômica dos
retornos, sabemos que esta situação tem de resultar em um problema
malthusiano. A lei dos retornos declara
que, para qualquer combinação dos fatores de produção — no caso específico:
terra e trabalho —, existe uma combinação ótima. Se esta combinação ótima não for seguida,
isto é, se apenas um fator de produção for aumentado — no caso, o trabalho —
enquanto o outro — a terra — for mantido constante, então a quantidade de
bens físicos produzida não aumentará absolutamente nada ou, na melhor das
hipóteses, aumentará em uma proporção muito menor do que o aumento do fator
trabalho.
Ou
seja, tudo o mais constante, um aumento no tamanho da população para além de um
determinado ponto não é acompanhado de um aumento proporcional da riqueza. Se esse ponto for ultrapassado, a quantidade
per capita de bens físicos produzidos diminui. E o padrão de vida, na média, irá cair. Atinge-se um ponto de superpopulação absoluta.
O
que fazer quando confrontado com esse desafio? Das três opções previamente disponíveis como resposta a um aumento na
pressão populacional — migrar, guerrear ou encontrar um novo modo de
organização social —, somente as duas últimas continuavam disponíveis. Aqui irei abordar a última resposta, que é a
solução pacífica.
O
desafio foi respondido com uma reação dupla: de um lado, por meio da
economização da terra; de outro, por meio da "privatização" da produção de
rebentos — em suma: por meio da instituição da família e da propriedade
privada.
Para
entender essas reações, é preciso antes olharmos o tratamento dado ao fator de
produção "terra" pelas sociedades de caça e coleta.
Pode-se
seguramente assumir que a propriedade privada existia dentro da estrutura de
uma família tribal. A propriedade
privada existia para coisas como vestimentas pessoais, ferramentas, utensílios
e ornamentos. Quando tais itens eram
produzidos por indivíduos específicos e identificáveis (durante seus momentos
de lazer), ou eram adquiridos de seus fabricantes originais por meio de trocas
ou mesmo como presentes, eles eram considerados propriedade individual.
Por
outro lado, quando os bens eram o resultado de algum esforço conjunto, eles
eram considerados bens coletivos. Isso
se aplicava de maneira mais definitiva para os meios de subsistência: aos
alimentos coletados e aos animais selvagens caçados em decorrência de alguma
divisão intra-tribal do trabalho. (Sem
dúvida, a propriedade coletiva, desta forma, teve um papel muito proeminente
nas sociedades de caça e coleta, e é por causa disso que o termo "comunismo
primitivo" tem sido frequentemente empregado para descrever as economias
tribais primitivas: cada indivíduo contribuía para a "renda" familiar de acordo
com suas capacidades, e cada indivíduo recebia sua fatia de renda de acordo com
suas necessidades.)
E
o que dizer sobre a terra em que todas as atividades tribais ocorriam? Pode-se seguramente descartar a hipótese de
que a terra era considerada propriedade privada. Porém, seria ela propriedade coletiva? Tipicamente, isso tem sido assumido como
verdade. Entretanto, o fato é que a
terra não era nem propriedade coletiva nem propriedade privada, mas sim apenas
parte do ambiente — ou, mais
especificamente, a terra possibilitava as condições
gerais da ação humana.
O
mundo externo em que as ações do homem ocorriam pode ser dividido em duas
partes categoricamente distintas. De um
lado, havia aqueles elementos que eram considerados meios — ou bens econômicos;
de outro lado, havia aqueles elementos que eram considerados o ambiente. São três os requisitos para que um
elemento do mundo externo seja classificado como um meio ou como um bem
econômico. Primeiro, para que um
elemento se torne um bem econômico, deve haver uma necessidade humana. Segundo, deve haver a percepção humana de que
tal elemento é dotado de propriedades que satisfaçam essa necessidade. Terceiro, e mais importante no presente
contexto, um elemento do mundo externo assim percebido deve estar sob o controle humano, de modo que ele possa
ser empregado para satisfazer essa necessidade.
Ou
seja, somente se um elemento apresentar uma conexão causal com uma necessidade
humana, e esse elemento estiver sob o
controle humano, pode-se então dizer que essa entidade foi apropriada —
tornou-se um bem — e, assim, virou propriedade de alguém.
Por outro lado, se um elemento do mundo
externo apresentar uma conexão causal com uma necessidade humana, porém ninguém
o controla ou interfere nele, então tal elemento deve ser considerado parte de
um ambiente não apropriado por ninguém — logo, não é propriedade de ninguém.
Com
o auxílio dessas considerações, é possível agora responder à questão a respeito
do status da terra em uma sociedade de caça e coleta.
Certamente,
os frutos colhidos em um arbusto são propriedade privada; entretanto, o que dizer do
arbusto de onde os frutos foram colhidos? Ele sem dúvida apresenta uma conexão causal com esses frutos. Porém, o arbusto só deixará seu status
original de possibilitador das condições gerais da ação humana, e de mero fator
contribuinte para a satisfação das necessidades humanas, e ascenderá ao status
de propriedade e de genuíno fator de produção quando ele tiver sido apropriado
— isto é, quando o homem tiver propositadamente interferido no processo causal
e natural que interliga o arbusto aos frutos por ele produzidos.
O homem pode fazer isso ao, por exemplo,
regar o arbusto ou aparar seus galhos com o intuito de produzir um resultado
específico: no caso, um aumento da colheita de frutos acima daquele nível que, em
outros contextos, seria o obtido naturalmente.
Similarmente,
não há dúvidas de que o animal caçado é propriedade privada; porém, o que dizer
de toda a manada da qual esse animal fazia parte? A manada deve ser considerada sem
proprietário enquanto o homem ainda não houver feito nada que possa ser interpretado (e isso está em sua própria mente)
como sendo algo que crie uma conexão causal com a satisfação de uma dada necessidade. A manada se torna propriedade somente quando o
pré-requisito da interferência sobre
a cadeia natural de eventos (com o intuito de produzir algum resultado desejado)
tiver sido satisfeito. Isso ocorreria,
por exemplo, assim que o homem incorresse na prática de arrebanhar e pastorear
os animais — isto é, tão logo ele efetivamente tentasse controlar os
movimentos do rebanho.
E
o que dizer, entretanto, da terra sobre a qual o movimento controlado do
rebanho ocorre? De acordo com nossas
definições, esse pastor não pode ser considerado o proprietário dessa
terra. Condutores de rebanho meramente
seguem os movimentos naturais da manada, e sua interferência sobre a natureza
restringe-se a manter o rebanho unido de modo a ter um acesso fácil a qualquer
um dos animais caso haja a necessidade de uma maior oferta de carne animal. Condutores de rebanho não interferem na terra
para controlar os movimentos da manada; eles interferem apenas nos movimentos
dos membros da manada. A terra só irá se
tornar propriedade quando os condutores de rebanho deixarem de ser condutores e
se dedicarem à pecuária — isto é, assim que eles começarem a tratar a terra
como um meio (escasso) com o intuito de controlar o movimento dos animais.
Para isso, eles têm de controlar a terra. Isso requer que a terra seja de certa forma
delineada, seja por meio de cercas ou pela construção de alguns outros
obstáculos que restrinjam o livre fluxo natural de animais. Em vez de ser meramente um fator que
contribui para a produção de rebanhos, a terra passa assim a ser um genuíno fator
de produção.
Os
que essas considerações demonstram é que se trata de um erro imaginar que a
terra era propriedade coletiva nas sociedades de caça e coleta. Caçadores não são condutores de rebanho e
muito menos praticam a pecuária ou a criação de gado; e coletores não são
jardineiros ou agricultores. Eles não
exercem controle sobre a fauna e flora naturalmente ofertadas pelo ambiente,
pois eles não as cultivam nem administram. Eles simplesmente se apossam das partes da natureza que estão facilmente
disponíveis. Para eles, a terra nada
mais é do que uma condição para suas atividades; a terra não é sua propriedade.
Portanto, o que pode ser considerado o primeiro passo rumo a
uma solução da armadilha malthusiana enfrentada pelo crescente número de
sociedades baseadas na caça e na coleta foi precisamente o estabelecimento da
propriedade sobre a terra. Pressionados
pela queda no padrão de vida — resultante da superpopulação absoluta —,
membros das tribos (separadamente ou coletivamente) sucessivamente se apropriaram
de um número cada vez maior de terras (natureza) até então desapropriadas.
Essa apropriação da terra teve um imediato
efeito duplo. Primeiro, mais bens foram
produzidos e, correspondentemente, mais necessidades puderam ser
satisfeitas. De fato, esse efeito foi o
exato motivo por trás da apropriação da terra: a constatação de que a terra
possui uma conexão causal com a satisfação das necessidades humanas e que, mais
ainda, ela pode ser controlada.
Foi ao
controlar a terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de meramente consumi-los. (Importante observar que essa produção de bens também envolvia poupar e estocar bens para o consumo posterior). Segundo, e como consequência do primeiro, a
maior produtividade obtida por meio da economização (racionalidade no uso) da
terra possibilitou que um maior número de pessoas pudesse sobreviver com uma
mesma quantidade de terra.
Com efeito,
foi estimado que a apropriação de terra e a correspondente mudança de uma existência
baseada na caça e na coleta para uma existência baseada na agricultura e na
criação de animais possibilitou que uma população de dez a cem vezes maior do
que a população anterior pudesse ser sustentada com a mesma quantidade de
terra.
Entretanto,
a economização da terra era apenas parte da solução para o problema criado pela
crescente pressão populacional. Por meio
da apropriação da terra, fez-se um uso mais eficaz da mesma, permitindo que uma
população amplamente maior pudesse ser sustentada. Porém, a instituição da propriedade da terra,
por si só, não afetou o outro lado do problema: a contínua proliferação de
novos rebentos. Esse aspecto do problema
também requeria uma solução. Era
necessária a criação de uma instituição social que deixasse essa proliferação
sob controle. E a instituição criada
para consumar esse objetivo foi a instituição da família.
Como explicou Thomas Malthus, para solucionar
o problema da superpopulação, junto com a instituição da propriedade, o "as
relações sexuais entre os gêneros" também teve de passar por mudanças
fundamentais.
Qual era
a relação sexual entre os gêneros antes e qual foi a inovação institucional
produzida nesse sentido pela família? Em
termos de teoria econômica, pode-se descrever que a mudança se deu de uma
situação em que tanto os benefícios de se criar descendentes — a criação de mais
um produtor em potencial — quanto
especialmente os custos dessa criação — a criação de um consumidor (comedor) adicional — eram socializados, isto é, pagos
por toda a sociedade e não apenas pelos "produtores" desses rebentos, para uma
situação em que tanto os benefícios quanto os custos envolvidos na procriação
passaram a ser internalizados pelos indivíduos diretamente responsáveis pela
produção dos rebentos.
Quaisquer
que tenham sido os detalhes mais exatos, tudo indica que a instituição de um
relacionamento monógamo estável — bem como a de um relacionamento polígamo
estável — entre homens e mulheres, o que atualmente é associada ao termo
família, é algo relativamente recente na história da humanidade, e foi
precedido por uma instituição que pode ser amplamente definida como sendo de
relações sexuais "irrestritas" ou "não reguladas", ou mesmo de "matrimônio
grupal" ou "poliamor"
(algumas vezes também rotulado de "amor livre"). As relações sexuais entre os gêneros durante
esse estágio da história humana não excluíam a existência de relacionamentos
temporários a dois entre um homem e uma mulher.
Entretanto, em princípio, toda mulher era considerada uma potencial
parceira sexual para todo homem, e vice versa. Nas palavras de Friedrich Engels: "Os homens viviam em poligamia e suas
mulheres simultaneamente em poliandria, e seus
filhos eram considerados como sendo de todos eles. ... Cada mulher pertencia a
todos os homens, e cada homem pertencia a todas as mulheres."
Porém,
o que Engels e vários outros socialistas posteriores não perceberam em relação
à glorificação do amor livre — tanto a que ocorrera no passado quanto a que
supostamente viria no futuro — é o fato de que tal instituição possui um
efeito direto na produção de rebentos. Como Ludwig von Mises comentou: "O fato é que, mesmo que uma comunidade
socialista possa implementar o 'amor livre', ela não pode de maneira alguma
ficar livre de procriações". O que Mises
quis subentender com esse comentário é que o amor livre tem consequências: gravidezes
e descendentes. E uma prole gera
benefícios e também custos.
Esse dilema
não seria um problema enquanto os benefícios excedessem os custos, isto é,
enquanto um membro adicional da sociedade agregasse mais a ela como produtor de
bens do que subtraísse dela como consumidor — e isso pode perfeitamente vir a
ser o caso por algum tempo.
No entanto,
como ensina a lei dos retornos, essa situação não pode durar para sempre. Inevitavelmente, chegará um ponto em que os
custos de rebentos adicionais irão exceder os benefícios. A partir daí, portanto, qualquer procriação
adicional deve ser interrompida — contenções morais devem ser exercidas —, a
menos que se queira vivenciar uma queda progressiva nos padrões de vida. Contudo, se as crianças são consideradas como
sendo de todo mundo e, ao mesmo tempo, de ninguém, pois todo mundo mantém
relações sexuais com todo mundo, então os incentivos para conter a procriação
desaparecem ou são significativamente diminuídos.
Instintivamente, em virtude da natureza biológica
do ser humano, todo homem e toda mulher são impulsionados a difundir e espalhar
seus genes para a próxima geração da espécie. Quanto mais rebentos um indivíduo gerar, melhor, pois mais de seus genes
sobreviverão. É claro que esse instinto
humano natural pode ser controlado por uma deliberação racional. Porém, se pouco ou nenhum sacrifício
econômico tivesse de ser feito em decorrência dos instintos animais de cada
indivíduo — porque todas as crianças seriam sustentadas pela sociedade como um
todo —, então pouco ou nenhum incentivo existiria para se empregar a razão em
questões sexuais, isto é, para se exercer a contenção moral.
De um
ponto de vista puramente econômico, portanto, a solução para o problema da
superpopulação deveria ser imediatamente aparente. A administração das crianças — ou, mais
corretamente, a curadoria das crianças — tinha de ser privatizada. Em vez de considerar as crianças como sendo
propriedade coletiva da "sociedade", ou responsabilidade da "sociedade", ou
mesmo ver o nascimento de crianças como um evento natural incontrolado e
incontrolável — e, como consequência, encarar as crianças como propriedade de
ninguém e não estando aos cuidados de ninguém —, as crianças tiveram de passar
a ser consideradas entidades que foram produzidas privadamente e, por isso,
confiadas aos cuidados privados de quem as produziu.
Além do
mais e finalmente: com a formação de famílias monógamas ou polígamas surgiu outra
decisiva inovação. Antes, todos os
membros de uma tribo formavam uma família única e uniforme, e a divisão do trabalho
intra-tribal era essencialmente uma divisão do trabalho intra-família. Com o advento da formação de famílias veio a
fragmentação de uma grande família uniforme em várias famílias independentes, e
com isso veio também a formação de várias propriedades privadas sobre a
terra.
Ou seja,
a apropriação de terras anteriormente descrita não foi simplesmente uma
transição de uma situação em que uma terra que antes era sem dono passou a ser
propriedade, mas sim, mais precisamente, uma transição de uma situação em que uma
terra até então sem dono foi transformado em propriedade de famílias separadas
(permitindo assim também o surgimento da divisão do trabalho inter-famílias).
Consequentemente,
portanto, a maior renda social possibilitada pela propriedade da terra não mais
era distribuída como era anteriormente: para cada membro da sociedade "de
acordo com suas necessidades". A fatia
de cada família no total da renda passou a depender do produto que cada uma
imputava à economia — isto é, passou a depender do seu trabalho e da sua
propriedade investidos na produção.
Em
outras palavras: o antes difuso "comunismo" pode até ter continuado existindo
dentro de cada família, porém o comunismo desapareceu da relação entre os membros
de famílias diferentes. s rendas das
diferentes famílias eram distintas, dependentes da quantidade e da qualidade do
trabalho e da propriedade investidos, e ninguém tinha o direito de reivindicar
a renda produzida pelos membros de outra família. Com isso, a "carona" sobre os esforços
alheios tornou-se amplamente — ou totalmente — impossível. Aquele que não trabalhasse não mais poderia
esperar comer gratuitamente.
Deste
modo, em resposta à crescente pressão populacional, um novo modo de organização
social passou a existir, substituindo aquele estilo de vida "caça e coleta" que
havia caracterizado a maior parte da história. Como resumiu Ludwig von Mises:
A
propriedade privada dos meios de produção é o princípio regulador que, dentro
de uma sociedade, equilibra os limitados meios de subsistência à disposição da
sociedade com a bem menos limitada capacidade de aumento na quantidade de
consumidores. Ao fazer com que a fatia
do produto social de cada membro da sociedade seja dependente do produto economicamente
imputado a ele, isto é, dependente de seu trabalho e de sua propriedade, a
matança de seres humanos em decorrência da luta pela sobrevivência, como ocorre
nos reinos animal e vegetal, é substituída por uma redução na taxa de
natalidade em decorrência das forças sociais.
A 'contenção moral' — as limitações sobre a produção de rebentos
impostas pelas posições sociais — substitui a batalha pela existência.
___________________________________________
Nota
[*] Na realidade, o último grande período de aquecimento já
havia terminado há aproximadamente 120.000 anos. Durante este período — isto é, mais de
120.000 anos atrás — hipopótamos viviam nos rios Reno e Tâmisa, e a Europa
tinha uma espécie de "aparência africana".
Dali em diante, quando as temperaturas começaram a cair, as geleiras se
moveram continuamente na direção sul, e o nível do mar na Europa diminuiu em
mais de 100 metros. Os rios Tâmisa e
Elba se tornaram afluentes do Reno, antes de este passar a correr até o Mar do
Norte e dali para o Atlântico. Quando
este período terminou, muito abruptamente, há aproximadamente 12.000 anos, as
geleiras rapidamente retornaram e o nível do mar subiu, não apenas milímetros
por ano, mas sim muito rapidamente, quase que como um dilúvio. Em um curto espaço de tempo, a Inglaterra e a
Irlanda, que até então eram ligadas ao continente europeu, se tornaram
ilhas. Foi assim que o Mar Báltico e grande
parte do atual Mar do Norte surgiram. Do
mesmo modo, grande parte do que hoje é o Golfo Pérsico passou a existir apenas
naquela época.