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Economia

A PEC dos Precatórios e a casta político-rentista: os ganhadores e os perdedores

A proposta deveria se chamar 'PEC da Irresponsabilidade Fiscal'

27/10/2021

A PEC dos Precatórios e a casta político-rentista: os ganhadores e os perdedores

A proposta deveria se chamar 'PEC da Irresponsabilidade Fiscal'

Executivo e Legislativo se deram as mãos e estão propondo estourar o teto constitucional de gastos por meio da PEC dos Precatórios

O apelido desta PEC não é fiel: fosse a política a arte da verdade, estaríamos lendo sobre a "PEC Fura-Teto", "PEC Eleitoreira", ou "PEC da Irresponsabilidade Fiscal".

O que é e como funciona a regra do teto de gastos

Até antes de 2017, o governo federal podia aumentar seus gastos para o ano seguinte o tanto que quisesse, desde que demonstrasse ter uma fonte de receita para essa nova despesa. Se o governo federal quisesse, no ano seguinte, elevar os gastos em 15% (por exemplo, concedendo aumentos salariais ao funcionalismo público), ele poderia, desde que demonstrasse que haveria fonte de receita. 

Só que essa restrição, na prática, era perfeitamente contornável. Se a fonte de receita prevista acabasse não se concretizando — ou seja, não gerando a receita no volume esperado —, não havia punição nenhuma. O governo federal simplesmente incorreria em um grande déficit orçamentário, tendo de tomar dinheiro emprestado para fechar as contas — com isso gerando consequências como a elevação dos juros e a retração dos investimentos —, e pronto. A economia era afetada, e nenhuma punição era aplicada.

E, com efeito, era exatamente isso o que sempre acontecia.

Ao fim de 2016, entretanto, tudo mudou.

Uma das principais medidas aprovadas no governo Michel Temer, a Emenda Constitucional 95 estabelece um limite de despesas para a União nos próximos 20 anos. Contando desde 2017, os gastos do governo federal para um determinado ano só podem aumentar de acordo com a inflação oficial do país (o IPCA) do ano anterior — ou seja, não haveria um crescimento real dos gastos do governo, apenas nominal.

Assim, se o IPCA foi de 5%, então, no ano seguinte, o governo federal só poderá gastar o que gastou no ano anterior mais 5%.

Consequentemente, ao contrário do que sempre ocorria, o governo passou a não mais poder criar gastos baseando-se em receitas futuras incertas e com projeções infladas. Um grande avanço.

Isso foi necessário porque a trajetória de aumento da dívida pública era explosiva, com as despesas continuamente superando as receitas do governo, algo que se intensificou a partir de 2014, no governo Dilma. 

Perceba no gráfico abaixo, que mostra a evolução do déficit nominal do governo federal (tudo o que o governo gasta, inclusive com juros, além do que arrecada), a explosão ocorrida a partir de 2014, bem como a contenção ocorrida a partir de 2017. Estamos excluindo o atípico ano de 2020 por motivos óbvios.

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Gráfico 1: evolução do déficit nominal do governo federal, até o fim de 2019 (Fonte e gráfico: Banco Central)

Nesse sentido, vale destacar que a Emenda Constitucional permite que gastos emergenciais sejam tomados sem obedecer o limite estipulado, como no caso da Covid-19.  

Adicionalmente, a Emenda do Teto de Gastos não limita o crescimento de despesas com saúde e educação. O limite vale para os gastos totais do governo, e não para gastos específicos. Os gastos com educação, saúde e assistência social podem continuar aumentando aceleradamente, desde que os gastos em outras áreas sejam contidos ou reduzidos, de modo que o aumento total de todos os gastos do governo federal não supere a inflação de preços do ano anterior.

Em caso de descumprimento, gatilhos automáticos são acionados, como, por exemplo, ausência de reajuste de salários para funcionários públicos, cortes de subsídios, suspensão de contratações e concursos públicos.

O Teto salvou o Brasil - até agora

De acordo com dados do Tesouro Nacional e do IBGE, entre os anos de 1997 e 2015 as despesas do Governo Federal cresceram de R$ 133 bilhões para R$ 1,15 trilhão, isto é, mais de 764%. No mesmo período, a inflação, medida pelo IPCA, subiu cerca de 230%.

Isso significa que as despesas reais tomaram uma proporção considerável ao longo desse período, o que representou um genuíno agigantamento do estado em detrimento do setor privado.

Com efeito, observe, no gráfico 1, que o Teto de Gastos realmente trouxe algum controle ao déficit do governo até 2019 (antes da Covid-19).

O teto em vigor, portanto, é a solitária âncora remanescente a impedir a repetição do desastre do governo Dilma —de gastança desenfreada regada a crédito público e inflação— que gerou a maior depressão da história do Brasil. O desemprego quase dobrou (de 7% em 2014 para 13% em 2017) e a renda média do brasileiro despencou.

Como mostra o gráfico 1, após aquele fatídico ano de 2014, o Brasil viveu uma intensa crise entre 2015 e 2016, e seus efeitos permanecem na economia até hoje.

Desde sua promulgação em 2016, o teto viabilizou uma redução da inflação de preços 11% em 2015 para menos de 4% entre 2017 e 2020, e o retorno ao crescimento da renda. 

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Gráfico 2: evolução do IPCA acumulado em 12 meses (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

A queda da Selic foi ainda mais acentuada, de 14% para 4,25% às vésperas da pandemia. 

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Gráfico 3: evolução da taxa Selic (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

A criação do teto impôs maior responsabilidade fiscal, e maior responsabilidade fiscal fez com que os investidores passassem a exigir juros menores para emprestar para o governo. Quanto menor o risco, menores os juros exigidos.

Os gráficos abaixo mostram a evolução dos juros dos títulos prazos mais longos do governo brasileiro. 

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Gráfico 4: evolução dos juros para contratos com vencimento em 2025 (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

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Gráfico 5: evolução dos juros para contratos com vencimento em 2026 (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

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Gráfico 6: evolução dos juros para contratos com vencimento em 2027 (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

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Gráfico 7: evolução dos juros para contratos com vencimento em 2029 (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

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Gráfico 8: evolução dos juros dos títulos públicos de 10 anos (a linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos)

São estes juros de longo prazo que definem os juros dos empréstimos bancários e, desta maneira, afetam investimentos produtivos e emprego.

Como consequência, o crédito privado, financiador do crescimento e emprego, expandiu mais de 60% desde então.

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Gráfico 9: evolução do crédito fornecido pelos bancos estatais (linha vermelha) e pelos bancos privados (linha azul). A linha vertical mostra o momento da introdução do Teto de Gastos

Observe no gráfico acima que o crédito no Brasil estava efetivamente estatizado desde 2013, quando o volume de crédito dos bancos estatais ultrapassou o dos bancos privados. 

Até 2016, os bancos estatais eram obrigados, pelo governo, a direcionar empréstimos a juros bem abaixo da SELIC para alguns setores escolhidos pelo governo — como o setor imobiliário, o setor rural, o setor exportador, as empreiteiras e os barões do setor industrial. Quem bancava tudo isso éramos nós, os pagadores de impostos. O governo arrecadava nosso dinheiro via impostos e empréstimos (vendas de títulos do Tesouro), repassava para os bancos estatais, e estes então emprestavam esse dinheiro — a juros abaixo da SELIC — para empreiteiras, para compradores de imóveis, para o setor industrial etc.

Desde o governo Temer, e mais especificamente a partir da criação do Teto de Gastos, a situação se inverteu. Ao passo que os bancos estatais, até o fim do governo Dilma, forneciam empréstimos seguindo critérios políticos, os bancos privados, ao alocarem crédito mais de acordo com as reais condições de mercado, passaram a ser os condutores do crescimento e do emprego, como deve ser.

O teto matou os rentistas - e seu fim irá ressuscitá-los

Volte aos gráficos 3 a 8 e observe que, após o ano de 2016, a tendência é de queda dos juros longos, havendo apenas um sobressalto com as eleições de 2018. Mesmo em meio à profunda crise gerada pela Covid-19 em 2020, o juros estavam nas mínimas históricas. Uma façanha. Nas crises de 2008 e 2015, por exemplo, eles dispararam. 

O teto derrubou o chão dos rentistas, aqueles que se deleitam com os juros altos pagos por governos gastadores. 

Mas políticos e rentistas são espécies simbióticas, que compartilham as vantagens de um estado perdulário. O gasto é seu alimento; o hospedeiro somos nós, cidadãos pagadores de impostos e trabalhadores.

Além do excepcional ano de 2020, o teto de gastos também foi furado — em tese, provisoriamente — em 2021. Um Projeto de Lei que excluía os programas emergenciais da Lei do Teto foi aprovado e, com isso, o Orçamento da União de 2021 também apresentou despesas fora do teto. Os gastos contra a Covid-19 e com os programas de proteção de empresas e de empregos (o Pronampe e o BEm) ficaram sem limites específicos. E ainda colocaram mais R$ 16,5 bilhões para emendas parlamentares.

Mas agora piorou. E isso explica a disparada nos juros longos observada na extremidade direita dos gráficos 3 a 8.

Apenas com o barulho em torno da PEC dos precatórios, o governo Bolsonaro e o Congresso refundaram a "estatal" extinta no governo Temer, a 'Jurobras', cujo objeto é (a) sugar poupança do setor produtivo para financiar rentista e (b) exportar capital nacional. 

Os juros de médio prazo que estavam de 6% a 7% em meados do ano passado chegaram a 12%.

A peça trágica do teatro fura-teto é encenada em três atos.

Envolve, em primeiro lugar, voltar no tempo e ampliar a correção monetária do teto desde 2017. Este primeiro ato, violador da física e de outras ciências, redesenha o teto ao longo do tempo, passado e futuro. A manobra "cria" R$ 50 bilhões de permissão de estouro do teto no ano que vem (e segue criando permissões adicionais de estouro para os anos de 2023 a 2026).

O segundo ato é o não pagamento de parte dos precatórios devidos em 2022 (a reincidência no calote), gerando mais cerca de R$ 40 bilhões de estouro do teto.

Segundo a Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, há espaço tanto para reajuste do Bolsa Família (ou Auxílio Brasil) quanto para o pagamento integral dos precatórios, cumprindo o teto. Mas a casta político-rentista tem fome e quer mais emendas parlamentares, fundo eleitoral, e até reajuste de servidores.

E, principalmente, deseja aumentar em 20% o número de beneficiários do auxílio e distribuir R$ 400 por mês. É populismo.

O Orçamento de 2022 em discussão aloca R$ 1,5 trilhão a outras rubricas, que poderiam ser discutidos e remanejados nesta mesma PEC para atender o Auxílio Brasil. Mas os políticos, claro, julgam que privilégios e "direitos adquiridos", principalmente os do alto escalão do funcionalismo público, não podem ser cortados.

O mercado reagiu à proposta de estouro de R$ 90 bilhões com a desvalorização das empresas que perfazem o Ibovespa em mais de três vezes este valor. Estimo que a perda de valor, em moeda forte, de todas as empresas do Brasil e dos títulos de renda fixa tenha sido de muitos trilhões (não apenas bilhões) de reais, só na semana passada.

Para concluir

Desde a introdução do Teto de Gastos, as expectativas sobre o Brasil ficaram mais ancoradas, possibilitando a queda dos juros e tornando mais atrativos investimentos na iniciativa privada, impulsionando o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

Responsabilidade fiscal importa, e a Regra do Teto restringe o aumento do tamanho do estado, bem como a capacidade de populismos de políticos. Por isso estes odeiam o Teto.

O princípio da dramaturgia conhecido como a "Arma de Tchekhov" determina que, caso haja um rifle pendurado na parede durante o primeiro e segundo atos, será disparado no ato final. A PEC dos Precatórios, se aprovada, será o rifle na parede do Congresso.

A casta político-rentista espera dispará-lo no futuro para implodir o teto de vez. Porém, em um plot twist no ato final (as eleições de 2022), os coadjuvantes – eleitores, sem emprego, e na carestia – podem dispará-lo e não reeleger políticos comprometidos com essa infâmia.


Sobre o autor

Helio Beltrão

Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

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